terça-feira, 2 de junho de 2015

O ódio seletivo




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Observatório da Imprensa, 02/06/2015


O ódio seletivo


Por Eduardo Silveira de Menezes



Não restam dúvidas de que a “memória seletiva” do maior conglomerado de mídia do Brasil – o Grupo Globo – opera como um mecanismo estruturante do analfabetismo político para o qual alertava o dramaturgo alemão Bertold Brecht no século 20. Basta considerar a cobertura do Jornal Nacional (JN) em relação a dois fatos de maior relevância para o interesse público: a reforma política que está em curso no Congresso Nacional e os casos de corrupção envolvendo a Federação Internacional de Futebol (Fifa). Em ambos, silencia-se o ódio à democracia; um sentimento construído pela fúria insana dos que marcham alienadamente representando os interesses das velhas oligarquias.

A privatização do poder em benefício de uma minoria, tão bem problematizada pelo filósofo Jacques Ranciére no livro Ódio à Democracia, recentemente publicado pela Boitempo Editorial, só pode ser compreendida com uma leitura crítica do processo de construção da informação. Ao noticiar as mudanças decorrentes da Proposta de Emenda à Constituição (PEC 182/07), sobretudo em relação à aprovação do fim da reeleição para cargos executivos, na edição do dia 28 de maio de 2015, a repórter Zileide Silva diz que a proposta teve apoio de quase todos os partidos, inclusive do PSDB, o qual, de acordo com a matéria, teria apenas “apoiado a reeleição na política brasileira”.

Seria ingenuidade pensar que a emissora da família Marinho desconhece um importante elemento da informação que foi ocultado de seus telespectadores; isto é, o contexto político vivenciado em 1997, cujo escândalo da compra de votos veio acompanhado do famoso decreto 1.720 – uma segunda moeda de troca utilizada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) para viabilizar a reeleição.

A sequência da matéria, apresentando a entrevista concedida pelo líder do partido na Câmara, deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP), torna o texto jornalístico em questão digno de uma peça publicitária. Ao dizer que a reeleição “cumpriu seu período histórico”, o parlamentar nada fala sobre as motivações do referido processo. Não fala – e, obviamente, não é questionado pela repórter –, por exemplo, sobre os quase dois mil aliados que foram beneficiados por uma ordem direta do Executivo, que, à época, concedeu 319 outorgas somente para afiliadas da Rede Globo.


Ódio seletivo

O fato do atual governo não ameaçar os interesses do grupo Globo não interfere na oposição declarada à presidenta Dilma Rousseff e, em especial, ao Partido dos Trabalhadores (PT), pois se trata de um ódio de classe. Por mais que o governo esteja mantendo e, em certa medida, intensificando o projeto neoliberal –veja-se o encaminhamento da Lei da Terceirização (PL 4330) e o ajuste fiscal que estão em curso –, o compromisso histórico com o trabalhador, mesmo traído, continua a causar ojeriza nos grandes grupos de mídia.

A Rede Globo está acostumada a servir o poder oligárquico e, neste ponto, o texto de Ranciére, mesmo escrito com base no contexto francês, mostra-se extremamente adequado ao momento político brasileiro. Para o autor, o ódio à democracia representa o ódio à igualdade; um ódio que é diferenciador. Sob a luz desta reflexão, pode-se dizer que nem todos, de acordo com a leitura conservadora da família Marinho, seriam “destinados ao exercício do poder”. Não será preciso aprofundar-se sobre o envolvimento ideológico do Grupo Globo com forças golpistas, mas esta referência é importante. As parcerias com a companhia de mídia norte-americana Time-Life e o bom relacionamento com o general Castelo Branco, na década de 1960, foram fundamentais para a construção de um império midiático que nenhum governo ousa sequer questionar.

O caso de sonegação da Globo ao adquirir os direitos de transmissão das Copas do Mundo de 2002 e 2006, amplamente divulgado em sites alternativos e nas redes sociais, é outro ponto revelador sobre como se constrói o ódio à democracia. É interessante observar o oportunismo com o qual se classificam os crimes de favorecimento ilícito nas coberturas jornalísticas. As manifestações de indignação com os casos de corrupção na Petrobras são direcionados apenas ao período atual, desconsiderando, assim, as suspeitas de que o esquema poderia ter origem ainda no governo FHC.


As “marchas pela liberdade”

Além disso, vale lembrar que o principal noticiário de repercussão nacional é veiculado por uma emissora que foi multada em mais de R$ 600 milhões de reais por sonegar impostos. Esta não parece ser a fonte mais indicada para tratar dos escândalos de corrupção envolvendo a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), mas é a de maior audiência. Os direitos de transmissão de campeonatos de futebol, adquiridos junto à agência de marketing esportivo Traffic Group, cujo proprietário, José Hawilla, é dono de uma TV afiliada à Rede Globo no interior paulista, estão no foco das investigações do Departamento de Justiça dos EUA.

O editorial apresentado por William Bonner durante o JN na noite de 27 de maio, um dia antes de ser veiculada a reportagem sobre a aprovação do fim da reeleição na Câmara, segue a lógica do silenciamento. A reportagem veiculada pela emissora trata do esquema de corrupção envolvendo a venda de direitos de transmissão de campeonatos como a Copa América e a Copa do Brasil, mas nada fala sobre o Campeonato Brasileiro. Embora seja feita uma referência ao ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, que declarou haver indícios de que os crimes investigados nos Estados Unidos também tenham sido cometidos no Brasil, cinicamente silencia-se o caso envolvendo a Rede Globo, a qual, para assegurar a compra dos direitos de transmissão das Copas de 2002 e 2006, formou uma empresa de fachada – a Empire.

Nesse contexto, infelizmente, não é de se estranhar que um suposto “ódio à corrupção” não passe, verdadeiramente, de ódio à democracia, com recorte de classe. O orgulho de vestir a camisa da CBF nas “marchas anticorrupção” revela a incapacidade de contemporização dos que aderem ao movimento. Estufa-se o peito dizendo “odiar a política”, “odiar o vermelho”, “odiar o comunismo”, “odiar o PT”, “odiar a Dilma”, mas, na verdade, procura-se ter um alvo bem definido para um sentimento de impotência decorrente da alienação. Em meio à ignorância política, mandam-se às favas o processo histórico e político inerentes a corrupção que acomete não só os três poderes, mas também as instituições esportivas. Para o “analfabeto político”, o fim da reeleição e a venda dos direitos de transmissão são vistos sob o mesmo enfoque. Julgam-se, espertos e bem informados.

Afinal, acreditam estar diante de mais uma “frase de impacto” para levar nas “marchas pela liberdade”, desde que não resolvam, é claro, agendar os “protestos” pedindo a intervenção militar para os dias e horários que a Rede Globo transmite as partidas de futebol.


Eduardo Silveira de Menezes é professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pelotas

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