Carta Maior, 29/01/2014
Até tu, Davos?
Por Jaciara Itaim
Dentre os inúmeros efeitos provocados pela crise econômica e financeira, a partir da quebradeira dos bancos nos Estados Unidos, observou-se alguma reavaliação de determinados aspectos do “diktat” do neoliberalismo. Era o que estava na base de fundamentação das orientações de política econômica nos próprios países do centro do capitalismo mundial. Os alicerces rígidos e inabaláveis da ortodoxia acabaram não resistindo aos solavancos provocados pelo desarranjo da antiga ordem que organizava o reino dos negócios pelo mundo afora.
Assim, algumas “novidades” pouco a pouco passaram a ser incorporados ao discurso e às propostas do próprio centro de poder do dinheiro. Idéias e conceitos, considerados como pura heresia até a antevéspera da falência do Lehman Brothers, foram recuperados por economistas e autoridades, cuja retórica anterior parecia até então incompatível com tais heterodoxias. Não que a profundidade da crise tenha alterado algum elemento essencial na avaliação do financismo a respeito da dinâmica econômica e dos propósitos do empreendedorismo privado neste início do terceiro milênio.
Ocorre que a história do próprio capitalismo é marcada por momentos em que o Estado é chamado de volta ao centro da cena, tendo por missão fazer com que as políticas públicas sejam colocadas de forma intensiva e explícita a favor da minimização de perdas do capital e para assegurar soluções que o onipotente mercado, de forma espontânea, não seria capaz de encontrar. Esse foi o caminho trilhado, por exemplo, para se aceitarem como “normais” as vultosas contribuições dos tesouros nacionais dos próprios países desenvolvidos em prol das instituições financeiras. O instrumento de retórica a que se lançou mão para justificar tal operação era carregado de um pragmatismo escancarado. Os bancos e corporações socorridas seriam grandes demais para quebrarem. A expressão em inglês se fazia chique nos editoriais de economia por aqui: “too big to fail”.
Crise econômica e mudança de discurso
A crise patrocinou mudanças de rumo também na extensão do uso do conceito de liberalismo comercial, as trocas comerciais entre os países. A prática protecionista voltou até mesmo ao território norte-americano, com publicação de atos governamentais estabelecendo a preferência pelas mercadorias ali produzidas. Os países europeus voltaram a abusar das políticas de gastos públicos – com o sutil detalhe de que os recursos serviam para auxiliar de forma prioritária as empresas e menos os assalariados e a população em geral, é sempre bom frisar.
A lista de exceções desavergonhadas ao cardápio liberal é extensa. No entanto, como a orientação dos governos não foi alterada de forma substantiva, as mudanças na política econômica tampouco foram estruturais. Trata-se de perfumaria momentânea, apenas aguardando passar a fase mais aguda da crise para que a estratégia liberal autêntica volte ao posto de comando.
Apesar dessa tendência de abertura temática, não deixam de ser surpreendentes alguns dos assuntos em pauta nas discussões do Encontro Anual do Fórum Econômico Mundial (FEM). Afinal, ali estão reunidos os representantes das grandes corporações das finanças e dos negócios em todo o mundo, na companhia de autoridades governamentais também de todos os continentes. E uma das maiores preocupações dos participantes se relaciona com os chamados “riscos globais” mais expressivos.
Davos agora se preocupa com o social?
O relatório elaborado pelos responsáveis do evento de Davos confere destaque especial para a questão das desigualdades como um dos maiores problemas no cenário internacional. O documento é explícito em apontar “as disparidades de renda como a maior ameaça generalizada da próxima década”, ou seja, um importante risco social. Apesar de pouco usual em documentos de eventos com o perfil do FEM, esse é mesmo o primeiro item de uma lista de riscos. Na sequência, são apresentados os demais eventos críticos. Os fenômenos meteorológicos extremos e as mudanças climáticas estão na categoria de risco ambiental. O desemprego e o subemprego aparecem na categoria de risco econômico. Os ataques cibernéticos estão presentes na categoria de risco tecnológico.
Como uma espécie de contraponto ao relatório de Davos, a conhecida organização internacional Oxfam apresentou também um documento tratando do tema da concentração de renda na escala global. Ao contrário dos banqueiros, a linha de ação da entidade está mais voltada para preocupações de natureza social e de sustentabilidade. Assim, as informações constantes do material da ONG identificam que as desigualdades são impressionantes. Os cálculos iniciais demonstram que apenas 1% da população detém por volta de 50% da riqueza global. Por outro lado o trabalho conclui que as pessoas no topo da pirâmide global (1% mais ricos) possuem o patrimônio equivalente a US$ 110 trilhões.
O mesmo estudo demonstra que não se trata de um fenômeno recente. A verdade é que o quadro das desigualdades vem se deteriorando ao longo do tempo em todo o planeta, inclusive nos anos mais recentes. Até mesmo nos Estados Unidos, por exemplo, os 10% mais ricos nunca havia apresentado antes tamanha participação na renda daquele país como em 2012, apesar de todos os efeitos da crise que eles enfrentam. Nos outros países desenvolvidos, a situação não é muito distinta. O relatório nos informa que, desde 2005, os índices de concentração de renda também aumentaram na França, no Japão e na Inglaterra – países também bastante afetados pela crise econômica. Em termos gerais, pode-se dizer que sete de cada dez pessoas do mundo vivem em um ambiente mais desigual do que há 3 décadas atrás. Ou seja, quem estiver disposto a enfrentar o obstáculo da desigualdade, deverá obrigatoriamente enfrentar resistências para intervir em aspectos estruturantes do modelo vigente.
O risco da desigualdade social: o financismo não tem proposta
Apesar de inusitada, a incorporação da desigualdade de renda como um importante fator de risco social, por parte dos frequentadores de Davos, não deve ser saudada sem restrições. Essa ressalva se faz necessária pelo fato de que os modelos de análise do fenômeno econômico não foram alterados pelos formuladores do financismo. Assim, as recomendações para enfrentar aquilo que é apresentado como o maior risco para os próximos anos não avançam muito em relação ao cardápio tradicional do liberalismo. Permanece subjacente a crença de que basta a liberdade das forças de oferta e demanda no mercado para que o ponto de equilíbrio seja atingido. E como o mercado sempre proporciona a solução mais eficiente, as distorções relativas à disparidade renda serão naturalmente eliminadas.
Os desníveis acentuados de renda sempre existiram nas relações sociais e econômicas. Trata-se de característica intrínseca ao modo capitalista de produção.
Sejam as diferenças observadas entre as nações nas relações econômicas e internacionais, sejam as disparidades verificadas entre os diferentes grupos sociais no interior de um mesmo país. O aspecto que causa perplexidade é o fato de que somente em 2014 os representantes das maiores fortunas globais tenham se disposto a aceitar tal evidência como um problema que pode colocar o sistema global em risco.
É verdade que tal passo – o reconhecimento explícito da desigualdade como um problema grave - não pode ser desconsiderado. Porém, as políticas públicas que estão sendo implementadas em grande parte dos países do mundo parece não levar em conta nem mesmo o alerta recente do encontro realizado nos Alpes suíços. O manual da ortodoxia continua a clamar pelos ajustes fiscais nos orçamentos dos governos, privilegiando o capital e penalizando o trabalho. O modelo pós-colonialista de exploração econômica dos países menos desenvolvidos continua intocado, de tal forma que a divisão internacional do trabalho relega a estes a condição de exportadores de produtos primários e importadores de bens manufaturados. As políticas de renda permanecem favorecendo as empresas e sugerindo colocar o tradicional esforço nas costas dos trabalhadores. Imposto sobre transações financeiras internacionais para constituir fundo contra a miséria tampouco entra na agenda. Ao que tudo indica, os participantes de Davos são os mesmos que formulam esse tipo de política pública excludente e concentradora.
Dessa maneira, o que se extrai desse quadro é que muito dificilmente a banca internacional vai concordar em promover alterações na matriz da política econômica levada a efeito na maioria dos países do mundo hoje. Caso o relatório do FEM fosse mesmo levado a sério entre seus pares, tudo soaria como uma traição aos interesses do próprio financismo, patrocinada por aqueles que eles mesmos representam. Uma cena insólita, em que o capital, isolado e apunhalado pelas costas, se indignasse : “Mas até tu, Davos?”. Muito difícil! Pelo contrário, é bem mais provável que os primeiros sinais de recuperação da atividade econômica no hemisfério norte acabem, mais uma vez, por empurrar para debaixo do tapete a necessidade de enfrentar questões fundamentais da forma de organização da economia e da sociedade nos tempos atuais.
Assim, algumas “novidades” pouco a pouco passaram a ser incorporados ao discurso e às propostas do próprio centro de poder do dinheiro. Idéias e conceitos, considerados como pura heresia até a antevéspera da falência do Lehman Brothers, foram recuperados por economistas e autoridades, cuja retórica anterior parecia até então incompatível com tais heterodoxias. Não que a profundidade da crise tenha alterado algum elemento essencial na avaliação do financismo a respeito da dinâmica econômica e dos propósitos do empreendedorismo privado neste início do terceiro milênio.
Ocorre que a história do próprio capitalismo é marcada por momentos em que o Estado é chamado de volta ao centro da cena, tendo por missão fazer com que as políticas públicas sejam colocadas de forma intensiva e explícita a favor da minimização de perdas do capital e para assegurar soluções que o onipotente mercado, de forma espontânea, não seria capaz de encontrar. Esse foi o caminho trilhado, por exemplo, para se aceitarem como “normais” as vultosas contribuições dos tesouros nacionais dos próprios países desenvolvidos em prol das instituições financeiras. O instrumento de retórica a que se lançou mão para justificar tal operação era carregado de um pragmatismo escancarado. Os bancos e corporações socorridas seriam grandes demais para quebrarem. A expressão em inglês se fazia chique nos editoriais de economia por aqui: “too big to fail”.
Crise econômica e mudança de discurso
A crise patrocinou mudanças de rumo também na extensão do uso do conceito de liberalismo comercial, as trocas comerciais entre os países. A prática protecionista voltou até mesmo ao território norte-americano, com publicação de atos governamentais estabelecendo a preferência pelas mercadorias ali produzidas. Os países europeus voltaram a abusar das políticas de gastos públicos – com o sutil detalhe de que os recursos serviam para auxiliar de forma prioritária as empresas e menos os assalariados e a população em geral, é sempre bom frisar.
A lista de exceções desavergonhadas ao cardápio liberal é extensa. No entanto, como a orientação dos governos não foi alterada de forma substantiva, as mudanças na política econômica tampouco foram estruturais. Trata-se de perfumaria momentânea, apenas aguardando passar a fase mais aguda da crise para que a estratégia liberal autêntica volte ao posto de comando.
Apesar dessa tendência de abertura temática, não deixam de ser surpreendentes alguns dos assuntos em pauta nas discussões do Encontro Anual do Fórum Econômico Mundial (FEM). Afinal, ali estão reunidos os representantes das grandes corporações das finanças e dos negócios em todo o mundo, na companhia de autoridades governamentais também de todos os continentes. E uma das maiores preocupações dos participantes se relaciona com os chamados “riscos globais” mais expressivos.
Davos agora se preocupa com o social?
O relatório elaborado pelos responsáveis do evento de Davos confere destaque especial para a questão das desigualdades como um dos maiores problemas no cenário internacional. O documento é explícito em apontar “as disparidades de renda como a maior ameaça generalizada da próxima década”, ou seja, um importante risco social. Apesar de pouco usual em documentos de eventos com o perfil do FEM, esse é mesmo o primeiro item de uma lista de riscos. Na sequência, são apresentados os demais eventos críticos. Os fenômenos meteorológicos extremos e as mudanças climáticas estão na categoria de risco ambiental. O desemprego e o subemprego aparecem na categoria de risco econômico. Os ataques cibernéticos estão presentes na categoria de risco tecnológico.
Como uma espécie de contraponto ao relatório de Davos, a conhecida organização internacional Oxfam apresentou também um documento tratando do tema da concentração de renda na escala global. Ao contrário dos banqueiros, a linha de ação da entidade está mais voltada para preocupações de natureza social e de sustentabilidade. Assim, as informações constantes do material da ONG identificam que as desigualdades são impressionantes. Os cálculos iniciais demonstram que apenas 1% da população detém por volta de 50% da riqueza global. Por outro lado o trabalho conclui que as pessoas no topo da pirâmide global (1% mais ricos) possuem o patrimônio equivalente a US$ 110 trilhões.
O mesmo estudo demonstra que não se trata de um fenômeno recente. A verdade é que o quadro das desigualdades vem se deteriorando ao longo do tempo em todo o planeta, inclusive nos anos mais recentes. Até mesmo nos Estados Unidos, por exemplo, os 10% mais ricos nunca havia apresentado antes tamanha participação na renda daquele país como em 2012, apesar de todos os efeitos da crise que eles enfrentam. Nos outros países desenvolvidos, a situação não é muito distinta. O relatório nos informa que, desde 2005, os índices de concentração de renda também aumentaram na França, no Japão e na Inglaterra – países também bastante afetados pela crise econômica. Em termos gerais, pode-se dizer que sete de cada dez pessoas do mundo vivem em um ambiente mais desigual do que há 3 décadas atrás. Ou seja, quem estiver disposto a enfrentar o obstáculo da desigualdade, deverá obrigatoriamente enfrentar resistências para intervir em aspectos estruturantes do modelo vigente.
O risco da desigualdade social: o financismo não tem proposta
Apesar de inusitada, a incorporação da desigualdade de renda como um importante fator de risco social, por parte dos frequentadores de Davos, não deve ser saudada sem restrições. Essa ressalva se faz necessária pelo fato de que os modelos de análise do fenômeno econômico não foram alterados pelos formuladores do financismo. Assim, as recomendações para enfrentar aquilo que é apresentado como o maior risco para os próximos anos não avançam muito em relação ao cardápio tradicional do liberalismo. Permanece subjacente a crença de que basta a liberdade das forças de oferta e demanda no mercado para que o ponto de equilíbrio seja atingido. E como o mercado sempre proporciona a solução mais eficiente, as distorções relativas à disparidade renda serão naturalmente eliminadas.
Os desníveis acentuados de renda sempre existiram nas relações sociais e econômicas. Trata-se de característica intrínseca ao modo capitalista de produção.
Sejam as diferenças observadas entre as nações nas relações econômicas e internacionais, sejam as disparidades verificadas entre os diferentes grupos sociais no interior de um mesmo país. O aspecto que causa perplexidade é o fato de que somente em 2014 os representantes das maiores fortunas globais tenham se disposto a aceitar tal evidência como um problema que pode colocar o sistema global em risco.
É verdade que tal passo – o reconhecimento explícito da desigualdade como um problema grave - não pode ser desconsiderado. Porém, as políticas públicas que estão sendo implementadas em grande parte dos países do mundo parece não levar em conta nem mesmo o alerta recente do encontro realizado nos Alpes suíços. O manual da ortodoxia continua a clamar pelos ajustes fiscais nos orçamentos dos governos, privilegiando o capital e penalizando o trabalho. O modelo pós-colonialista de exploração econômica dos países menos desenvolvidos continua intocado, de tal forma que a divisão internacional do trabalho relega a estes a condição de exportadores de produtos primários e importadores de bens manufaturados. As políticas de renda permanecem favorecendo as empresas e sugerindo colocar o tradicional esforço nas costas dos trabalhadores. Imposto sobre transações financeiras internacionais para constituir fundo contra a miséria tampouco entra na agenda. Ao que tudo indica, os participantes de Davos são os mesmos que formulam esse tipo de política pública excludente e concentradora.
Dessa maneira, o que se extrai desse quadro é que muito dificilmente a banca internacional vai concordar em promover alterações na matriz da política econômica levada a efeito na maioria dos países do mundo hoje. Caso o relatório do FEM fosse mesmo levado a sério entre seus pares, tudo soaria como uma traição aos interesses do próprio financismo, patrocinada por aqueles que eles mesmos representam. Uma cena insólita, em que o capital, isolado e apunhalado pelas costas, se indignasse : “Mas até tu, Davos?”. Muito difícil! Pelo contrário, é bem mais provável que os primeiros sinais de recuperação da atividade econômica no hemisfério norte acabem, mais uma vez, por empurrar para debaixo do tapete a necessidade de enfrentar questões fundamentais da forma de organização da economia e da sociedade nos tempos atuais.
(*) Economista e militante por um mundo mais justo em termos sociais e econômicos.
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