terça-feira, 2 de junho de 2015

Em defesa do direito à reeleição

Em defesa do direito à reeleição


Por Paulo Moreira Leite
 
 
 

O debate sobre o fim da reeleição é mais importante do que parece e merece mais do que um minuto de reflexão por parte de quem se preocupa com o destino de um país com os problemas e desafios do Brasil.

Não acho surpreendente que o projeto tenha sido apresentado por Rodrigo Maia, uma das estrelas do DEM e do conservadorismo nacional, partido que é a mais límpida herança dos partidos da ditadura militar.

Também não é estranho que tenha recebido apoio daquelas lideranças que adoram dançar no passo da música de cada momento, trocando de opinião e visão de mundo como escolhe um investimento ou aposta numa corrida de cavalos. O critério, aqui, é negocista: consiste na opção do mercado ideológico que promete retorno mais conveniente e mais rápido.

Compreende-se que o fim da reeleição tenha se tornado uma ideia aceitável em vários ambientes. O país atravessa, desde 2005, uma campanha permanente de criminalização da política e dos políticos.

O saldo mais visível desse processo é a desfiguração absurda do Partido dos Trabalhadores, produto de um massacre contínuo e especialmente injusto, na medida em que nenhum outro fez mais pela população assalariada e pobre do país, mas não só. O processo atinge o conjunto dos partidos brasileiros, personagens de um mesmo ambiente ideologicamente construído. Seu efeito mais nocivo consiste em negar a ideia, que dá sentido à democracia, de que a política não é um solilóquio de bacharéis nem um seminário de ideias geniais mas pode servir para promover escolhas úteis e necessárias ao bem estar da maioria.

Através de ataques permanentes ao PT, a AP 470 e a Lava Jato ajudaram a consolidar a noção de que a política e os políticos não servem para nada, não merecem a confiança de pessoas honestas, mas servem apenas de instrumento para aproveitadores.

Por essa razão, e nenhuma outra, uma parcela considerável dos brasileiros está convencida de que nenhum político pode permanecer por um longo período à frente do Estado. Inevitavelmente irá cometer deslizes, alimentar processos irregulares e, claro, favorecer a corrupção.

Converse com as pessoas que pedem a volta do regime militar, que apoiam o impeachment de Dilma sem a menor base em fatos reais. Ouça aquelas que xingam ministros e também aquelas que simpatizam, silenciosamente, com quem xinga ministros. Pergunte para quem tem ódio e quer a extinção do PT. Essa é a ideologia em curso, radical e antidemocrática. Se ela despreza uma eleição, mas até pode engolir, classifica a reeleição como um insulto. É anti-democrático e coerente. É a antipolítica, ante-sala mental de toda ditadura.

É preocupante verificar que essa mesma visão possa ser partilhada, hoje, por partidos e lideranças que — mesmo reconhecendo erros e tropeços colossais — têm uma história de compromissos com a transformação do país, que produziu benefícios reconhecidos na última década, que nenhum observador honesto é capaz de negar.

Vamos aceitar que nosso atraso não foi uma decisão improvisada da semana passada. É um produto histórico, “uma obra de séculos”, como definiu Nelson Rodrigues.

Nessa situação, aquela condição que na década de 1960 era chamada de “subdesenvolvimento” não pode ser revertida nem superada em quatro ou cinco anos, que serão revertidos no mandato seguinte, e invertidos de novo, e mais uma vez.

Entender a definição de Nelson Rodrigues implica em reconhecer que as eleições podem até permitir a vitória de um candidato progressista — mas não tem o poder de modificar, do dia para a noite, os personagens principais e a cultura de um Estado construído para funcionar, em todos os escalões, como instrumento para conservar da ordem vigente, a partir de uma cúpula burocrática e estável, que funciona como correia de transmissão dos interesses dominantes na Justiça, na polícia, nas Forças Armadas, na educação e assim por diante.

A título de exemplo, e só para raciocinar um pouco, imagine se Lula tivesse encerrado sua passagem pela presidência da República em 2006. Pense na crise de 2008, quando o país fez uma aposta no contra-ciclo da recessão e impediu que a economia se transformasse numa Grécia tropical. Imagine, também, o que teria ocorrido com os programas sociais, as políticas públicas e mesmo aquelas iniciativas que, mesmo realizadas até a metade, carregando inúmeras imperfeições, contribuíram para beneficiar milhões de pessoas.

E se a visão de Lula hoje não é uma unanimidade do mesmo tamanho que possuía tempos atrás, pense em Franklin Roosevelt. Empossado em 1932 para combater a política de austeridade republicana que transformou uma crise financeira na Grande Depressão, iniciou a política de recuperação econômica e estímulos ao crescimento no mesmo dia da posse. Mas em 1936, final do primeiro mandato, a reação republicana era tão forte que Roosevelt enfrentou uma reeleição difícil. Mesmo vitorioso, tomou posse sobre uma pressão imensa. Infiltradas em seu governo, no próprio partido, nos vários escalões do Estado, as noções de política econômica longamente cultivadas pelos adversários históricos voltaram a imperar. Os programas de estímulo ao crescimento foram substuídos por tradicionais políticas de austeridade. Dizia-se que a recessão havia terminado e que era hora de elevar os juros. O New Deal foi colocado sob ameaça imediata. Mas Roosevelt havia sido reeleito — não era um representante da reação republicana. Tinha a legitimidade do voto popular, do mandato confirmado. Reconheceu o erro, fez as correções necessárias e a economia norte-americana recuperou o passo perdido.

O fim da reeleição é isso. Busca transformar a possibilidade de alternância no poder, direito sagrado das democracias e de todo cidadão — trocar um governo que não está dando certo — em regra de funcionamento do Estado.

Na prática, serve para radicalizar a máxima perfeita para definir o conservadorismo dos tempos modernos, aquele que se baseia na noção de mudança como simples falsa promessa, em jogos de cena e troca de pessoal, numa coreografia que exige que tudo mude para que nada mude, como se aprende em O Leopardo, a obra prima de dom Tomasi de Lampeduza.

O que se quer é institucionalizar a política como puro exercício de curto prazo, blindado contra mudanças maiores, que possibilitam, no máximo, medidas paliativas, frequentemente descartáveis, 100% inofensivas, em grande parte simbólicas — daí o gosto contemporâneo por alterações na legislação comportamental, que afetam a vida privada, mas não implicam em mudanças de maior alcance social.

Porque o objetivo, meus amigos, o objetivo real é manter tudo como como está.
Desse ponto de vista, mais importante do que o exercício do poder, é impedir que um Outro ocupe as rédeas do Estado e, se o fizer, não tenha condições de seguir em frente. É parte do projeto de não deixar o Estado funcionar, não deixar o governo funcionar, já definido pelo professor Paulo Arantes.

É parte do mesmo estrangulamento político que leva à independência do Banco Central, que entrega o comando da política financeira a representantes do próprio mercado financeiro. É parte do projeto de terceirização, que tenta eliminar a CLT para deixar os direitos dos assalariados nas mãos dos empresários.

O que se pretende é impedir a democracia funcionar em sua plenitude. Arrancar um braço, mutilar, para que as escolhas do povo não sejam livres, mas tuteladas.

Porque ninguém está falando em reeleição como um processo automático — mas em direito à reeleição. Isso quer dizer que, no dia do pleito, os eleitores deverão sair de casa, dirigir-se à urna e digitar a senha de seu candidato preferido. Ninguém fará isso por eles. Será preciso que a maioria queira a reeleição de determinado candidato, de livre e espontânea vontade. Ninguém poderá fazer a escolha por eles.

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