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Carta Maior, 29/06/2015
É hora de apoiar o governo (o grego, claro)
Por Juliano Medeiros
Quando a crise econômica de 2008 transformou-se em crise da dívida nos países do sul da Europa, a Grécia vivia um sistema político praticamente bipartidário. Como acontecia em outros países do continente, liberais e social-democratas alternavam-se de eleição em eleição, compartilhando de programas muito semelhantes.
A crise, porém, fez ruir o equilíbrio de forças e os dois principais partidos – o Partido Socialista e a Nova Democracia – foram soterrados pelos escombros da insatisfação popular. Comprometidos com o ajuste fiscal e a retirada de direitos exigidos pela Troika formada pelo Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional, os tradicionais partidos gregos foram perdendo espaço para alternativas políticas críticas ao plano de ajustes implementado desde 2008.
Na cartilha da “austeridade” imposta pela Troika estavam a demissão de funcionários públicos, o corte de aposentadorias, o aumento de impostos indiretos, dentre outras medidas que redundaram num aprofundamento da crise social e econômica.
Quando foram convocadas novas eleições para o parlamento grego, em janeiro deste ano, todos sabiam que os partidos “anti-austeridade” teriam um bom desempenho. O favorito dentre eles, o Syriza, conquistou a maioria do parlamento e compôs o governo elegendo Alexis Tsipras como primeiro-ministro.
Em seu plano para combater a crise estava uma combinação original: reverter as medidas de austeridade que retiraram direitos, livrar a Grécia da dependência em relação à Troika renegociando os termos da dívida grega e manter o país na zona do euro. O Syriza não era o único partido a denunciar os efeitos nocivos dos acordos firmados pelos governos anteriores.
Outros partidos, à esquerda e à direita, seguiam a mesma receita. Porém, o Syriza era o único a defender ferrenhamente a manutenção da Grécia na zona do euro, o que foi visto pela população como um diferencial em relação a outras forças de esquerda, garantindo a vitória de Tsipras e seu partido.
Porém, a realidade mostrou-se mais complexa do que poderiam supor os eleitores de Tsipras. Vencendo, o Syriza firmava dois compromissos de difícil conciliação: manter a Grécia na zona do euro e reverter as medidas de austeridade acordadas com a Troika. A manutenção do euro como moeda no país depende, sobretudo, da continuidade dos pagamentos da dívida grega – uma dívida absolutamente impagável.
A estratégia de Tsipras e seus negociadores foi a de pressionar publicamente os representantes dos organismos multilaterais, mostrando o alto custo social das medidas exigidas e conquistando apoio popular para o enfrentamento que travavam no exterior. A Troika, por sua vez, seguiu exigindo que a Grécia implementasse medidas de austeridade para, em troca, manter o financiamento da dívida grega e aceitar uma renegociação.
Ao mesmo tempo, no plano interno Tsipras lutou para reverter algumas das medidas que retiraram direitos do povo grego, recuperando aposentadorias, anulando demissões e restabelecendo alguns serviços básicos, como o fornecimento de gás aos mais pobres. Essas medidas, no entanto, exigem recursos que hoje o Estado não tem. Por isso a insistência de Tsipras em chegar a um acordo que permita a manutenção dos empréstimos, sem os quais a economia grega entraria em colapso – ao menos, momentaneamente. Porém, renegociando a dívida e aumentando os impostos sobre os mais ricos, como defende o Syriza, em pouco tempo o governo teria condições de se refinanciar e viabilizar a retomada dos direitos usurpados nos acordos com a Troika.
Num cenário em que a Grécia deixe de pagar a dívida, investindo esses recursos no financiamento de sua própria sua economia, o país pode ser excluído da zona do euro, o que traria como consequência a restauração da moeda anterior – o dracma – muito menos valorizada que o euro. Além disso, a saída da zona do euro representaria, simbolicamente, uma derrota do projeto vitorioso nas eleições de janeiro deste ano e o fracasso das promessas do Syriza. Mesmo que o abandono do euro possa ser compensado com outras alianças econômicas no médio prazo – como China e Rússia – fazendo do dracma uma moeda competitiva, o elemento simbólico seria forte demais, o que forçaria a convocação de novas eleições.
Nesse contexto de enormes dificuldades, o governo grego tem tido uma postura impecável: defendeu os direitos dos mais pobres, denunciou a armadilha montada pela Troika para manter o país refém de seus interesses, instalou uma comissão para a auditoria da dívida grega e recusou-se a implementar medidas que representassem qualquer ataque aos direitos sociais. Mesmo as contrapropostas apresentadas recentemente, aumentando impostos das grandes empresas e antecipando a contribuição previdenciária das mesmas, embora interpretadas pela grande imprensa como um recuo em relação ao programa do Syriza, estão dentro de limites aceitáveis para um governo que atua com uma margem de manobra tão estreita.
As negociações estão chegando a um momento decisivo. O FMI já se retirou da mesa de diálogo duas vezes e os organismos europeus recusam-se a aceitar uma renegociação da dívida grega sem que o governo retire direitos, mesmo sabendo que ela é absolutamente impagável. Querem a rendição de Atenas porque sabem que uma vitória grega nas negociações pode estimular outros povos a buscar uma alternativa radical fora da velha polarização entre direita e centro-esquerda. A concessão a uma revisão da dívida, nesse caso, é o de menos: o que está em jogo é o futuro da Europa e a contenção dos ventos de mudança que já sopram na Espanha e Irlanda.
Diante deste cenário, o governo grego optou por uma saída radical: convocar um plebiscito para que o povo grego decida a saída para o impasse. Isso porque, o mandato concedido pela soberania grega ao Syriza tinha limites claros, a saber, manter a Grécia na zona do euro sem aplicar as medidas exigidas pela Troika. Isso mostrou-se impossível, já que a Troika recusa-se a aceitar qualquer acordo que proteja os direitos dos cidadãos gregos.
O Syriza, assim, age com a máxima dignidade possível.
Se o povo grego optar pela implementação das medidas exigidas pela Troika, provavelmente o Syriza convocará novas eleições, pois não aceitará implementar um programa que não é o seu. Se, ao contrário, a maioria decidir contra as medidas de austeridade, então o Syriza estará legitimado para conduzir a Grécia para fora da zona do euro e liderar a reconstrução do país com uma nova moeda, novos parceiros comerciais e novas alianças estratégicas. Se der certo, isso abrirá as alamedas de uma nova Europa.
A firmeza de princípios com que o Syriza defendeu os interesses do povo grego até aqui merece o apoio de todos os socialistas. Ao contrário de confirmar a tese dos céticos para os quais não há saída, Tsipras e o Syriza deram uma verdadeira lição de como fazer política em favor dos mais pobres. Mostraram que “nada deve parecer impossível de mudar”. Entregam agora o destino da Grécia aos gregos. Que decidam com a mesma sabedoria com que soterraram os partidos da ordem em janeiro deste ano.
Historiador, Juliano Medeiros é dirigente nacional do Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e ex-diretor da União Nacional dos Estudantes (UNE).
Quando a crise econômica de 2008 transformou-se em crise da dívida nos países do sul da Europa, a Grécia vivia um sistema político praticamente bipartidário. Como acontecia em outros países do continente, liberais e social-democratas alternavam-se de eleição em eleição, compartilhando de programas muito semelhantes.
A crise, porém, fez ruir o equilíbrio de forças e os dois principais partidos – o Partido Socialista e a Nova Democracia – foram soterrados pelos escombros da insatisfação popular. Comprometidos com o ajuste fiscal e a retirada de direitos exigidos pela Troika formada pelo Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional, os tradicionais partidos gregos foram perdendo espaço para alternativas políticas críticas ao plano de ajustes implementado desde 2008.
Na cartilha da “austeridade” imposta pela Troika estavam a demissão de funcionários públicos, o corte de aposentadorias, o aumento de impostos indiretos, dentre outras medidas que redundaram num aprofundamento da crise social e econômica.
Quando foram convocadas novas eleições para o parlamento grego, em janeiro deste ano, todos sabiam que os partidos “anti-austeridade” teriam um bom desempenho. O favorito dentre eles, o Syriza, conquistou a maioria do parlamento e compôs o governo elegendo Alexis Tsipras como primeiro-ministro.
Em seu plano para combater a crise estava uma combinação original: reverter as medidas de austeridade que retiraram direitos, livrar a Grécia da dependência em relação à Troika renegociando os termos da dívida grega e manter o país na zona do euro. O Syriza não era o único partido a denunciar os efeitos nocivos dos acordos firmados pelos governos anteriores.
Outros partidos, à esquerda e à direita, seguiam a mesma receita. Porém, o Syriza era o único a defender ferrenhamente a manutenção da Grécia na zona do euro, o que foi visto pela população como um diferencial em relação a outras forças de esquerda, garantindo a vitória de Tsipras e seu partido.
Porém, a realidade mostrou-se mais complexa do que poderiam supor os eleitores de Tsipras. Vencendo, o Syriza firmava dois compromissos de difícil conciliação: manter a Grécia na zona do euro e reverter as medidas de austeridade acordadas com a Troika. A manutenção do euro como moeda no país depende, sobretudo, da continuidade dos pagamentos da dívida grega – uma dívida absolutamente impagável.
A estratégia de Tsipras e seus negociadores foi a de pressionar publicamente os representantes dos organismos multilaterais, mostrando o alto custo social das medidas exigidas e conquistando apoio popular para o enfrentamento que travavam no exterior. A Troika, por sua vez, seguiu exigindo que a Grécia implementasse medidas de austeridade para, em troca, manter o financiamento da dívida grega e aceitar uma renegociação.
Ao mesmo tempo, no plano interno Tsipras lutou para reverter algumas das medidas que retiraram direitos do povo grego, recuperando aposentadorias, anulando demissões e restabelecendo alguns serviços básicos, como o fornecimento de gás aos mais pobres. Essas medidas, no entanto, exigem recursos que hoje o Estado não tem. Por isso a insistência de Tsipras em chegar a um acordo que permita a manutenção dos empréstimos, sem os quais a economia grega entraria em colapso – ao menos, momentaneamente. Porém, renegociando a dívida e aumentando os impostos sobre os mais ricos, como defende o Syriza, em pouco tempo o governo teria condições de se refinanciar e viabilizar a retomada dos direitos usurpados nos acordos com a Troika.
Num cenário em que a Grécia deixe de pagar a dívida, investindo esses recursos no financiamento de sua própria sua economia, o país pode ser excluído da zona do euro, o que traria como consequência a restauração da moeda anterior – o dracma – muito menos valorizada que o euro. Além disso, a saída da zona do euro representaria, simbolicamente, uma derrota do projeto vitorioso nas eleições de janeiro deste ano e o fracasso das promessas do Syriza. Mesmo que o abandono do euro possa ser compensado com outras alianças econômicas no médio prazo – como China e Rússia – fazendo do dracma uma moeda competitiva, o elemento simbólico seria forte demais, o que forçaria a convocação de novas eleições.
Nesse contexto de enormes dificuldades, o governo grego tem tido uma postura impecável: defendeu os direitos dos mais pobres, denunciou a armadilha montada pela Troika para manter o país refém de seus interesses, instalou uma comissão para a auditoria da dívida grega e recusou-se a implementar medidas que representassem qualquer ataque aos direitos sociais. Mesmo as contrapropostas apresentadas recentemente, aumentando impostos das grandes empresas e antecipando a contribuição previdenciária das mesmas, embora interpretadas pela grande imprensa como um recuo em relação ao programa do Syriza, estão dentro de limites aceitáveis para um governo que atua com uma margem de manobra tão estreita.
As negociações estão chegando a um momento decisivo. O FMI já se retirou da mesa de diálogo duas vezes e os organismos europeus recusam-se a aceitar uma renegociação da dívida grega sem que o governo retire direitos, mesmo sabendo que ela é absolutamente impagável. Querem a rendição de Atenas porque sabem que uma vitória grega nas negociações pode estimular outros povos a buscar uma alternativa radical fora da velha polarização entre direita e centro-esquerda. A concessão a uma revisão da dívida, nesse caso, é o de menos: o que está em jogo é o futuro da Europa e a contenção dos ventos de mudança que já sopram na Espanha e Irlanda.
Diante deste cenário, o governo grego optou por uma saída radical: convocar um plebiscito para que o povo grego decida a saída para o impasse. Isso porque, o mandato concedido pela soberania grega ao Syriza tinha limites claros, a saber, manter a Grécia na zona do euro sem aplicar as medidas exigidas pela Troika. Isso mostrou-se impossível, já que a Troika recusa-se a aceitar qualquer acordo que proteja os direitos dos cidadãos gregos.
O Syriza, assim, age com a máxima dignidade possível.
Se o povo grego optar pela implementação das medidas exigidas pela Troika, provavelmente o Syriza convocará novas eleições, pois não aceitará implementar um programa que não é o seu. Se, ao contrário, a maioria decidir contra as medidas de austeridade, então o Syriza estará legitimado para conduzir a Grécia para fora da zona do euro e liderar a reconstrução do país com uma nova moeda, novos parceiros comerciais e novas alianças estratégicas. Se der certo, isso abrirá as alamedas de uma nova Europa.
A firmeza de princípios com que o Syriza defendeu os interesses do povo grego até aqui merece o apoio de todos os socialistas. Ao contrário de confirmar a tese dos céticos para os quais não há saída, Tsipras e o Syriza deram uma verdadeira lição de como fazer política em favor dos mais pobres. Mostraram que “nada deve parecer impossível de mudar”. Entregam agora o destino da Grécia aos gregos. Que decidam com a mesma sabedoria com que soterraram os partidos da ordem em janeiro deste ano.
Historiador, Juliano Medeiros é dirigente nacional do Partido Socialismo e Liberdade (Psol) e ex-diretor da União Nacional dos Estudantes (UNE).
Carta Maior, 29/06/2015
O ataque da Europa à democracia grega
Por Joseph Stiglitz
O crescimento exponencial de disputa e conflitualidade no seio da Europa pode parecer a quem está de fora como sendo o resultado inevitável do amargo fim do jogo entre a Grécia e os seus credores. Na verdade, os líderes europeus estão finalmente a revelar a verdadeira natureza da disputa da dívida em curso, e a resposta não é agradável: é sobre poder e democracia muito mais do que dinheiro e economia.
Claro, a política econômica por detrás do programa que a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) tem impingido à Grécia há cinco anos tem sido abismal, resultando num declínio de 25% do PIB do país. Não consigo pensar em nenhuma depressão que alguma vez tenha sido tão deliberada e que tenha tido tais consequências catastróficas: a taxa de desemprego entre os jovens da Grécia, por exemplo, já ultrapassa os 60%.
É surpreendente que a troika se tenha recusado a aceitar a responsabilidade por alguma coisa destas ou admitir o quão maus tenham sido as suas previsões e modelos. Mas, o que é ainda mais surpreendente é que os líderes europeus não tenham sequer aprendido. A troika ainda exige que a Grécia alcance um excedente orçamental primário (excluindo o pagamento de juros) de 3,5% do PIB em 2018.
Economistas de todo o mundo condenaram essa meta como punitiva, porque exigi-la resultará inevitavelmente numa recessão mais profunda. Na verdade, mesmo que a dívida da Grécia seja reestruturada para além de qualquer coisa imaginável, o país permanecerá em depressão se os eleitores se comprometerem com a meta da troika no referendo, a ser realizado sob pressão este fim de semana.
No que respeita a transformar um grande défice primário num excedente, poucos países fizeram algo parecido com o que os gregos alcançaram nos últimos cinco anos. E, embora o custo em termos de sofrimento humano tenha sido extremamente elevado, as propostas recentes do governo grego fizeram um longo caminho para serem atendidas as exigências dos seus credores.
Devemos ser claros: quase nenhum do enorme manancial de dinheiro emprestado à Grécia foi verdadeiramente para lá. Foi canalizado para pagar aos credores do setor privado – incluindo bancos alemães e franceses. O que a Grécia obteve foi uma ninharia, mas pagou um elevado preço para preservar os sistemas bancários desses países. O FMI e os outros credores “oficiais” não precisam do dinheiro que está a ser exigido. Num cenário business-as-usual, o dinheiro recebido, provavelmente, serviria para ser novamente emprestado à Grécia.
Mas, novamente, o que interessa não é o dinheiro. É sobre usar "prazos" para forçar a Grécia a ceder e aceitar o inaceitável - não apenas medidas de austeridade, mas outras políticas regressivas e punitivas.
Mas por que é que a Europa está a fazer isto? Por que é que os líderes da União Europeia estão a resistir ao referendo e a recusar-se a estender, por alguns dias, o prazo de 30 de junho para o próximo pagamento da Grécia ao FMI? Não foi a Europa toda formada em cima da ideia da democracia?
Em janeiro, os cidadãos da Grécia votaram por um governo comprometido em acabar com a austeridade. Se o governo estivesse simplesmente a cumprir as suas promessas eleitorais, já teria rejeitado a proposta. Mas queria dar aos gregos uma hipótese para refletirem sobre esta questão, tão determinante para o bem-estar futuro do seu país.
Esta preocupação com a legitimidade popular é incompatível com a política da zona euro, que nunca foi um projeto muito democrático. A maioria dos seus governos não procurou aprovação do seu povo quando entregou a soberania monetária ao BCE. Quando a Suécia o fez, os suecos disseram não. Entenderam que o desemprego subiria se a política monetária do país fosse estabelecia por um banco central que incidisse única e exclusivamente sobre a inflação (e também que houvesse uma atenção insuficiente para com a estabilidade financeira). A economia sofreria, porque o modelo subjacente à zona euro se baseou em relações de poder desfavoráveis aos trabalhadores.
E, com certeza, o que estamos a ver agora, 16 anos após a zona euro ter institucionalizado essas relações, é a antítese da democracia: muitos líderes europeus querem ver o fim do governo de esquerda do primeiro-ministro Alexis Tsipras. Afinal de contas, é extremamente inconveniente ter na Grécia um governo que é tão contrário aos tipos de política que tanto fizeram para aumentar a desigualdade em muitos países avançados, e que é tão empenhado em reduzir o poder desenfreado da riqueza. Parecem acreditar que podem, eventualmente, derrubar o governo grego forçando-o a aceitar um acordo que viola o seu mandato.
É difícil aconselhar os gregos a como votar a 5 de julho. Nenhuma alternativa – aceitação ou rejeição dos termos da troika – vai ser fácil, e ambos carregam enormes riscos. Um voto sim significa depressão quase sem fim. Talvez um país empobrecido – que já vendeu todos os seus ativos e cujo povo jovem brilhante emigrou – poderá finalmente conseguir um perdão da dívida; talvez, depois de se ter transformado numa economia de rendimento médio, a Grécia poderá finalmente receber apoio do Banco Mundial. Tudo isto pode acontecer na próxima década, ou talvez na década seguinte.
Por contraste, um voto não abre, pelo menos, a possibilidade de a Grécia, com a sua forte tradição democrática, pegar no destino pelas suas próprias mãos. Os gregos poderão ganhar a oportunidade de moldar um futuro que, embora não tão próspero quanto o passado, é muito mais esperançoso que a inconcebível tortura do presente.
Eu sei como votaria.
Tradução de Fabian Figueiredo para Esquerda.net.
Artigo publicado em Project Syndicate.
Carta Maior, 30/06/2015
"É pegar ou largar": um ultimato à democracia grega
Por GuilhermeCintra Guimarães
É pegar ou largar: assim foi descrito o ultimato dado pelos credores oficiais da Grécia (a famosa Troika: Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) ao final das negociações da semana passada sobre a extensão de um programa de ajuda financeira e recuperação econômica.
O detalhes da negociação são complexos e intrincados. Envolvem medidas como ampliação de empréstimos, metas de superávit fiscal, tributação, corte de gatos, diminuição de pensões e aposentadorias, alterações na legislação trabalhista, entre outras assim chamadas “reformas estruturais”. O mesmo receituário ortodoxo imposto há mais ou menos cinco anos atrás e cujos resultados foram definitivamente catastróficos: um quarto da economia grega foi pelos ares, 25% da população está atualmente desempregada, com mais da metade da juventude sem trabalho, a taxa de suicídio aumentou em 35% e centenas de milhares de pessoas foram reduzidas a uma situação de pobreza extrema, situação essa pouco comum entre os europeus, ao menos no período pré-crise e se desconsiderarmos as (péssimas) condições de vida de grande parte da população imigrante.
O curioso é que o atual governo grego, eleito em janeiro de 2015 com uma plataforma anti-austeridade e geralmente classificado, no espectro ideológico, como de “esquerda radical”, já havia aceitado a imposição de condições extremamente rigorosas, que muitos acreditam serem contrárias as suas próprias promessas eleitorais, como superávit primário crescente, alta de impostos e novos limites na concessão de pensões. O governo grego cedeu, os credores não. Eles queriam mais: mais cortes em salários e pensões, mais aumento generalizado de impostos e mais restrição de direitos trabalhistas. O recente mandato popular conferido ao governo grego parece não ter tido qualquer peso. Democracia não é, certamente, um termo comum no jargão dos “eurocratas”. Era pegar ou largar.
Diante do ultimato, restou ao governo grego a alternativa provavelmente mais sensata: endereçar o ultimato àqueles que sofrerão diretamente as suas consequências, isto é, à própria população grega, que deverá decidir se aceita ou não a proposta intransigente dos seus credores em um referendo a ser realizado no próximo domingo, dia 05 de julho de 2015.
A guerra midiática já começou. O governo grego, coerente com sua própria plataforma eleitoral, já se manifestou a favor do “não” ao ultimato e iniciou sua campanha para tentar convencer a população a seguir o mesmo caminho. Já outros líderes europeus se apressaram em advertir os gregos de que um eventual “não” significará a saída da Grécia da zona do euro, mesmo na ausência de disposições jurídicas que indiquem ser essa a consequência inevitável. O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, se disse “traído” pelo governo grego e afirmou que a União Europeia está do lado dos gregos, ao contrário do governo, mesmo tendo esse mesmo governo sido recentemente eleito pela sua própria população. Para finalizar, uma declaração polêmica: “não cometam suicídio apenas pelo medo de morrer”, um “conselho” bastante infeliz, devido ao alto índice de suicídios na Grécia recente, o maior de toda a Europa.
Diversos fatores e hipóteses têm sido levantados para explicar a atual crise grega, crise que representa, na verdade, apenas a dimensão mais trágica de uma crise mundial de proporções muito maiores e consequências ainda imprevisíveis. Os mais comuns são: falhas no desenho original do euro, discrepância acentuada entre a situação econômica dos diversos países membros, investimentos pouco transparentes e de alto risco realizados por bancos e demais instituições financeiras europeias, corrupção e irresponsabilidade fiscal de vários dos governos no continente, até explicações mais estereotipas e preconceituosas que especulam sobre o “caráter” e a “preguiça” de inteiras nações e seus respectivos povos.
Se as causas da crise são múltiplas, as soluções, ou melhor, a solução proposta é apenas uma: austeridade e corte de gastos. Uma solução que, por si só, apenas contribui para retro-alimentar, ao invés de resolver, o problema inicial, aumentando o custo social da crise e contribuindo para um círculo vicioso de austeridade, que gera desemprego e retração econômica, que produzem, por sua vez, um aumento da dívida nacional em relação ao PIB, o que demanda mais austeridade, com mais desemprego e retração, e assim por diante.
O próprio fato de que diversos partidos em toda a Europa, sejam eles classificados como de direita ou de esquerda, elejam a pauta “auti-austeridade” como principal plataforma política diz muito sobre a atual crise e sobre o atual embate político europeu. Para além da tradicional disputa entre direita e esquerda, a agenda da “austeridade” parece aglutinar em torno de si uma plataforma política própria e auto-referente, capaz de capturar os principais partidos de “centro” atualmente no poder, ao mesmo tempo em que atrai a oposição dos extremos à esquerda e à direita, todos eles, em certa medida, “anti-austeridade”.
Se no plano da vida pessoal de cada um de nós, a austeridade pode ser vista como uma virtude, no atual discurso sobre a crise mundial ela é certamente um vício. Devemos separar, aqui, austeridade de responsabilidade fiscal. Responsabilidade fiscal é (ou deveria ser) sinônimo de uma boa gestão pública: transparência na gestão dos recursos e relativo equilíbrio entre receitas e despesas. O problema é que responsabilidade fiscal é apenas um dos lados da moeda, moeda em seu sentido literal mesmo, enquanto meio oficial de pagamento. Se a fiscalidade representada o seu lado público, o lado privado da moeda é representado pelo sistema financeiro, capaz de expandir e contrair o volume monetário de um país (poderíamos dizer até, de todo o globo) independentemente da vontade política de governos e do controle exercido pelos bancos centrais. A irresponsabilidade, corrupção e falta de transparência do sistema financeiro internacional está no coração da atual crise. As soluções propostas, no entanto, concentram-se quase que unicamente no lado da fiscalidade: austeridade e corte de gastos. Ou seja, o lado “público” e “nacional” da moeda e das finanças em geral. O que obviamente não irá funcionar enquanto o lado “privado” e “internacional” continuar fora do alcance dos mecanismos de controle e regulação típicos de qualquer regime democrático.
A crise grega é um excelente exemplo dos paradoxos da política de austeridade. A maioria dos economistas e cientistas sociais, independentemente da sua orientação ideológica, estão plenamente conscientes de que, no contexto de uma união monetária como a europeia, medidas de austeridade não resolverão os problemas da Grécia, apenas contribuirão para aprofundá-los. A população afetada pela crise também sabe, melhor do que ninguém, que essas medidas não funcionaram e não irão funcionar. A covardia política das principais lideranças europeias, assim como a mediocridade das suas respectivas “tecnocracias”, contribuem, todavia, para a manutenção do atual estado de inércia, que apenas tende a agravar o sofrimento da população grega. Cabe a essa população, portanto, e apenas a ela, decidir sobre o ultimato que lhe foi dado.
Já os autores do ultimato deveriam reservar um momento, ainda que breve, para a auto-reflexão. Se realmente se sentem “desconfortáveis”, “ameaçados” ou “intimidados” por um governo de “esquerda radical” – que, aliás, não propôs nada de radical, tendo se disposto a aceitar condições que muitos sequer considerariam razoáveis – o que sentirão se vierem a ser confrontados pelos movimentos verdadeiramente extremistas que têm ganhado força no continente? Diante de uma pauta de “direita radical”, com sua orientação xenófoba, racista e claramente anti-europeia, a questão da austeridade será provavelmente o menor dos problemas.
Advogado da União, Guilherme Cintra Guimarães é doutorando em Ciência Política pela “Università degli Studi Roma Tre”.
O detalhes da negociação são complexos e intrincados. Envolvem medidas como ampliação de empréstimos, metas de superávit fiscal, tributação, corte de gatos, diminuição de pensões e aposentadorias, alterações na legislação trabalhista, entre outras assim chamadas “reformas estruturais”. O mesmo receituário ortodoxo imposto há mais ou menos cinco anos atrás e cujos resultados foram definitivamente catastróficos: um quarto da economia grega foi pelos ares, 25% da população está atualmente desempregada, com mais da metade da juventude sem trabalho, a taxa de suicídio aumentou em 35% e centenas de milhares de pessoas foram reduzidas a uma situação de pobreza extrema, situação essa pouco comum entre os europeus, ao menos no período pré-crise e se desconsiderarmos as (péssimas) condições de vida de grande parte da população imigrante.
O curioso é que o atual governo grego, eleito em janeiro de 2015 com uma plataforma anti-austeridade e geralmente classificado, no espectro ideológico, como de “esquerda radical”, já havia aceitado a imposição de condições extremamente rigorosas, que muitos acreditam serem contrárias as suas próprias promessas eleitorais, como superávit primário crescente, alta de impostos e novos limites na concessão de pensões. O governo grego cedeu, os credores não. Eles queriam mais: mais cortes em salários e pensões, mais aumento generalizado de impostos e mais restrição de direitos trabalhistas. O recente mandato popular conferido ao governo grego parece não ter tido qualquer peso. Democracia não é, certamente, um termo comum no jargão dos “eurocratas”. Era pegar ou largar.
Diante do ultimato, restou ao governo grego a alternativa provavelmente mais sensata: endereçar o ultimato àqueles que sofrerão diretamente as suas consequências, isto é, à própria população grega, que deverá decidir se aceita ou não a proposta intransigente dos seus credores em um referendo a ser realizado no próximo domingo, dia 05 de julho de 2015.
A guerra midiática já começou. O governo grego, coerente com sua própria plataforma eleitoral, já se manifestou a favor do “não” ao ultimato e iniciou sua campanha para tentar convencer a população a seguir o mesmo caminho. Já outros líderes europeus se apressaram em advertir os gregos de que um eventual “não” significará a saída da Grécia da zona do euro, mesmo na ausência de disposições jurídicas que indiquem ser essa a consequência inevitável. O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, se disse “traído” pelo governo grego e afirmou que a União Europeia está do lado dos gregos, ao contrário do governo, mesmo tendo esse mesmo governo sido recentemente eleito pela sua própria população. Para finalizar, uma declaração polêmica: “não cometam suicídio apenas pelo medo de morrer”, um “conselho” bastante infeliz, devido ao alto índice de suicídios na Grécia recente, o maior de toda a Europa.
Diversos fatores e hipóteses têm sido levantados para explicar a atual crise grega, crise que representa, na verdade, apenas a dimensão mais trágica de uma crise mundial de proporções muito maiores e consequências ainda imprevisíveis. Os mais comuns são: falhas no desenho original do euro, discrepância acentuada entre a situação econômica dos diversos países membros, investimentos pouco transparentes e de alto risco realizados por bancos e demais instituições financeiras europeias, corrupção e irresponsabilidade fiscal de vários dos governos no continente, até explicações mais estereotipas e preconceituosas que especulam sobre o “caráter” e a “preguiça” de inteiras nações e seus respectivos povos.
Se as causas da crise são múltiplas, as soluções, ou melhor, a solução proposta é apenas uma: austeridade e corte de gastos. Uma solução que, por si só, apenas contribui para retro-alimentar, ao invés de resolver, o problema inicial, aumentando o custo social da crise e contribuindo para um círculo vicioso de austeridade, que gera desemprego e retração econômica, que produzem, por sua vez, um aumento da dívida nacional em relação ao PIB, o que demanda mais austeridade, com mais desemprego e retração, e assim por diante.
O próprio fato de que diversos partidos em toda a Europa, sejam eles classificados como de direita ou de esquerda, elejam a pauta “auti-austeridade” como principal plataforma política diz muito sobre a atual crise e sobre o atual embate político europeu. Para além da tradicional disputa entre direita e esquerda, a agenda da “austeridade” parece aglutinar em torno de si uma plataforma política própria e auto-referente, capaz de capturar os principais partidos de “centro” atualmente no poder, ao mesmo tempo em que atrai a oposição dos extremos à esquerda e à direita, todos eles, em certa medida, “anti-austeridade”.
Se no plano da vida pessoal de cada um de nós, a austeridade pode ser vista como uma virtude, no atual discurso sobre a crise mundial ela é certamente um vício. Devemos separar, aqui, austeridade de responsabilidade fiscal. Responsabilidade fiscal é (ou deveria ser) sinônimo de uma boa gestão pública: transparência na gestão dos recursos e relativo equilíbrio entre receitas e despesas. O problema é que responsabilidade fiscal é apenas um dos lados da moeda, moeda em seu sentido literal mesmo, enquanto meio oficial de pagamento. Se a fiscalidade representada o seu lado público, o lado privado da moeda é representado pelo sistema financeiro, capaz de expandir e contrair o volume monetário de um país (poderíamos dizer até, de todo o globo) independentemente da vontade política de governos e do controle exercido pelos bancos centrais. A irresponsabilidade, corrupção e falta de transparência do sistema financeiro internacional está no coração da atual crise. As soluções propostas, no entanto, concentram-se quase que unicamente no lado da fiscalidade: austeridade e corte de gastos. Ou seja, o lado “público” e “nacional” da moeda e das finanças em geral. O que obviamente não irá funcionar enquanto o lado “privado” e “internacional” continuar fora do alcance dos mecanismos de controle e regulação típicos de qualquer regime democrático.
A crise grega é um excelente exemplo dos paradoxos da política de austeridade. A maioria dos economistas e cientistas sociais, independentemente da sua orientação ideológica, estão plenamente conscientes de que, no contexto de uma união monetária como a europeia, medidas de austeridade não resolverão os problemas da Grécia, apenas contribuirão para aprofundá-los. A população afetada pela crise também sabe, melhor do que ninguém, que essas medidas não funcionaram e não irão funcionar. A covardia política das principais lideranças europeias, assim como a mediocridade das suas respectivas “tecnocracias”, contribuem, todavia, para a manutenção do atual estado de inércia, que apenas tende a agravar o sofrimento da população grega. Cabe a essa população, portanto, e apenas a ela, decidir sobre o ultimato que lhe foi dado.
Já os autores do ultimato deveriam reservar um momento, ainda que breve, para a auto-reflexão. Se realmente se sentem “desconfortáveis”, “ameaçados” ou “intimidados” por um governo de “esquerda radical” – que, aliás, não propôs nada de radical, tendo se disposto a aceitar condições que muitos sequer considerariam razoáveis – o que sentirão se vierem a ser confrontados pelos movimentos verdadeiramente extremistas que têm ganhado força no continente? Diante de uma pauta de “direita radical”, com sua orientação xenófoba, racista e claramente anti-europeia, a questão da austeridade será provavelmente o menor dos problemas.
Advogado da União, Guilherme Cintra Guimarães é doutorando em Ciência Política pela “Università degli Studi Roma Tre”.