segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Na Grécia, um Joaquim Levy não leva mais o povo na conversa








Carta Maior, 26/01/2015



Na Grécia, Levy não leva



Por Saul Leblon
 
 
 
 
 
A suposição sobre a qual tudo se apoia é conhecida.

A saber:  o governo toma as medidas econômicas que os mercados e seus ventríloquos preconizam - algumas necessárias, como o reajuste dos combustíveis;  outras discutíveis - o encarecimento do crédito, por exemplo, em um quadro de desaquecimento da economia;  e não poucas indesejáveis - entre estas, sobressaem a alta dos juros, mudanças em salvaguardas trabalhistas e o desmonte da função indutora do BNDES e demais bancos públicos no desenvolvimento do país.

Missão cumprida, o que deve ocorrer ao longo deste ano, avisam os otimistas, os detentores do capital encerrariam a greve de investimentos em curso no Brasil. Novos projetos e planos de expansão engavetados nos últimos dois anos voltariam à agenda dos negócios recolocando a economia na  rota de um novo eldorado de expansão puxado pelo desejável investimento privado.

Mais que isso: a inflação retrocederia, as exportações alçariam voo de cruzeiro, o déficit em contas correntes (de preocupantes 4% em 2014) despencaria; o Brasil, enfim, voltaria a ser um pujante  canteiros de obras, a jorrar empregos e salários por todos os poros.

A leveza com que essas ideias frequentam os prólogos e epílogos dos colunismo de mercado é notável.

Nesse mundo idílico, a confiança dos investidores e a ‘reversão das expectativas pessimistas dos mercados’ só dependeria de o país adotar o ‘bom senso’ na gestão fiscal e a ‘racionalidade dos mercados’ na macroeconomia, predicados que, como se sabe não comparecem entre as qualidades atribuídas ao PT, aos ‘economistas da Unicamp’ e a ‘Dilma interventora’.

Por sorte, então, lançou-se mão do que há de melhor na praça.

Joaquim Levy, la crème de la crème da cepa de zeladores de confiança do dinheiro grosso, assumiu o leme do barco.

Sem cerimônia, ele acena com um cavalo de pau. Garante que assim desviará a sociedade da rota de colisão com o rochedo dos desequilíbrios macroeconômicos para reconduzi-la ao porto seguro dos fundamentos sadios e austeros.

Tudo o mais permanece constante na vida dos nacionais?

Como não se pensou nisso antes: trocar a mediação de fato de Lula - entre o governo e sociedade - pela austeridade de Levy?

Quanto tempo e dor de cabeça teriam nos poupado a troca da política conturbada e contraditória para a  formação de maiorias, pela matemática clara e afiada como um punhal da austeridade?

Eureka!?

Os gregos que o digam.

E o que eles disseram neste domingo nas urnas, de forma algo sonora e incontestável, é que a receita de arrocho vendida aqui como o atalho óbvio ao paraíso  na prática consiste em um mergulho ao inferno com passagem de só de ida.

A de volta há que ser comprada das mãos do diabo.

Ou tomada à força. Como eles acabam de fazer neste domingo, sob a fuzilaria de ameaças e chantagens de um apocalipse financeiro.

Inútil.

Os  votos majoritários dados à esquerda, o Syriza, numa eleição histórica, alteram a correlação de forças na Europa e colocam a agenda neoliberal na defensiva ante o encorajamento de possíveis novas rupturas. Na Espanha em maio, por exemplo, com o Podemos.

Com 149 cadeiras obtidas no Congresso, um resultado superior aos cálculos mais otimistas, a esquerda grega passa a depender de apenas mais duas adesões para ter a maioria legislativa, necessária para as reformas e renegociações ansiadas pela população.

A crise terminal vivida pela Grécia – um país literalmente insolvente e preso a uma camisa de força cambial (o euro) - nem de longe se equipara aos solavancos vividos pelo Brasil na atual transição de ciclo de crescimento.

Mas a tragédia protagonizada nos últimos seis anos funciona como uma espécie de endoscopia das consequências sociais e institucionais de se entregar aos mercados o comando e o destino de uma nação.

Nesse aspecto o basta de domingo pode e deve ser lido com um olho na Europa e o outro no Brasil.

A percolação da tragédia na pirâmide social grega escancarou os custos humanos e econômicos de se preservar a lógica da ganância financeira como discutível moeda de troca para ‘resgatar a confiança dos mercados e dos investidores’.

A promessa, que durante seis anos escalpelou cada fio de cabelo do povo grego, ao mesmo  tempo em que se exigia que ele se reerguesse puxando o que restou com as próprias mãos, não foi entregue a tempo de se evitar a rejeição eleitoral do domingo.

O que se deu, ao contrário, foi uma odisseia às profundezas do arrocho mais dramático já enfrentado por um povo desde o início do século XX – superior à Grande Depressão norte-americana de 1929.

O ponto a reter é que a vida da população não apenas não melhorou, como se alardeava em defesa dos ‘sacrifícios’.

Ela foi capturada por um liquidificador desgovernado que interditou qualquer traço de segurança social, desidratou qualquer gota de certeza em relação ao amanhã e interditou a esperança no futuro.

Nos últimos seis anos, o PIB da Grécia  retrocedeu 25%; o desemprego saltou de 8,3% - no início do programa de austeridade - para 27% (é de 50% entre a juventude); a dívida mantem-se em assustadores 170%  do PIB (€ 322 bilhões).

Renegociar um  desconto de 50% é o chão firme defendido pelo vencedor das eleições deste domingo para, a partir daí, deslocar a Grécia do atoleiro para um retorno gradual à viabilidade econômica e social.

Trata-se, é preciso dizer, de uma ruptura.

Há seis anos  a prioridade de Atenas é adequar o país aos 'programas de ajuste' traduzidos em sucessivos cortes orçamentários.

No interior do metabolismo social deu-se o previsível.

Mas há detalhes que ainda desconcertam: o orçamento da educação, por exemplo, sofreu um corte de 60% nessa razia.

Em miúdos: a rede pública de ensino dispõe atualmente de quatro de cada dez euros que recebia em 2010.

Não há como preservar o essencial quando 60% do alicerce desaba.

Inclua-se no essencial a merenda.

Das periferias mais pobres surgiram nos últimos anos relatos de desfalecimentos em sala de aula.

Fraqueza.

Não só a infância foi convocada a pagar em libras de carne aos banqueiros da Alemanha e assemelhados.

Aposentados foram 'convidados' a viver com pensões entre 20% a 30% menores.

O salário mínimo foi cortado em 20%.

Todo o país foi estripado nessa proporção: entre 20% a 25% das vísceras.

Macrodados não conseguem traduzir o que se passa na agonia da vida de uma família quando o facão do arrocho corta a carne com esse talho e essa regularidade.

A camada de gelo mais fina trinca a olhos vistos. Mas é o lago todo que se revolve por baixo em correntes devastadoras.

Governada de forma irresponsável, diga-se, por sucessivos gabinetes antes da crise mundial, a Grécia foi a primeira economia da Zona Euro a ser excluída dos mercados financeiros quando a bolha do crédito fácil estourou.

A partir daí passou a depender dos programas de ‘ajuda’  para respirar.

A lambança precedente sugeria certa legitimidade a um ciclo de maior controle e sacrifícios.

Assim se fez.

Assim se desfez a ilusão na ‘racionalidade’ dos mercados para substituir a ‘sujeira’ da política.

A negociação com a sociedade foi substituída pelos ‘pronunciamentos’ e metas da troika, que durante seis anos fizeram gato e sapato da sociedade e da economia, com implicações iguais ou piores que as distorções que prometiam corrigir .

Vencida a paciência dos gregos, o que se tem depois de tudo é uma economia colapsada, um país desacreditado e uma população disposta a correr todos os riscos para se livrar do lacto purga interminável e devastador.

Essa talvez seja a maior lição das eleições deste domingo: trata-se do grito de alerta emitido por um povo que passou pelo inferno dos ajustes ‘racionais’.

E  justamente por isso decidiu devolver à negociação política a construção do passo seguinte de sua história.

O protagonista que recebe esse mandato não é um partido qualquer.

E nisso também  há algo a se extrair como lição à esquerda brasileira nos dias que correm.

O Syriza não é um partido, mas uma frente de organizações.

Surgiu em 2004 depois de um intenso processo de diálogo iniciado em 2001 entre múltiplas correntes progressistas, incluindo-se de socialistas  a eurocomunistas, passando por ecologistas, maoístas e trotskistas.

Hoje  é composto por doze organizações.

Sua solidez política e consistência programático levou-o a se tornar um polo de convergência de centenas de personalidades independentes, entre elas lideranças que se afastaram do PASOK (Partido Socialista) e do partido comunista grego.

A posição firme e ao mesmo tempo serena da coligação na luta contra o arrocho alargou  sua base de apoio nas ruas e entre a juventude, com adesões maciças entre os Indignados da Praça Syntagma.

A seguir, alguns números que mostram por que,  na Grécia, um Levy não leva mais o povo na conversa:

PIB – a recuperação prometida cedeu lugar a uma contração de 25% da economia entre 2009 e 2013. O desgoverno que era um pesadelo virou um inferno, sob o açoite do arrocho.

Emprego -  mais de um quarto da população ativa do país ficou sem emprego. Antes do ciclo de arrocho a taxa era da ordem de 8%. Entre os jovens, até 35 anos, saltou para 50%, sem perspectiva de se reverter com a manutenção das políticas de ajuste.

Investimento –  a prometida redenção pela retomada do investimento privado revelou-se uma fraude. Admite-se que os níveis pré-crise estavam inflados por conta de gastos públicos irreais  e endividamento privado. Mas o que sobreveio foi o desmoronamento completo desse motor. Asfixiado pela contração da demanda, da renda e do orçamento do Estado, o investimento caiu de 26% do PIB, em 2007, para cerca da metade agora, 13% - o valor mais baixo de toda a zona do euro.

População e vagas - como se vivesse uma guerra, a Grécia viu sua população diminuir nos últimos anos, assim como o seu estoque de empregos. Desde 2009, 150 mil pessoas deixaram o país (1,3% da população) e 850 mil vagas de trabalho foram destruídas (18% do total).

Inflação - A inflação que era de 4% em 2007 caiu para menos 2% nos últimos dois anos. Nada a  comemorar: a deflação reflete o arrocho salarial implacável, cujo objetivo é baratear o ‘custo Grécia’ para dar à economia algum poder de competição nas exportações à Europa. Com o colapso econômico de toda a zona do euro, marcada por recessão e deflação, o sacrifício grego, ademais, mostrou-se inútil.

Dívida - A Grécia protagonizou a maior reestruturação de dívida pública da história, em 2012. Mas o seu peso continua asfixiante em relação a um PIB que se contraiu 25%. A dívida continua a esgoelar a sociedade, situando-se acima de 170% do PIB. É impagável. E é justamente essa certeza que fez a população votar no Syriza que defende um corte de 50% no saldo. Antonio Samaras, o líder do derrotado Nova Democracia, ao contrário, considerava esse enforcador ‘sustentavel’.

Déficit público – Há aqui uma síntese das razões que levaram o eleitor grego a dizer ‘basta’ nas urnas deste domingo: apesar da queda de 25% do PIB nos últimos seis anos, a política de arrocho do Estado grego ainda conseguiu reduzir em mais 10% o gasto fiscal. Não só: simultaneamente, elevou  a receita de 40% para 45%  do PIB, desde 2009. Arrocho por todos os lados e tributação por todos os poros: foi assim que se conseguiu derrubar o déficit público, da ordem de 15% em 2009, para algo como 3% no ano passado.

O colunismo brasileiro abestalhado de tanta ortodoxia aplaudiria de pé.

Mas exatamente por isso terá dificuldades para explicar aos seus leitores por que os gregos rejeitaram, com tanta ênfase e risco, um êxito tão graúdo que aqui se vende como a redenção da lavoura.

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