Carta Maior,
19/11/2013
Por Flavio Aguiar
O clima de intolerância saturada que paira no clima jurídico-midiático-político do país traz várias coisas à lembrança.
Roland Freisler (1893 - 1945): lições da biografia de um juiz
Por Flavio Aguiar
O clima de intolerância saturada que paira no clima jurídico-midiático-político do país traz várias coisas à lembrança.
Já não falo dos Torquemadas inquisitoriais, quando não só cabia de jure ao réu comprovar sua inocência – se é que esta chance lhe era dada – como também ele muitas vezes sequer sabia do que era acusado. Só sabia que fora denunciado por algo, e que, no mais das vezes, apenas a confissão podia lhe atenuar a pena – muitas vezes pela benesse de ser garroteado antes de seu corpo – já morto – ser queimado. Senão, era queimado vivo mesmo.
Mais ou menos, sem qualquer benesse, como a velha mídia faz com seus réus: queimá-los vivos.
Num mundo já um pouco mais próximo do nosso, dá para lembrar o comportamento do juiz soviético Andrei Vyshinsky, um dos homens fortes de Stalin nos processos jurídicos que legitimavam os grandes expurgos promovidos. Vyshinsky tinha um comportamento particularmente ruidoso no tribunal: vociferava, gritava impropérios não só contra os réus, mas contra o que pensava que eles representavam. Muitas vezes no meio do julgamento de um réu, começava a gritar contra Trotsky, chamando-o disto ou daquilo, a seu bel desprazer. Vyshinsky tinha uma motivação para este seu comportamento “espetaculoso”: no seu passado tinha a “mancha” de ter sido menchevique. Dominado por esta assombração, precisava ser mais estalinista do que o Stalin de ocasião.
Bem mais próximo do nosso mundo, vem-me à mente o senador Joseph (Joe) McCarthy. Em sua carreira como juiz – antes de tornar-se senador pelo estado de Wisconsin – McCarthy notabilizou-se pela pressa com que despachava seus casos e definia as sentenças. Depois, como senador, tornou-se famoso pela virulência das acusações que fazia, notadamente em torno do suposto comunismo dos acusados, ou de uma suposta traição, quando não os acusava de... do “crime” de homossexualismo. Mas o que o notabilizou igualmente foi o fato de que normalmente suas acusações carregadas de ódio não eram acompanhadas de qualquer tipo de prova. O “clima” da época – Guerra Fria, vitória dos comunistas na China – era a “prova” de que necessitava. Além disto, contava com a repercussão de suas acusações numa mídia tão ávida de sensacionalismo político quanto de anti-comunismo. Examinando-se mais de perto a sua biografia, vem à mente de novo aquela imagem de algum tipo de “compensação programática na sua vida”: McCarthy morreu com 48 anos, vítima de uma hepatite agravada por alcoolismo (provavelmente cirrose).
Mas o exemplo que vem mais à mente é, na verdade, um pouco anterior. Refiro-me ao verdadeiro ás dos tribunais nazistas, o juiz Roland Freisler (1893 – 1945). Por que ás? Pelo seu estilo retumbante, pelo seu desempenho nos julgamentos, gritando com os réus, insultando-os frequentemente, pela velocidade dos vereditos, por frequentemente arrogar-se simultaneamente os papeis de promotor e juiz, pelas “inovações” de suas “teses jurídicas”, adaptando práticas e conceitos aos ditames do nazismo triunfal – mesmo quando este já estava derrotado.
Assim como Vyshinsky (que, aliás, como menchevique, assinou um ordem de prisão contra Lênin em 1917 – bom, isto pode ter-lhe rendido alguns pontos positivos com Stalin depois), Freisler tinha uma mancha no passado. Na Primeira Guerra Mundial fora feito prisioneiro pelos russos. Depois da Revolução, antes de ser repassado aos alemães, consta que Freisler tornou-se o responsável pela distribuição de víveres no campo de prisioneiros onde estava. Falsamente ou nào, isto lhe rendeu uma fama de na juventude ter simpatias pelo comunismo. Consta até, e em dois relatos distintos, que, ao ser elogiado certa vez por Goebbels, na presença de Hitler, este teria retrucado: “quem, aquele velho bolchevique?”.
Membro do Partido Nazista, Freisler ganhou a admiração dos correligionários por sua retórica, o fato de conhecer códigos e leis de cor, pela presteza e velocidade de seus juízos (antes de se transformarem em sentenças). Ainda assim, enfrentou resistências em sua carreira. Era considerado “não-confiável”, por ser “temperamental”.
Ainda assim Freisler fez uma carreira aplicada, tanto do ponto de vista funcional, no Ministério da Justiça, como em termos jurídicos, destacando-se por sua contribuição para a “nazificação” do sistema legal alemão. Uma de suas contribuições teóricas mais importantes foi a de que diante do esforço de guerra e da luta pela afirmação do nazismo, era perfeitamente legítimo condenar menores de idade às mesmas penas que os adultos. Isto abriu caminho para que menores de idade, de até 16 anos fossem condenados à morte por, por exemplo, distribuírem panfletos anti-regime.
Mas o ápice da carreira de Freisler foi sua nomeação para chefe do Volksgerichtehof – um tribunal especial criado pelo regime para julgar os crimes políticos, em 1942. Além de chefe ele era também o presidente da corte suprema deste tribunal. Ele dedicou-se com afinco à seu papel. Nos menos de três anos em que esteve à testa do tribunal, foi responsável por 50% de todas as condenações à morte dele, desde sua criação, em 1934. O tribunal exarou nestes anos de existência cerca de 10 mil condenações à morte; 5.000 somente entre 42 e 45, e destas, ainda, 2.600 em sessões presididas por Freisler.
Ele notabilizou-se, além da dureza de seus julgamentos, pela rapidez na execução das sentenças. Ele presidiu os julgamentos dos partidários do movimento Rosa Branca, universitários de Munique, que distribuíam panfletos anti-hitleristas, condenando-os à morte na guilhotina. Presidiu também os julgamentos dos envolvidos no atentado de 20 de julho de 1944 contra Hitler. Neste caso foi notável também a presteza na execução das sentenças. Não raro os acusados saíam diretamente do tribunal para a prisão onde eram enforcados com requintes de crueldade, com cordas de piano, para que a dor fosse maior e o enforcamento durasse mais tempo.
Entretanto, seu zelo matou-o. Em 3 de fevereiro de 1945, enquanto presidia o julgamento de um dos acusados no atentado de 20 de julho, houve um bombardeio aéreo nas proximidades do tribunal, na rua Bellevue, no. 15, em local hoje ocupado, em parte, pelo Sony Center, perto da Potsdammer Platz. Ele mesmo ordenou que todos – inclusive o réu – se abrigassem no porão. Entretanto ele se deteve para arrepanhar os autos do processo. Neste momento uma bomba caiu diretamente no prédio, e uma coluna da sala tombou sobre ele, matando-o instantaneamente (há outras versões sobre quem estava sendo julgado, ou sobre ele ter morrido em consequência de uma hemorragia decorrente dos ferimentos, mas aquela é a mais aceita).
De qualquer modo, fica a consideração: o que, afinal, matou-o, o seu zelo ou a sua soberba?
Ao leitor, afinal, as considerações e a conclusão.
Mais ou menos, sem qualquer benesse, como a velha mídia faz com seus réus: queimá-los vivos.
Num mundo já um pouco mais próximo do nosso, dá para lembrar o comportamento do juiz soviético Andrei Vyshinsky, um dos homens fortes de Stalin nos processos jurídicos que legitimavam os grandes expurgos promovidos. Vyshinsky tinha um comportamento particularmente ruidoso no tribunal: vociferava, gritava impropérios não só contra os réus, mas contra o que pensava que eles representavam. Muitas vezes no meio do julgamento de um réu, começava a gritar contra Trotsky, chamando-o disto ou daquilo, a seu bel desprazer. Vyshinsky tinha uma motivação para este seu comportamento “espetaculoso”: no seu passado tinha a “mancha” de ter sido menchevique. Dominado por esta assombração, precisava ser mais estalinista do que o Stalin de ocasião.
Bem mais próximo do nosso mundo, vem-me à mente o senador Joseph (Joe) McCarthy. Em sua carreira como juiz – antes de tornar-se senador pelo estado de Wisconsin – McCarthy notabilizou-se pela pressa com que despachava seus casos e definia as sentenças. Depois, como senador, tornou-se famoso pela virulência das acusações que fazia, notadamente em torno do suposto comunismo dos acusados, ou de uma suposta traição, quando não os acusava de... do “crime” de homossexualismo. Mas o que o notabilizou igualmente foi o fato de que normalmente suas acusações carregadas de ódio não eram acompanhadas de qualquer tipo de prova. O “clima” da época – Guerra Fria, vitória dos comunistas na China – era a “prova” de que necessitava. Além disto, contava com a repercussão de suas acusações numa mídia tão ávida de sensacionalismo político quanto de anti-comunismo. Examinando-se mais de perto a sua biografia, vem à mente de novo aquela imagem de algum tipo de “compensação programática na sua vida”: McCarthy morreu com 48 anos, vítima de uma hepatite agravada por alcoolismo (provavelmente cirrose).
Mas o exemplo que vem mais à mente é, na verdade, um pouco anterior. Refiro-me ao verdadeiro ás dos tribunais nazistas, o juiz Roland Freisler (1893 – 1945). Por que ás? Pelo seu estilo retumbante, pelo seu desempenho nos julgamentos, gritando com os réus, insultando-os frequentemente, pela velocidade dos vereditos, por frequentemente arrogar-se simultaneamente os papeis de promotor e juiz, pelas “inovações” de suas “teses jurídicas”, adaptando práticas e conceitos aos ditames do nazismo triunfal – mesmo quando este já estava derrotado.
Assim como Vyshinsky (que, aliás, como menchevique, assinou um ordem de prisão contra Lênin em 1917 – bom, isto pode ter-lhe rendido alguns pontos positivos com Stalin depois), Freisler tinha uma mancha no passado. Na Primeira Guerra Mundial fora feito prisioneiro pelos russos. Depois da Revolução, antes de ser repassado aos alemães, consta que Freisler tornou-se o responsável pela distribuição de víveres no campo de prisioneiros onde estava. Falsamente ou nào, isto lhe rendeu uma fama de na juventude ter simpatias pelo comunismo. Consta até, e em dois relatos distintos, que, ao ser elogiado certa vez por Goebbels, na presença de Hitler, este teria retrucado: “quem, aquele velho bolchevique?”.
Membro do Partido Nazista, Freisler ganhou a admiração dos correligionários por sua retórica, o fato de conhecer códigos e leis de cor, pela presteza e velocidade de seus juízos (antes de se transformarem em sentenças). Ainda assim, enfrentou resistências em sua carreira. Era considerado “não-confiável”, por ser “temperamental”.
Ainda assim Freisler fez uma carreira aplicada, tanto do ponto de vista funcional, no Ministério da Justiça, como em termos jurídicos, destacando-se por sua contribuição para a “nazificação” do sistema legal alemão. Uma de suas contribuições teóricas mais importantes foi a de que diante do esforço de guerra e da luta pela afirmação do nazismo, era perfeitamente legítimo condenar menores de idade às mesmas penas que os adultos. Isto abriu caminho para que menores de idade, de até 16 anos fossem condenados à morte por, por exemplo, distribuírem panfletos anti-regime.
Mas o ápice da carreira de Freisler foi sua nomeação para chefe do Volksgerichtehof – um tribunal especial criado pelo regime para julgar os crimes políticos, em 1942. Além de chefe ele era também o presidente da corte suprema deste tribunal. Ele dedicou-se com afinco à seu papel. Nos menos de três anos em que esteve à testa do tribunal, foi responsável por 50% de todas as condenações à morte dele, desde sua criação, em 1934. O tribunal exarou nestes anos de existência cerca de 10 mil condenações à morte; 5.000 somente entre 42 e 45, e destas, ainda, 2.600 em sessões presididas por Freisler.
Ele notabilizou-se, além da dureza de seus julgamentos, pela rapidez na execução das sentenças. Ele presidiu os julgamentos dos partidários do movimento Rosa Branca, universitários de Munique, que distribuíam panfletos anti-hitleristas, condenando-os à morte na guilhotina. Presidiu também os julgamentos dos envolvidos no atentado de 20 de julho de 1944 contra Hitler. Neste caso foi notável também a presteza na execução das sentenças. Não raro os acusados saíam diretamente do tribunal para a prisão onde eram enforcados com requintes de crueldade, com cordas de piano, para que a dor fosse maior e o enforcamento durasse mais tempo.
Entretanto, seu zelo matou-o. Em 3 de fevereiro de 1945, enquanto presidia o julgamento de um dos acusados no atentado de 20 de julho, houve um bombardeio aéreo nas proximidades do tribunal, na rua Bellevue, no. 15, em local hoje ocupado, em parte, pelo Sony Center, perto da Potsdammer Platz. Ele mesmo ordenou que todos – inclusive o réu – se abrigassem no porão. Entretanto ele se deteve para arrepanhar os autos do processo. Neste momento uma bomba caiu diretamente no prédio, e uma coluna da sala tombou sobre ele, matando-o instantaneamente (há outras versões sobre quem estava sendo julgado, ou sobre ele ter morrido em consequência de uma hemorragia decorrente dos ferimentos, mas aquela é a mais aceita).
De qualquer modo, fica a consideração: o que, afinal, matou-o, o seu zelo ou a sua soberba?
Ao leitor, afinal, as considerações e a conclusão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário