segunda-feira, 1 de junho de 2015

A incivilidade gourmet




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Carta Capital, 01/06/2016


A incivilidade gourmet

 
Por Luiz Gonzaga Belluzzo


O ex-ministro da Fazenda Guido Mantega foi, outra vez, hostilizado. Depois dos hospitais, as grosserias elegeram os restaurantes de São Paulo. Fâmulos da distopia da barbárie chic, os ofensores  atarraxaram a máscara da indignação para simular pertinência à vida civilizada. Em editorial publicado na terça-feira 26, a Folha de S.Paulo lamentou o “exagero” da hostilidade dirigida ao ex-ministro Guido. Ocorreu-me sugerir ao editorialista lamentar os “exageros” antissemitas de Adolph Hitler.

Esses espécimes confirmam diariamente a resposta do Mahatma Gandhi a um desavisado que desfraldou o estandarte da civilização ocidental diante de seus olhos: “A civilização ocidental teria sido uma boa ideia”.

A esse episódio de incivilidade gourmet agregam-se outros momentos de extasiada celebração do próprio mau gosto, tal como a manifestação do advogado Danilo Amaral. Arrogando-se o direito de patrulhar consciências, disparou impropérios contra o ex-ministro da Saúde, Alexandre Padilha, responsável pela implantação do Programa Mais Médicos. Suspeito que o senhor Danilo Amaral esteja disposto a patrocinar o programa Menos Médicos.

Em entrevista à Folha de S.Paulo, o sociólogo espanhol Manuel Castells chegou a tempo de enfiar o dedo nas escancaradas escaras da sociedade brasileira. “O Brasil sempre foi agressivo... Nos tempos da ditadura, o debate não só era agressivo, como se torturavam pessoas com impunidade. A imagem mítica do brasileiro simpático só existe no samba. Na relação entre as pessoas, sempre foi violento. A sociedade brasileira não é simpática, é uma sociedade que se mata.

Para os leitores de Sérgio Buarque de Holanda, o sociólogo espanhol apenas redescobre as raízes da sociedade brasileira plantadas nos terraços da escravidão, entre a casa-grande e suas senzalas. Nesse espaço da sociabilidade à brasileira germinam os grãos que cevam as hipocrisias do “homem cordial”, avesso a regras e amigo da informalidade que consagra a lei do mais forte. O brasileiro “cordial” carrega em seu caráter as peculiaridades das relações de dominação que organizam a vida social no país do Carnaval, do futebol (decadente) e da sensualidade por demais exuberante para ser bem resolvida.

Diz Sérgio Buarque nas Raízes do Brasil que o pensamento liberal democrático pode ser resumido na frase de Bentham: “A maior felicidade para o maior número. A isso se opõem os valores cordiais e oligárquicos. Sob a capa do afeto, o cordialismo esconde as crueldades da discriminação e da desigualdade. Rasgado o véu conveniente da benevolência, emerge da mansidão hipócrita a inclemente violência do mandonismo e da submissão: “O senhor sabe com quem está falando?” “Coloque-se no seu lugar.”

Os ululantes atacam nas ruas e nos restaurantes com as armas do preconceito, da intolerância e da apologia da brutalidade, sem falar nos atropelos à língua portuguesa. Veja o caro leitor que em restaurante de “uma região nobre de São Paulo”, um aspirante à nobreza dos bairros nobres bateu panela ao discutir o valor da conta com o garçom de restaurante: “Você não pode discutir comigo porque não fez faculdade”. E completou: “É por causa desses preguiçoso e analfabeto que o Brasil não vai pra frente”. Descontado erro grosseiro de concordância – “desses preguiçoso e analfabeto” –, sobrou a grotesca expressão “não fez faculdade”, típica do semianalfabeto com diploma de curso superior incapaz de perceber o tamanho de sua ignorância. A valorização do curso superior cumpre, hoje, a função discriminatória da era do bacharelismo: “No vício do bacharelismo”, dispara Sérgio Buarque, “ostenta-se também a tendência para exaltar acima de tudo nossa personalidade individual, como valor próprio, superior às contingências.”

Nos idos de 2015, os Senhores da Terra Brasilis e seus encapuçados capitães do mato entregam-se, mais uma vez, com o trovejar da fúria, aos trabalhos de revelar suas entranhas ao mundo. Na fétida exibição das tripas, a argumentação razoável cede passagem ao dedo indicador apontado para o adversário ou divergente. A personalidade autoritária que muitos sonhavam exercitar à esquerda encontrou seus espaços nos confortáveis e oportunos palanques da direita brasileira, hoje comandada por figuras de segunda classe. Exageros da cordial alma brasileira.

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