Carta maior, 20/11/2013
A Constituição e o dia da consciência negra
César Augusto Baldi (*)
Tem se tornado comum divulgar, em redes sociais, afirmação, que teria sido dada por Morgan Freeman, de que não é necessário um dia da consciência branca, negra, amarela, parda, etc., mas sim uma dia da consciência humana. Seguindo um pouco por essa linha, outros sugerem que a escolha de legisladores de fixar essa data comemorativa teria algo de inconstitucional, pois implicaria estabelecer desigualdade de tratamento entre cidadãos, privilegiando uns em detrimento de outros.
Para avaliar essas afirmações, penso eu, é preciso considerar ao menos cinco pontos.
Primeiro: elas próprias escondem um processo intenso de racialização presente na “descoberta” das Américas e que se mantém mesmo após os processos de independência e as revoltas anticoloniais. É o que Aníbal Quijano tem denominado de fim do colonialismo político com a manutenção da colonialidade do poder.
A emergência da ideia de “Europa” e de “ocidente” é a admissão de “diferenças com outras culturas”, mas “admitidas antes de tudo como desigualdades, no sentido hierárquico”: percebidas como desigualdades de natureza, pois somente a cultura europeia é racional e pode conter “sujeitos”, sendo as demais não racionais. Desta forma, as “outras culturas são diferentes no sentido de ser desiguais, na verdade inferiores, por natureza” e, pois, “só podem ser 'objetos' de conhecimento ou de práticas de dominação”.
De fato, para ele, desde o começo mesmo da América, “os futuros europeus associaram o trabalho não pago ou não assalariado com as raças dominadas, porque eram raças inferiores”, de modo que “a inferioridade racial dos colonizados implicava que não eram dignos do pagamento de salário” e “o menor salário das raças inferiores por igual trabalho aos dos brancos, nos atuais centros capitalistas, não podia ser, tampouco, explicado à margem da classificação social racista da população do mundo.” O processo de racialização, portanto, ao contrário de se extinguir com as revoltas contra as metrópoles ou mesmo com a abolição da escravatura, manteve-se de forma permanente, ainda que sob novas formas.
Segundo: a atual valorização da miscigenação tem operado no sentido de uma “racialização para inclusão cultural”, como salienta Lilian Gomes, ao contrário do período inicial da República, em que ela se deu para “assimilação” – e Gilberto Freyre simboliza, neste aspecto, a manutenção do espaço público para brancos e heterossexuais, deixando o espaço privado e da intimidade para não-brancos. É uma lógica que, no entender de Rita Segato, coautora do primeiro projeto de ações afirmativas para indígenas e negros em universidade pública, ainda não reconhece que, ao contrário de uma “expropriação e canibalização de símbolos negros pela sociedade brasileira em geral”, estamos agora diante de uma “forte presença africana que invadiu e colonizou o espaço cultural branco em processo irreversível”.
Terceiro: medidas inclusivas recentes, como as ações afirmativas nas universidades públicas, iniciadas a partir da reprovação de aluno negro no mestrado de antropologia da UNB, não se fizeram, em momento algum, sem grandes resistências. Não é demais lembrar o longo período de quase dez anos para que o programa pudesse ser considerado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Ironicamente, acabou por ser o mesmo curso de pós-graduação um dos primeiros a implantar o programa em nível de seleção de mestrado.
Mas, em que pese experiências como a do Itamaraty, que criou programas específicos para estimular o acesso de candidatos negros aos quadros da diplomacia já em 2002-2003, somente agora, em novembro de 2013, o Executivo propôs criação de uma cota de 20% para os concursos públicos. E, por enquanto, nem Legislativo, nem Judiciário o fizeram; e mesmo o Ministério Público sequer se arvorou em tomar medida similar, na prática, tanto para concursos de servidores, quanto para Procuradores da República e promotores.
Quijano e Wallerstein, já em 1992, sustentavam, de forma veemente, que “dada a hierarquização étnica, um sistema de exames favorece, inevitavelmente, de maneira desproporcionada, os estratos étnicos dominantes” e essa vantagem adicional é “o que, no sistema meritocrático, justifica as atitudes racistas sem necessidade de verbalizá-las”: “aqueles estratos étnicos que se desempenham mais pobremente o fazem assim porque são racialmente inferiores” e a evidência, sendo estatística, passa a ser “científica”. O não questionamento da forma de acesso aos cargos públicos, nem menos ainda da própria dinâmica da seleção realizada – como se ela fosse “neutra” – é, de uma forma ou de outra, a manutenção de um efetivo “racismo institucional”, que merece ser combatido.
Quarto: desde a Lei nº 10.639/2003 existe a obrigatoriedade de ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, mas persiste enorme resistência, para sua implantação, em grande parte na esfera municipal do país. Que tipo de conteúdo vem sendo veiculado nas novas obras editadas para tais fins? De que forma vêm sendo tratadas as histórias e as culturas tanto afro quanto indígenas nos livros didáticos? De que modo isso tem colaborado (ou não) para o combate ao racismo? Em que sentido os Poderes constituídos – mas também Ministérios Públicos e Defensorias Públicas – têm estabelecido a observância dos preceitos legais e do combate às distintas formas de racismo como diretrizes de sua atuação? Quantos alunos das disciplinas de Sociologia e Antropologia ouviram falar nos nomes de Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos, Lélia González e Beatriz Nascimento? Em que sentido ainda continuam sendo invisibilizadas outras formas de conhecimento, no exato momento em que, ao se adicionarem “outros” scholars não-eurocêntricos, não se envolvem, nem se comprometem com suas conceptualizações e críticas?
Como salienta Julia Suárez-Krabbe, é necessário questionar o “privilégio epistêmico” que permite que, nas palavras do caribenho Lewis Gordon, o “corpo branco seja visto pelos outros sem ser visto como tal”, de forma que “vivido como ausência ofereça sua perspectiva como presença”. Contra um racismo epistêmico, há de se desenvolver novas formas de justiça cognitiva, “o direito de diferentes formas de conhecimento coexistirem sem serem marginalizadas pelas formas de conhecimento oficiais, patrocinadas pelo Estado” (Shiv Visnanathan). Trata-se, pois, mais que isso, de “controle social dos conteúdos ou, também, da intervenção dos interesses e perspectivas dos usuários do sistema de ensino sobre o que se ensinará e também sobre como se ensinará” (Rita Segato).
Quinto: as manifestações de junho – que, em algumas cidades ainda continuam – colocaram em evidência, dentre outras reivindicações, a democratização dos espaços públicos, em especial da cidade.
Nesse sentido, oficina da Universidade Popular dos Movimentos Sociais realizada em Brasília, em parceria com o Conselho Nacional do Ministério Público, reunindo quase quarenta e cinco movimentos sociais no início do mês de novembro, concluiu sobre a existência de um processo sistemático de criminalização das manifestações (e, portanto, das distintas formas de inconformismo, rebeldia e, no limite, de lutas por direitos humanos), a segregação espacial e racial das grandes obras tanto para a Copa do Mundo quanto para as Olimpíadas (de que a Aldeia Maracanã e “Porto Maravilha” são apenas alguns exemplos), a necessidade de se repensar a desmilitarização das polícias (sendo evidente que os casos de tortura, hoje em dia, são superiores aos do período ditatorial), o extermínio da população negra (e, pois, necessidade de políticas públicas específicas e de atuação no sentido de coibir tal prática, por parte de Ministérios Públicos e Defensorias) e a necessidade de pensar a forma sistemática que a atuação de empresas nacionais brasileiras – em especial dentro do denominado Projeto ProSAVANA, de estímulo ao agronegócio – deve atingir, diretamente, cinco milhões de africanos, empurrando camponeses de um sistema de “agricultura itinerante” para um sistema de “produção por contratos”.
Mas a oficina tornou evidente, também, que é o momento para afirmação e reconhecimento das comunidades quilombolas, de defesa da constitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003 e de luta contra distintas intolerâncias religiosas praticadas contra os praticantes de religiões de matriz africana. Daí porque Quijano afirme, categoricamente, que a única forma que as promessas da modernidade podem ser cumpridas é pela “desracialização total da classificação social das gentes”, ou seja, não é possível levar, na prática, as referidas promessas “sem a destruição da colonialidade”. A luta pela justiça cognitiva se entrelaça, desta forma, com processos de solidariedade transnacionais e de descolonização.
Estas são algumas dimensões que têm sido ocultadas neste tipo sistemático de campanhas em redes sociais. De fato, o dia da consciência negra continua cada vez mais necessário para questionar os distintos privilégios da “branquitude” e para recordar que o racismo, da mesma forma que o colonialismo e o sexismo, está longe de estar erradicado em nossas sociedades pós-coloniais, mesmo quando elas estabelecem como um de seus objetivos fundamentais: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (CF, art. 3, IV).
(*) Mestre em Direito (ULBRA/RS), doutorando pela Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989 e organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004).
Para avaliar essas afirmações, penso eu, é preciso considerar ao menos cinco pontos.
Primeiro: elas próprias escondem um processo intenso de racialização presente na “descoberta” das Américas e que se mantém mesmo após os processos de independência e as revoltas anticoloniais. É o que Aníbal Quijano tem denominado de fim do colonialismo político com a manutenção da colonialidade do poder.
A emergência da ideia de “Europa” e de “ocidente” é a admissão de “diferenças com outras culturas”, mas “admitidas antes de tudo como desigualdades, no sentido hierárquico”: percebidas como desigualdades de natureza, pois somente a cultura europeia é racional e pode conter “sujeitos”, sendo as demais não racionais. Desta forma, as “outras culturas são diferentes no sentido de ser desiguais, na verdade inferiores, por natureza” e, pois, “só podem ser 'objetos' de conhecimento ou de práticas de dominação”.
De fato, para ele, desde o começo mesmo da América, “os futuros europeus associaram o trabalho não pago ou não assalariado com as raças dominadas, porque eram raças inferiores”, de modo que “a inferioridade racial dos colonizados implicava que não eram dignos do pagamento de salário” e “o menor salário das raças inferiores por igual trabalho aos dos brancos, nos atuais centros capitalistas, não podia ser, tampouco, explicado à margem da classificação social racista da população do mundo.” O processo de racialização, portanto, ao contrário de se extinguir com as revoltas contra as metrópoles ou mesmo com a abolição da escravatura, manteve-se de forma permanente, ainda que sob novas formas.
Segundo: a atual valorização da miscigenação tem operado no sentido de uma “racialização para inclusão cultural”, como salienta Lilian Gomes, ao contrário do período inicial da República, em que ela se deu para “assimilação” – e Gilberto Freyre simboliza, neste aspecto, a manutenção do espaço público para brancos e heterossexuais, deixando o espaço privado e da intimidade para não-brancos. É uma lógica que, no entender de Rita Segato, coautora do primeiro projeto de ações afirmativas para indígenas e negros em universidade pública, ainda não reconhece que, ao contrário de uma “expropriação e canibalização de símbolos negros pela sociedade brasileira em geral”, estamos agora diante de uma “forte presença africana que invadiu e colonizou o espaço cultural branco em processo irreversível”.
Terceiro: medidas inclusivas recentes, como as ações afirmativas nas universidades públicas, iniciadas a partir da reprovação de aluno negro no mestrado de antropologia da UNB, não se fizeram, em momento algum, sem grandes resistências. Não é demais lembrar o longo período de quase dez anos para que o programa pudesse ser considerado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Ironicamente, acabou por ser o mesmo curso de pós-graduação um dos primeiros a implantar o programa em nível de seleção de mestrado.
Mas, em que pese experiências como a do Itamaraty, que criou programas específicos para estimular o acesso de candidatos negros aos quadros da diplomacia já em 2002-2003, somente agora, em novembro de 2013, o Executivo propôs criação de uma cota de 20% para os concursos públicos. E, por enquanto, nem Legislativo, nem Judiciário o fizeram; e mesmo o Ministério Público sequer se arvorou em tomar medida similar, na prática, tanto para concursos de servidores, quanto para Procuradores da República e promotores.
Quijano e Wallerstein, já em 1992, sustentavam, de forma veemente, que “dada a hierarquização étnica, um sistema de exames favorece, inevitavelmente, de maneira desproporcionada, os estratos étnicos dominantes” e essa vantagem adicional é “o que, no sistema meritocrático, justifica as atitudes racistas sem necessidade de verbalizá-las”: “aqueles estratos étnicos que se desempenham mais pobremente o fazem assim porque são racialmente inferiores” e a evidência, sendo estatística, passa a ser “científica”. O não questionamento da forma de acesso aos cargos públicos, nem menos ainda da própria dinâmica da seleção realizada – como se ela fosse “neutra” – é, de uma forma ou de outra, a manutenção de um efetivo “racismo institucional”, que merece ser combatido.
Quarto: desde a Lei nº 10.639/2003 existe a obrigatoriedade de ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, mas persiste enorme resistência, para sua implantação, em grande parte na esfera municipal do país. Que tipo de conteúdo vem sendo veiculado nas novas obras editadas para tais fins? De que forma vêm sendo tratadas as histórias e as culturas tanto afro quanto indígenas nos livros didáticos? De que modo isso tem colaborado (ou não) para o combate ao racismo? Em que sentido os Poderes constituídos – mas também Ministérios Públicos e Defensorias Públicas – têm estabelecido a observância dos preceitos legais e do combate às distintas formas de racismo como diretrizes de sua atuação? Quantos alunos das disciplinas de Sociologia e Antropologia ouviram falar nos nomes de Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos, Lélia González e Beatriz Nascimento? Em que sentido ainda continuam sendo invisibilizadas outras formas de conhecimento, no exato momento em que, ao se adicionarem “outros” scholars não-eurocêntricos, não se envolvem, nem se comprometem com suas conceptualizações e críticas?
Como salienta Julia Suárez-Krabbe, é necessário questionar o “privilégio epistêmico” que permite que, nas palavras do caribenho Lewis Gordon, o “corpo branco seja visto pelos outros sem ser visto como tal”, de forma que “vivido como ausência ofereça sua perspectiva como presença”. Contra um racismo epistêmico, há de se desenvolver novas formas de justiça cognitiva, “o direito de diferentes formas de conhecimento coexistirem sem serem marginalizadas pelas formas de conhecimento oficiais, patrocinadas pelo Estado” (Shiv Visnanathan). Trata-se, pois, mais que isso, de “controle social dos conteúdos ou, também, da intervenção dos interesses e perspectivas dos usuários do sistema de ensino sobre o que se ensinará e também sobre como se ensinará” (Rita Segato).
Quinto: as manifestações de junho – que, em algumas cidades ainda continuam – colocaram em evidência, dentre outras reivindicações, a democratização dos espaços públicos, em especial da cidade.
Nesse sentido, oficina da Universidade Popular dos Movimentos Sociais realizada em Brasília, em parceria com o Conselho Nacional do Ministério Público, reunindo quase quarenta e cinco movimentos sociais no início do mês de novembro, concluiu sobre a existência de um processo sistemático de criminalização das manifestações (e, portanto, das distintas formas de inconformismo, rebeldia e, no limite, de lutas por direitos humanos), a segregação espacial e racial das grandes obras tanto para a Copa do Mundo quanto para as Olimpíadas (de que a Aldeia Maracanã e “Porto Maravilha” são apenas alguns exemplos), a necessidade de se repensar a desmilitarização das polícias (sendo evidente que os casos de tortura, hoje em dia, são superiores aos do período ditatorial), o extermínio da população negra (e, pois, necessidade de políticas públicas específicas e de atuação no sentido de coibir tal prática, por parte de Ministérios Públicos e Defensorias) e a necessidade de pensar a forma sistemática que a atuação de empresas nacionais brasileiras – em especial dentro do denominado Projeto ProSAVANA, de estímulo ao agronegócio – deve atingir, diretamente, cinco milhões de africanos, empurrando camponeses de um sistema de “agricultura itinerante” para um sistema de “produção por contratos”.
Mas a oficina tornou evidente, também, que é o momento para afirmação e reconhecimento das comunidades quilombolas, de defesa da constitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003 e de luta contra distintas intolerâncias religiosas praticadas contra os praticantes de religiões de matriz africana. Daí porque Quijano afirme, categoricamente, que a única forma que as promessas da modernidade podem ser cumpridas é pela “desracialização total da classificação social das gentes”, ou seja, não é possível levar, na prática, as referidas promessas “sem a destruição da colonialidade”. A luta pela justiça cognitiva se entrelaça, desta forma, com processos de solidariedade transnacionais e de descolonização.
Estas são algumas dimensões que têm sido ocultadas neste tipo sistemático de campanhas em redes sociais. De fato, o dia da consciência negra continua cada vez mais necessário para questionar os distintos privilégios da “branquitude” e para recordar que o racismo, da mesma forma que o colonialismo e o sexismo, está longe de estar erradicado em nossas sociedades pós-coloniais, mesmo quando elas estabelecem como um de seus objetivos fundamentais: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (CF, art. 3, IV).
(*) Mestre em Direito (ULBRA/RS), doutorando pela Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989 e organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004).
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