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Carta Maior, 05/06/2015
O panelaço e as formas do protesto social
Por Leonardo Avritzer
Vivemos no Brasil, desde Junho de 2013, um momento muito particular. Depois de décadas de total hegemonia da cena social e participativa por atores de esquerda, começamos a partir de Junho de 2013 a ter manifestações públicas fortemente conservadoras no Brasil. Em um primeiro momento, estas manifestações nada mais que pluralizaram o campo da participação e da manifestação social no país. Estas formas de manifestação se tornaram ainda mais fortes no começo de 2015, em especial no último mês de Março quando começaram a ocorrer os chamados panelaços e manifestações abertas de intolerância política no Brasil. Vale a pena analisar estes novos repertórios da ação coletiva que foram instituídos no Brasil nestes últimos meses.
A ação coletiva tem muitas formas como nos ensinou há muitos décadas, Charles Tilly. Ele mostrou que havia uma diferença fundamental entre as formas de ação coletiva dos camponeses na França no século XVIII que faziam bloqueio de estradas e os trabalhadores ingleses e francês do século XIX que passaram a fazer manifestações públicas e piquetes na entrada das fábricas. No Brasil conhecemos bem as formas da ação coletiva que estão presentes na ação dos movimentos sociais desde a década de 1980: abaixo assinados, manifestações públicas, greves e ocupação de terras, são as formas principais de ação dos movimentos sociais urbanos e rurais. Estas são as formas que foram utilizadas em Junho de 2013 quando o campo da mobilização social no Brasil começou a se pluralizar e passamos a ter tanto manifestações progressistas quanto manifestações conservadores. No entanto, apenas em março de 2015 foi introduzido um novo elemento da ação coletiva, o panelaço. Vale a pena destrinchar o significado deste ato.
O panelaço não tem origem no Brasil. Ele é uma invenção latino-americana que foi utilizada pela primeira vez em uma marcha em 1971 de atores de classe média contra o governo de Salvador Allende. Ele também foi fortemente utilizado na Argentina em 2001, em manifestações contra o então presidente De la Rua. Tem uma característica dos cacerolazos ou panelaços sul-americanos que vale a pena ressaltar porque ela não está presente no Brasil, a saber, os cacerolaços expressam a ida as ruas de uma classe média empobrecida que tem como objetivo mostrar aos governantes que as suas panelas estão vazias. No caso do Brasil não podemos afirmar que a nossa classe média está empobrecida ou que suas panelas estão vazias. Pelo contrário, o Brasil vem de um forte período de expansão econômica entre 2004 e 2012, período este que a classe média brasileira se tornou o maior segmento da população e no qual a renda de todos os sub-segmentos da classe média, da nova à velha classe média aumentou. Assim, as panelas da classe média brasileira não estão vazias e ela não está batendo panelas por este motivo. Resta então a pergunta, qual é o significado de se bater nas panelas?
As panelas estão sendo batidas no Brasil com um significado principal, a interdição da fala do outro. Começando no dia 08 de Março e alcançando o mês de Maio quando o programa do Partido dos Trabalhadores foi exibido na T.V., o recado da classe média brasileira é claro: não estamos dispostos a ouvir nenhum discurso que venha do governo ou do PT. Esta interdição da fala se articula perfeitamente com outros episódios “espontâneos” que assistimos nos últimos meses: a agressão ao ex-ministro da Fazenda no Hospital Albert Einstein em São Paulo no qual ele foi instado a procurar o SUS ou a agressão ao ex-ministro Eliseu Padilha em São Paulo acusado de desperdiçar dinheiro no mais médicos. Em todas estas situações observamos o mesmo fenômeno expresso por uma classe média que veicula a seguinte mensagem: não queremos ouvir e não queremos conviver com pessoas que apoiam o governo ou o Partido dos Trabalhadores. Vale a pena refletir o significado da mensagem.
Existem questões em aberto na conjuntura que merecem uma discussão ampla e aberta e a principal entre elas é a economia. Está bastante clara a posição dos manifestantes de Março e Abril. Eles acham que a presidente mentiu sobre a política econômica e adotou a política proposta pelo seu adversário e tem defendido que a classe média é quem está pagando pelo grosso do ajuste. As duas afirmações são falsas: Dilma não assumiu a posição da oposição. Ela equilibrou na equipe economistas liberais e heterodoxos e moderou o tamanho do ajuste proposto por Aécio e pelo PSDB. Tal equilíbrio tem permitido ao governo se deslocar paulatinamente da posição de um choque ortodoxo para a posição de um equilíbrio entre quem paga a conta com os bancos e possivelmente os recebedores de dividendos pagando por uma parte significativa do ajuste. É evidente que há aqui um espaço para discussão e não para o batimento de panelas. Certamente Dilma precisa explicar a sua posição em relação a economia aos brasileiros, especialmente aos que votaram nela. Bater panelas ao invés de ouvir a presidente não expressa a ideia de que a classe média está pagando pelo ajuste e sim a concepção de que a presidente e não deve ser ouvida, um grande equívoco em termos de política democrática. Mas, a postura em relação aos atores que expressam posições de esquerda é o que mais preocupa nesta conjuntura. Vamos a alguns exemplos.
O exemplo mais patético deste período recente foi a entrega da medalha Tiradentes a João Pedro Stédile. Vale a pena pensar no que foi a Inconfidência Mineira que antecipou várias características da política brasileira, a mais importante entre elas um certo divórcio entre elites e massas. Ao não se propor a abolir a escravidão, a inconfidência já apontava para um pacto de governo por cima entre as elites. Tiradentes foi o único a pagar com a própria vida pela aventura de intelectuais e membros da oficialidade da colônia, estratos aos quais ele não pertencia. No entanto, a sua medalha expressa, no longo prazo a mesma característica do pacto de elites vigente no país. A medalha Tiradentes é distribuída aos próprios membros do sistema político ou a uma intelectualidade com a qual a elite mineira convive. Corajosamente, o governador Fernando Pimentel incluiu o líder do MST, João Pedro Stedile entre os agraciados, recebendo como resposta a desqualificação da liderança dele. O argumento principal é a ilegalidade das invasões de terra, uma das atividades principais da própria elite que o critica. Assim, volta à tona o mesmo significado do episódio das panelas. A exclusão do outro, por uma elite que não admite partilhamento do poder e que expressa esta intolerância publicamente no campo social.
Outros exemplos preocupantes foram os episódios envolvendo os ex-ministros Guido Mantega e Padilha. O episódio envolvendo o ex-ministro Mantega foi mais grave devido ao local no qual ocorreu. O hospital ou as atividades de cuidado e tratamento dos doentes são aquelas em que os indivíduos expressam solidariedade mesmo em relação aos desconhecidos ou aqueles com os quais divergem. A frase com a qual o ministro foi brindado vai “para o SUS” expressa duas características da elite brasileira: o fato de ela ter se acostumou a ter lugares reservados só para ela: aeroportos, restaurantes, hospitais de luxo e o fato correlato de que ela não se importa com a qualidade dos serviços públicos dos locais que ela espera nunca ter de utilizar. Raciocínio parecido se deu na agressão sofrida pelo ex-ministro Padilha. Mais uma vez, o mote foi a saúde no Brasil e vale a pena atentar para a frase pronunciada na ocasião: o ministro foi aquele que desperdiçou mais de um bilhão de reais no mais médicos. Por acaso, este "desperdício" colocou 14.000 novos médicos em mais de 3.000 municípios.
Ou seja, há uma distorção absoluta dos elementos básicos da sociabilidade nos protestos em curso no Brasil. Se a indignação com a corrupção pode ter sido um desencadeador destes protestos, ela já está bem longe no momento em que o MBL tira fotos com Eduardo Cunha e Aécio Neves parece ser o herói de alguns dos “pseudo-indignados”. Os protestos evoluíram para elementos claros de intolerância em relação à pluralidade política e a diversidade social. Eles expressam elementos de intolerância social dificilmente encontráveis em outros países. Cabe a aqueles perplexos com a conjuntura agir para retomar os elementos da sociabilidade capazes de conciliar o pluralismo social com o debate aberto, leal e sem preconceitos que a democracia brasileira precisa travar neste momento.
A ação coletiva tem muitas formas como nos ensinou há muitos décadas, Charles Tilly. Ele mostrou que havia uma diferença fundamental entre as formas de ação coletiva dos camponeses na França no século XVIII que faziam bloqueio de estradas e os trabalhadores ingleses e francês do século XIX que passaram a fazer manifestações públicas e piquetes na entrada das fábricas. No Brasil conhecemos bem as formas da ação coletiva que estão presentes na ação dos movimentos sociais desde a década de 1980: abaixo assinados, manifestações públicas, greves e ocupação de terras, são as formas principais de ação dos movimentos sociais urbanos e rurais. Estas são as formas que foram utilizadas em Junho de 2013 quando o campo da mobilização social no Brasil começou a se pluralizar e passamos a ter tanto manifestações progressistas quanto manifestações conservadores. No entanto, apenas em março de 2015 foi introduzido um novo elemento da ação coletiva, o panelaço. Vale a pena destrinchar o significado deste ato.
O panelaço não tem origem no Brasil. Ele é uma invenção latino-americana que foi utilizada pela primeira vez em uma marcha em 1971 de atores de classe média contra o governo de Salvador Allende. Ele também foi fortemente utilizado na Argentina em 2001, em manifestações contra o então presidente De la Rua. Tem uma característica dos cacerolazos ou panelaços sul-americanos que vale a pena ressaltar porque ela não está presente no Brasil, a saber, os cacerolaços expressam a ida as ruas de uma classe média empobrecida que tem como objetivo mostrar aos governantes que as suas panelas estão vazias. No caso do Brasil não podemos afirmar que a nossa classe média está empobrecida ou que suas panelas estão vazias. Pelo contrário, o Brasil vem de um forte período de expansão econômica entre 2004 e 2012, período este que a classe média brasileira se tornou o maior segmento da população e no qual a renda de todos os sub-segmentos da classe média, da nova à velha classe média aumentou. Assim, as panelas da classe média brasileira não estão vazias e ela não está batendo panelas por este motivo. Resta então a pergunta, qual é o significado de se bater nas panelas?
As panelas estão sendo batidas no Brasil com um significado principal, a interdição da fala do outro. Começando no dia 08 de Março e alcançando o mês de Maio quando o programa do Partido dos Trabalhadores foi exibido na T.V., o recado da classe média brasileira é claro: não estamos dispostos a ouvir nenhum discurso que venha do governo ou do PT. Esta interdição da fala se articula perfeitamente com outros episódios “espontâneos” que assistimos nos últimos meses: a agressão ao ex-ministro da Fazenda no Hospital Albert Einstein em São Paulo no qual ele foi instado a procurar o SUS ou a agressão ao ex-ministro Eliseu Padilha em São Paulo acusado de desperdiçar dinheiro no mais médicos. Em todas estas situações observamos o mesmo fenômeno expresso por uma classe média que veicula a seguinte mensagem: não queremos ouvir e não queremos conviver com pessoas que apoiam o governo ou o Partido dos Trabalhadores. Vale a pena refletir o significado da mensagem.
Existem questões em aberto na conjuntura que merecem uma discussão ampla e aberta e a principal entre elas é a economia. Está bastante clara a posição dos manifestantes de Março e Abril. Eles acham que a presidente mentiu sobre a política econômica e adotou a política proposta pelo seu adversário e tem defendido que a classe média é quem está pagando pelo grosso do ajuste. As duas afirmações são falsas: Dilma não assumiu a posição da oposição. Ela equilibrou na equipe economistas liberais e heterodoxos e moderou o tamanho do ajuste proposto por Aécio e pelo PSDB. Tal equilíbrio tem permitido ao governo se deslocar paulatinamente da posição de um choque ortodoxo para a posição de um equilíbrio entre quem paga a conta com os bancos e possivelmente os recebedores de dividendos pagando por uma parte significativa do ajuste. É evidente que há aqui um espaço para discussão e não para o batimento de panelas. Certamente Dilma precisa explicar a sua posição em relação a economia aos brasileiros, especialmente aos que votaram nela. Bater panelas ao invés de ouvir a presidente não expressa a ideia de que a classe média está pagando pelo ajuste e sim a concepção de que a presidente e não deve ser ouvida, um grande equívoco em termos de política democrática. Mas, a postura em relação aos atores que expressam posições de esquerda é o que mais preocupa nesta conjuntura. Vamos a alguns exemplos.
O exemplo mais patético deste período recente foi a entrega da medalha Tiradentes a João Pedro Stédile. Vale a pena pensar no que foi a Inconfidência Mineira que antecipou várias características da política brasileira, a mais importante entre elas um certo divórcio entre elites e massas. Ao não se propor a abolir a escravidão, a inconfidência já apontava para um pacto de governo por cima entre as elites. Tiradentes foi o único a pagar com a própria vida pela aventura de intelectuais e membros da oficialidade da colônia, estratos aos quais ele não pertencia. No entanto, a sua medalha expressa, no longo prazo a mesma característica do pacto de elites vigente no país. A medalha Tiradentes é distribuída aos próprios membros do sistema político ou a uma intelectualidade com a qual a elite mineira convive. Corajosamente, o governador Fernando Pimentel incluiu o líder do MST, João Pedro Stedile entre os agraciados, recebendo como resposta a desqualificação da liderança dele. O argumento principal é a ilegalidade das invasões de terra, uma das atividades principais da própria elite que o critica. Assim, volta à tona o mesmo significado do episódio das panelas. A exclusão do outro, por uma elite que não admite partilhamento do poder e que expressa esta intolerância publicamente no campo social.
Outros exemplos preocupantes foram os episódios envolvendo os ex-ministros Guido Mantega e Padilha. O episódio envolvendo o ex-ministro Mantega foi mais grave devido ao local no qual ocorreu. O hospital ou as atividades de cuidado e tratamento dos doentes são aquelas em que os indivíduos expressam solidariedade mesmo em relação aos desconhecidos ou aqueles com os quais divergem. A frase com a qual o ministro foi brindado vai “para o SUS” expressa duas características da elite brasileira: o fato de ela ter se acostumou a ter lugares reservados só para ela: aeroportos, restaurantes, hospitais de luxo e o fato correlato de que ela não se importa com a qualidade dos serviços públicos dos locais que ela espera nunca ter de utilizar. Raciocínio parecido se deu na agressão sofrida pelo ex-ministro Padilha. Mais uma vez, o mote foi a saúde no Brasil e vale a pena atentar para a frase pronunciada na ocasião: o ministro foi aquele que desperdiçou mais de um bilhão de reais no mais médicos. Por acaso, este "desperdício" colocou 14.000 novos médicos em mais de 3.000 municípios.
Ou seja, há uma distorção absoluta dos elementos básicos da sociabilidade nos protestos em curso no Brasil. Se a indignação com a corrupção pode ter sido um desencadeador destes protestos, ela já está bem longe no momento em que o MBL tira fotos com Eduardo Cunha e Aécio Neves parece ser o herói de alguns dos “pseudo-indignados”. Os protestos evoluíram para elementos claros de intolerância em relação à pluralidade política e a diversidade social. Eles expressam elementos de intolerância social dificilmente encontráveis em outros países. Cabe a aqueles perplexos com a conjuntura agir para retomar os elementos da sociabilidade capazes de conciliar o pluralismo social com o debate aberto, leal e sem preconceitos que a democracia brasileira precisa travar neste momento.
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