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Carta Maior, 14/06/2015
Cunha: o nome expressa a função
Por Saul Leblon
Quando um personagem encarna uma correlação de forças adversa e o faz de forma tão desabrida a ponto de soar caricatural, é comum catalisar a resistência e a rejeição do polo oposto.
Eduardo Cunha, o presidente da Câmara, carrega no nome a função que lhe coube na história. No universo militar, ‘cunha’ define uma ação sabotadora preliminar. ‘Consiste em introduzir em território inimigo soldados, espiões ou comandos especiais’, diz o dicionário Caldas Aulete.
Dito e feito. A agenda do presidente da Câmara inclui sacramentar o poder do dinheiro grosso sobre os partidos, a homofobia, a terceirização total do trabalho, a redução da maioridade penal e outras miunças de igual calibre.
Foi por justiça homenageado no V Congresso do PT, que terminou sábado em Salvador. E retribuiu as vaias no twitter: ‘Agradeço as manifestações de hostilidade no congresso do PT. Significa que estou no caminho certo. Ficaria preocupado se fosse aplaudido ali’.
Não ficou por aí. Ao Congresso petista que dobrou a aposta em uma parceria pela governabilidade como PMDB, retrucou ferino: ‘Não vejo o PMDB com o PT em 2018. Essa aliança esgotou’.
Quando a linearidade dos personagens e a evidência dos conflitos se expõe assim de forma tão explícita, sem que as instituições políticas se mostrem adequadas para resolvê-los, abre-se um horizonte de empate histórico marcado por crises sucessivas, cujo papel é o de devorar seus atores, até que surjam novos arranjos dotados de força e consentimento social para destravar o passo seguinte da história.
Cunha não ocuparia o espaço no qual se espoja não fosse esse equilíbrio precário de dois garfos espetados em faces opostas de uma rolha em pé, na quina de uma mesa.
A rolha é a encruzilhada do desenvolvimento brasileiro.
O Congresso do PT não vislumbrou um atalho capaz de destravar esse mutualismo autodestrutivo.
Quase sem respirar, o partido se sustenta em um lado da rolha, enquanto Cunha cospe fogo na extremidade oposta em nome dos interesses sabidos
Sua função, como o próprio nome indica (e o pejo que causa em interesses que defende, ilustra, caso da Folha que o critica em editorial neste domingo) tem a efemeridade de uma etapa.
Limpa o trilho para algo pior. Embora nutra delírios presidenciais (ou vice-presidenciais, ao lado de Alckmin), sua funcionalidade equivale a de um enxergão da história.
Trata-se daquele artefato rudimentar de palha grosseira utilizado para forrar o estrado, sobre o qual as elites depositarão o colchão de mola para deitar e rolar nas costas do Brasil.
Um veículo internacional amigo dos mercados resumiu: Cunha é o homem que a direita procurava.
O que o deprecia é o seu mérito: Cunha une maus modos com determinação e absoluto despudor em atropelar as aparências dos punhos de renda da República de Higienópolis.
Os açougueiros da história não raro cometem exageros na sangra das peças. Emporcalham o avental e não primam pela higiene ao manusear a faca, a serra e a machadinha no cepo ensanguentado do embate político — mas entregam o essencial.
O essencial que a elite espera de Cunha é destrinchar o governo Dilma como um frango desossado da Sadia e pendurá-lo, junto com os petistas, em um gancho de aço no freezer da história.
Até escoar o calendário para as eleições de 2018.
A aristocracia alemã também não considerava Hitler um dos seus. Nem os ricaços italianos amavam Mussolini. Nos anos de chumbo muitas famílias de ‘bem’ preferiam não saber o que o delegado Fleury fazia em nome da causa no Brasil.
Eppur giravam seus interesses em torno desses centuriões aturando suas ‘extravagâncias’. Dos males, o menor.
O intercurso com os negócios, a homofobia, a moral gordurosa dos pastores salafrários nunca foi obstáculo à clientela que orbita em torno do cepo desses açougueiros datados.
No 2º turno de sua última derrota em São Paulo, nas eleições municipais de 2012, Serra mostrou a que ponto vai essa elasticidade quando um interesse mais alto se alevanta.
Ao prenúncio da derrota iminente o tucano recorreu a um interlocutor cirurgicamente escolhido para reforçar a musculatura do vale tudo na disputa: o pastor radialista Silas Malafaia, que veio diretamente do Rio de Janeiro apresentar armas à campanha, no posto de procônsul para os bons costumes, conspurcados, acusava o tucano, pelo kit-gay criado pelo adversário, Fernando Haddad, quando ministro da educação.
O pacto do além com o aquém seria festejado em manchete sulforosa do caderno de política da 'Folha’, a mesma que agora critica Cunha em editorial à moda Pilatos. Assim: "Líder evangélico diz que vai 'arrebentar' candidato petista - Silas Malafaia afirma que Haddad apoia ativistas gay".
O título em 3 linhas de 3 colunas emoldurava foto imensa de Serra (meia pág. em 3 colunas), empunhando uma criança adestrada em fazer o '45',
O conjunto ainda inspira calafrios.
A hostilidade beligerante de Serra em relação a adversários - inclusive os do próprio partido - pontuava ali um novo degrau na determinação conservadora de resgatar a extensão regressiva do filtro religioso na política.
A moda pegou e hoje deve ser creditada como mais uma modernidade trazida ao país pelos intelectuais iluministas de Higienópolis.
O posto de Malafaia em 2012 é ocupado agora por Cunha.
O editorial da Folha deste domingo lava as mãos. Mas não purifica a ética de vernissage de certa inteligência paulista.
Faz tempo que em certos círculos incorporou-se a licença do vale-tudo para vencer o PT, a quem se acusa de sepultar os princípios éticos da esquerda.
O pacto obscurantista selado por Serra antes com Malafaia, agora com Cunha e Renan (para implodir o pré-sal) ilustra a travessia edificante.
Quem achava que depois da caça ao kit gay de 2012 estaria esgotado o estoque de excrescências nessa gincana errou.
Cunha é o açougueiro que ouve sermões de Malafaia em altos decibéis enquanto destrincha o governo, os direitos trabalhistas, a liberdade sexual, enfim, aleija e decepa a Constituição de 1988 e aviva os impulsos medievais da sociedade contra ela mesma.
A essa altura, tudo o que pedem certos círculos da inteligência tucana é que 2018 chegue logo.
Mas ainda faltam três anos e seis meses.
Dá tempo, por exemplo, de Cunha resgatar um projeto apresentado por Serra na disputa municipal de 2012, em São Paulo, destinado a inibir a criminalidade do menor.
Em entrevista à amigável rádio CBN, então, o tucano prometeu aos ouvintes: se eleito, criaria um programa de monitoramento de jovens com 'propensão' para cometer crimes.
Como? Um braço da ex-Febem, explicou Serra à emissora da rede Globo, agindo, (secretamente, supõe-se), dentro das escolas das periferias vigiaria jovens. Nas palavras do então candidato tucano: "(Aqueles que) ainda não entraram para o mundo do crime, mas que podem ter propensão para isso".
Alguém já pensou isso antes. Combater o crime identificando preventivamente o criminoso foi o propósito do criminologista e psiquiatra italiano, Cesare Lombroso (1835-1909), que se dedicou ao estudo da ‘antropologia criminal’.
O furor atual pela redução da maioridade tem aí um pé de apoio a considerar.
Está longe de ser apenas ‘moral’ e preventiva, porém, a ofensiva de Cunha para higienizar o país.
Cada vez mais ela ganha dimensões de um mutirão ecumênico determinado a afastar todo e qualquer obstáculo que se puser no caminho da hegemonia conservadora plena.
Na 4ª feira da semana passada, por exemplo, o presidente da Câmara mandou um recado ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Diante da possibilidade de a ministra Rosa Weber conceder liminar que anula a aprovação em primeiro turno do financiamento privado de campanha, Cunha comunicou ao presidente do STF, Ricardo Lewandowski, que isso poderia trazer retaliações ao Judiciário.
Age com o fervor da legítima defesa.
Na última campanha eleitoral, Cunha recebeu R$ 6,8 milhões em doações de empresas como Vale, AmBev, Bradesco, Santander, Safra e Shopping Iguatemi.
Antes, Cunha - e seu general de operações, Renan Calheiros, presidente do Senado, já havia ameaçado o Procurador geral da República, Rodrigo Janot, por investigá-lo. Pequenos partidos de sua base particular também foram constrangidos por contrariá-lo na reforma política com a qual pretende reduzir a lei eleitoral a sua imagem e semelhança.
À mídia que objetivamente o embala, Cunha recorda amiúde que qualquer projeto de regulação das comunicações depende do seu humor para entrar na pauta ou na gaveta do Congresso. Estabeleceu-se aqui um paradoxal mutualismo entre parasitas.
O pragmatismo propiciou-lhe apreciável cacife.
No seu quarto mandato consecutivo, o autor do projeto pela criação do Dia do Orgulho Heterossexual foi aplaudido ao depor em CPI que deveria investigá-lo sobre desvios da Petrobras.
O policial Jayme de Oliveira Filho, mula do doleiro Youssef, afirma que entregou malas de dinheiro em uma casa na Barra da Tijuca que seria de Eduardo Cunha. A pauta escafedeu-se das colunas da indignação seletiva hoje ocupadas em externar chiliques contra as doações legais ao Instituto Lula.
Cunha é um entreposto de interesses.
Líder da bancada evangélica e fiel da Igreja Sara Nossa Terra, o presidente da Câmara foi um dos principais opositores do Marco Civil da Internet fazendo lobby das telefônicas, que discordavam da neutralidade da rede.
Sua sentença sobre a liberação do aborto é autoexplicativa: ‘Só se for sobre meu cadáver’. E para que não haja dúvida da disposição mortífera, protocolou um projeto que estabelece até 10 anos de prisão para médicos acusados de práticas abortivas.
A ficha corrida desse Comodoro dos bons costumes acumula dois inquéritos em ‘andamento’: o de 2984/2010 apura o recurso a documentação falsa; o 3056 acusa crimes contra a ordem tributária.
Não só.
No Tribunal Regional da Primeira Região, ele é réu no processo 0031294-51.2004.4.01.3400 -- ação civil pública movida pelo Ministério Público Estadual.
No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, é alvo do processo 0026321-60.2006.8.19.0001. Improbidade administrativa.
No Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro responde ao processo 59664.2011.619: captação ilícita de sufrágio. No mesmo tribunal é réu no processo 9488.2010.619.0153. Acusação: abuso de poder econômico em campanha eleitoral.
No Tribunal Superior Eleitoral, responde por captação ilícita de sufrágio; processo 707/2007.
A cepa de origem explica o desembaraço diante dos imprevistos.
A carreira meteórica do presidente da Câmara teve como padrinho o tesoureiro do ex-presidente Fernando Collor, o falecido PC Farias.
Cunha foi o responsável pelas finanças do comitê carioca na campanha collorida de 1989.
Precisa desenhar?
Na vitória coube-lhe a presidência da antiga Telerj, a companhia telefônica do Rio, da qual seria demitido em seguida.
Motivo: corrupção.
Em 1999, o então governador Anthony Garotinho deu-lhe a presidência da Companhia Estadual de Habitação.
Durou seis meses.
Foi defenestrado em meio a um novo escândalo de corrupção.
Ágil, como soem ser as rapinas, escapou elegendo-se deputado estadual em 2001.
Desde então soube fazer da imunidade a mola propulsora de uma carreira vitaminada pela radiodifusão.
Seu programa de rádio consagra mote sugestivo ao desembaraço ético: ‘O povo merece respeito’
Nenhuma das questões essenciais que interessam à população brasileira encontrará resposta na crispação da lógica conservadora da qual esse personagem expressionista é o açougueiro alheio às boas maneiras.
As vaias recebidas no Congresso do PT não são injustas, mas ingênuas. E sobretudo incompletas nos desdobramentos competentes.
O país que se modela no interior do açougue é pior do que aquele desfigurado no cepo no qual Cunha pilota o banho de sangue conservador no país.
A receita temperada nos bastidores para desequilíbrios que são sérios é a da salmoura neoliberal definitiva. Menos Estado para se ter mais mercado; menos igualdade para se ter mais eficiência; menos salário para se ter mais investimento; menos democracia para se delegar ainda mais poder ao dinheiro organizado.
A esquerda brasileira dispõe de reservas intelectuais, tem experiência de luta, goza de respeitáveis lideranças políticas. Tem a densidade de movimentos sociais para afrontar esse projeto com um outro que pavimente a construção de uma verdadeira democracia social.
O V Congresso do PT não explicitou a disposição de ser o catalisador desse processo que permanece em aberto.
O partido de certa forma transferiu o embate para 2018.
É uma aposta de alto risco na mitigação da crise por obra e graça do ajuste de mercado.
Resta saber até que ponto, com esse gesto, não compromete de vez a única alternativa consequente à ofensiva conservadora em curso.
Ou seja, a construção de uma frente popular e democrática capaz de oferecer as respostas críveis ao futuro sombrio do qual Cunha é só o estandarte mais saliente.
Quando um personagem encarna uma correlação de forças adversa e o faz de forma tão desabrida a ponto de soar caricatural, é comum catalisar a resistência e a rejeição do polo oposto.
Eduardo Cunha, o presidente da Câmara, carrega no nome a função que lhe coube na história. No universo militar, ‘cunha’ define uma ação sabotadora preliminar. ‘Consiste em introduzir em território inimigo soldados, espiões ou comandos especiais’, diz o dicionário Caldas Aulete.
Dito e feito. A agenda do presidente da Câmara inclui sacramentar o poder do dinheiro grosso sobre os partidos, a homofobia, a terceirização total do trabalho, a redução da maioridade penal e outras miunças de igual calibre.
Foi por justiça homenageado no V Congresso do PT, que terminou sábado em Salvador. E retribuiu as vaias no twitter: ‘Agradeço as manifestações de hostilidade no congresso do PT. Significa que estou no caminho certo. Ficaria preocupado se fosse aplaudido ali’.
Não ficou por aí. Ao Congresso petista que dobrou a aposta em uma parceria pela governabilidade como PMDB, retrucou ferino: ‘Não vejo o PMDB com o PT em 2018. Essa aliança esgotou’.
Quando a linearidade dos personagens e a evidência dos conflitos se expõe assim de forma tão explícita, sem que as instituições políticas se mostrem adequadas para resolvê-los, abre-se um horizonte de empate histórico marcado por crises sucessivas, cujo papel é o de devorar seus atores, até que surjam novos arranjos dotados de força e consentimento social para destravar o passo seguinte da história.
Cunha não ocuparia o espaço no qual se espoja não fosse esse equilíbrio precário de dois garfos espetados em faces opostas de uma rolha em pé, na quina de uma mesa.
A rolha é a encruzilhada do desenvolvimento brasileiro.
O Congresso do PT não vislumbrou um atalho capaz de destravar esse mutualismo autodestrutivo.
Quase sem respirar, o partido se sustenta em um lado da rolha, enquanto Cunha cospe fogo na extremidade oposta em nome dos interesses sabidos
Sua função, como o próprio nome indica (e o pejo que causa em interesses que defende, ilustra, caso da Folha que o critica em editorial neste domingo) tem a efemeridade de uma etapa.
Limpa o trilho para algo pior. Embora nutra delírios presidenciais (ou vice-presidenciais, ao lado de Alckmin), sua funcionalidade equivale a de um enxergão da história.
Trata-se daquele artefato rudimentar de palha grosseira utilizado para forrar o estrado, sobre o qual as elites depositarão o colchão de mola para deitar e rolar nas costas do Brasil.
Um veículo internacional amigo dos mercados resumiu: Cunha é o homem que a direita procurava.
O que o deprecia é o seu mérito: Cunha une maus modos com determinação e absoluto despudor em atropelar as aparências dos punhos de renda da República de Higienópolis.
Os açougueiros da história não raro cometem exageros na sangra das peças. Emporcalham o avental e não primam pela higiene ao manusear a faca, a serra e a machadinha no cepo ensanguentado do embate político — mas entregam o essencial.
O essencial que a elite espera de Cunha é destrinchar o governo Dilma como um frango desossado da Sadia e pendurá-lo, junto com os petistas, em um gancho de aço no freezer da história.
Até escoar o calendário para as eleições de 2018.
A aristocracia alemã também não considerava Hitler um dos seus. Nem os ricaços italianos amavam Mussolini. Nos anos de chumbo muitas famílias de ‘bem’ preferiam não saber o que o delegado Fleury fazia em nome da causa no Brasil.
Eppur giravam seus interesses em torno desses centuriões aturando suas ‘extravagâncias’. Dos males, o menor.
O intercurso com os negócios, a homofobia, a moral gordurosa dos pastores salafrários nunca foi obstáculo à clientela que orbita em torno do cepo desses açougueiros datados.
No 2º turno de sua última derrota em São Paulo, nas eleições municipais de 2012, Serra mostrou a que ponto vai essa elasticidade quando um interesse mais alto se alevanta.
Ao prenúncio da derrota iminente o tucano recorreu a um interlocutor cirurgicamente escolhido para reforçar a musculatura do vale tudo na disputa: o pastor radialista Silas Malafaia, que veio diretamente do Rio de Janeiro apresentar armas à campanha, no posto de procônsul para os bons costumes, conspurcados, acusava o tucano, pelo kit-gay criado pelo adversário, Fernando Haddad, quando ministro da educação.
O pacto do além com o aquém seria festejado em manchete sulforosa do caderno de política da 'Folha’, a mesma que agora critica Cunha em editorial à moda Pilatos. Assim: "Líder evangélico diz que vai 'arrebentar' candidato petista - Silas Malafaia afirma que Haddad apoia ativistas gay".
O título em 3 linhas de 3 colunas emoldurava foto imensa de Serra (meia pág. em 3 colunas), empunhando uma criança adestrada em fazer o '45',
O conjunto ainda inspira calafrios.
A hostilidade beligerante de Serra em relação a adversários - inclusive os do próprio partido - pontuava ali um novo degrau na determinação conservadora de resgatar a extensão regressiva do filtro religioso na política.
A moda pegou e hoje deve ser creditada como mais uma modernidade trazida ao país pelos intelectuais iluministas de Higienópolis.
O posto de Malafaia em 2012 é ocupado agora por Cunha.
O editorial da Folha deste domingo lava as mãos. Mas não purifica a ética de vernissage de certa inteligência paulista.
Faz tempo que em certos círculos incorporou-se a licença do vale-tudo para vencer o PT, a quem se acusa de sepultar os princípios éticos da esquerda.
O pacto obscurantista selado por Serra antes com Malafaia, agora com Cunha e Renan (para implodir o pré-sal) ilustra a travessia edificante.
Quem achava que depois da caça ao kit gay de 2012 estaria esgotado o estoque de excrescências nessa gincana errou.
Cunha é o açougueiro que ouve sermões de Malafaia em altos decibéis enquanto destrincha o governo, os direitos trabalhistas, a liberdade sexual, enfim, aleija e decepa a Constituição de 1988 e aviva os impulsos medievais da sociedade contra ela mesma.
A essa altura, tudo o que pedem certos círculos da inteligência tucana é que 2018 chegue logo.
Mas ainda faltam três anos e seis meses.
Dá tempo, por exemplo, de Cunha resgatar um projeto apresentado por Serra na disputa municipal de 2012, em São Paulo, destinado a inibir a criminalidade do menor.
Em entrevista à amigável rádio CBN, então, o tucano prometeu aos ouvintes: se eleito, criaria um programa de monitoramento de jovens com 'propensão' para cometer crimes.
Como? Um braço da ex-Febem, explicou Serra à emissora da rede Globo, agindo, (secretamente, supõe-se), dentro das escolas das periferias vigiaria jovens. Nas palavras do então candidato tucano: "(Aqueles que) ainda não entraram para o mundo do crime, mas que podem ter propensão para isso".
Alguém já pensou isso antes. Combater o crime identificando preventivamente o criminoso foi o propósito do criminologista e psiquiatra italiano, Cesare Lombroso (1835-1909), que se dedicou ao estudo da ‘antropologia criminal’.
O furor atual pela redução da maioridade tem aí um pé de apoio a considerar.
Está longe de ser apenas ‘moral’ e preventiva, porém, a ofensiva de Cunha para higienizar o país.
Cada vez mais ela ganha dimensões de um mutirão ecumênico determinado a afastar todo e qualquer obstáculo que se puser no caminho da hegemonia conservadora plena.
Na 4ª feira da semana passada, por exemplo, o presidente da Câmara mandou um recado ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Diante da possibilidade de a ministra Rosa Weber conceder liminar que anula a aprovação em primeiro turno do financiamento privado de campanha, Cunha comunicou ao presidente do STF, Ricardo Lewandowski, que isso poderia trazer retaliações ao Judiciário.
Age com o fervor da legítima defesa.
Na última campanha eleitoral, Cunha recebeu R$ 6,8 milhões em doações de empresas como Vale, AmBev, Bradesco, Santander, Safra e Shopping Iguatemi.
Antes, Cunha - e seu general de operações, Renan Calheiros, presidente do Senado, já havia ameaçado o Procurador geral da República, Rodrigo Janot, por investigá-lo. Pequenos partidos de sua base particular também foram constrangidos por contrariá-lo na reforma política com a qual pretende reduzir a lei eleitoral a sua imagem e semelhança.
À mídia que objetivamente o embala, Cunha recorda amiúde que qualquer projeto de regulação das comunicações depende do seu humor para entrar na pauta ou na gaveta do Congresso. Estabeleceu-se aqui um paradoxal mutualismo entre parasitas.
O pragmatismo propiciou-lhe apreciável cacife.
No seu quarto mandato consecutivo, o autor do projeto pela criação do Dia do Orgulho Heterossexual foi aplaudido ao depor em CPI que deveria investigá-lo sobre desvios da Petrobras.
O policial Jayme de Oliveira Filho, mula do doleiro Youssef, afirma que entregou malas de dinheiro em uma casa na Barra da Tijuca que seria de Eduardo Cunha. A pauta escafedeu-se das colunas da indignação seletiva hoje ocupadas em externar chiliques contra as doações legais ao Instituto Lula.
Cunha é um entreposto de interesses.
Líder da bancada evangélica e fiel da Igreja Sara Nossa Terra, o presidente da Câmara foi um dos principais opositores do Marco Civil da Internet fazendo lobby das telefônicas, que discordavam da neutralidade da rede.
Sua sentença sobre a liberação do aborto é autoexplicativa: ‘Só se for sobre meu cadáver’. E para que não haja dúvida da disposição mortífera, protocolou um projeto que estabelece até 10 anos de prisão para médicos acusados de práticas abortivas.
A ficha corrida desse Comodoro dos bons costumes acumula dois inquéritos em ‘andamento’: o de 2984/2010 apura o recurso a documentação falsa; o 3056 acusa crimes contra a ordem tributária.
Não só.
No Tribunal Regional da Primeira Região, ele é réu no processo 0031294-51.2004.4.01.3400 -- ação civil pública movida pelo Ministério Público Estadual.
No Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, é alvo do processo 0026321-60.2006.8.19.0001. Improbidade administrativa.
No Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro responde ao processo 59664.2011.619: captação ilícita de sufrágio. No mesmo tribunal é réu no processo 9488.2010.619.0153. Acusação: abuso de poder econômico em campanha eleitoral.
No Tribunal Superior Eleitoral, responde por captação ilícita de sufrágio; processo 707/2007.
A cepa de origem explica o desembaraço diante dos imprevistos.
A carreira meteórica do presidente da Câmara teve como padrinho o tesoureiro do ex-presidente Fernando Collor, o falecido PC Farias.
Cunha foi o responsável pelas finanças do comitê carioca na campanha collorida de 1989.
Precisa desenhar?
Na vitória coube-lhe a presidência da antiga Telerj, a companhia telefônica do Rio, da qual seria demitido em seguida.
Motivo: corrupção.
Em 1999, o então governador Anthony Garotinho deu-lhe a presidência da Companhia Estadual de Habitação.
Durou seis meses.
Foi defenestrado em meio a um novo escândalo de corrupção.
Ágil, como soem ser as rapinas, escapou elegendo-se deputado estadual em 2001.
Desde então soube fazer da imunidade a mola propulsora de uma carreira vitaminada pela radiodifusão.
Seu programa de rádio consagra mote sugestivo ao desembaraço ético: ‘O povo merece respeito’
Nenhuma das questões essenciais que interessam à população brasileira encontrará resposta na crispação da lógica conservadora da qual esse personagem expressionista é o açougueiro alheio às boas maneiras.
As vaias recebidas no Congresso do PT não são injustas, mas ingênuas. E sobretudo incompletas nos desdobramentos competentes.
O país que se modela no interior do açougue é pior do que aquele desfigurado no cepo no qual Cunha pilota o banho de sangue conservador no país.
A receita temperada nos bastidores para desequilíbrios que são sérios é a da salmoura neoliberal definitiva. Menos Estado para se ter mais mercado; menos igualdade para se ter mais eficiência; menos salário para se ter mais investimento; menos democracia para se delegar ainda mais poder ao dinheiro organizado.
A esquerda brasileira dispõe de reservas intelectuais, tem experiência de luta, goza de respeitáveis lideranças políticas. Tem a densidade de movimentos sociais para afrontar esse projeto com um outro que pavimente a construção de uma verdadeira democracia social.
O V Congresso do PT não explicitou a disposição de ser o catalisador desse processo que permanece em aberto.
O partido de certa forma transferiu o embate para 2018.
É uma aposta de alto risco na mitigação da crise por obra e graça do ajuste de mercado.
Resta saber até que ponto, com esse gesto, não compromete de vez a única alternativa consequente à ofensiva conservadora em curso.
Ou seja, a construção de uma frente popular e democrática capaz de oferecer as respostas críveis ao futuro sombrio do qual Cunha é só o estandarte mais saliente.
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