Justificando, 08/01/2015
Sim, je suiz Charlie. Mas e quanto ao desprezo francês pelo outro e o ódio que ele pode fomentar?
Por Salah H. Khaled Jr.
A disputa pelo capital simbólico da tragédia está em curso. A imprensa está rapidamente se apropriando discursivamente do atentado e consolidando uma imagem como elemento interpretativo do caso: a agressão à liberdade de expressão e, em particular, ao jornalismo. O estandarte está levantado e a campanha está em curso, como se está fosse a grande “lição” a ser extraída do caso: não admitiremos que a liberdade de expressão seja colocada em questão.
Tenho minhas dúvidas. Uma explicação monocausal para um acontecimento tão complexo definitivamente não me satisfaz. A questão não parece se restringir a isso. Ainda que seja cedo demais para estabelecer qualquer conclusão que diga respeito aos motivos por trás do injustificável ataque, é preciso ao menos esboçar os parâmetros necessários para uma análise minimamente responsável.
O fato do atentado ter ocorrido na França e aparentemente ter sido executado por agressores franceses certamente é de alguma relevância para a compreensão do fenômeno. E quando digo isso não escrevo com qualquer intenção de instrumentalização do massacre: não são poucas as manifestações que causam arrepios, indicando que se algo não for feito para “proteger jornalistas” no mundo inteiro a morte das vítimas terá sido em vão. Como se pudesse existir qualquer iniciativa de prevenção e/ou retaliação apta a de algum modo justificar a perda de vidas como um preço aceitável a pagar. É preciso pensar um pouco antes de escrever.
Lentamente começam a surgir interpretações qualificadas do massacre (veja aqui, por exemplo). Não tenho a intenção de revelar a “verdade” sobre o atentado, o que certamente está para além das minhas modestas forças. Também não irei fazer uma análise detalhada do caso ou do histórico dos suspeitos. Quero apenas compartilhar alguns subsídios que me chamam atenção e que podem se mostrar de alguma valia para quem procura uma leitura menos superficial da questão.
Apesar das poucas informações disponíveis, me surpreende que atentados dessa ordem não ocorram com maior frequência na França. E isso não tem relação alguma com a Charlie Hebdo em particular, mas com a própria identidade nacional francesa e com o momento que atravessa a própria França.
Paris é hoje uma cidade visivelmente decadente. A sujeira toma conta das ruas. Mendigos dormem nas calçadas e em alguns locais o cheiro de urina é extremamente forte, como, por exemplo, nos arredores do Centre Pompidou. A cidade está repleta de imigrantes africanos que vendem lembranças para turistas de forma ilegal e são implacavelmente perseguidos pelos policiais quando avistados. Os metrôs estão tomados por vendedores ambulantes e artistas que invadem os vagões e apresentam suas performances na esperança de receber alguns trocados dos passageiros.
Os tempos são difíceis para os franceses: taxas de desemprego batem recordes e o país aparentemente está na contramão de seus principais parceiros europeus. Tudo isso gera enorme inquietação social: milhares de carros foram queimados em protestos na última década. Não é preciso entrar em detalhes. Essas informações estão facilmente disponíveis na internet.
Diante desse contexto, turistas são muitas vezes tratados de forma abertamente hostil: a expressão “turista de merda” é muito popular, particularmente quando há recusa em cair em golpes, como a venda de bilhetes usados de metrô e outros muito mais sofisticados. Os pickpockets afloram, assim como os golpistas de todas as ordens. São comuns os esquemas das mais variadas ordens para iludir estrangeiros, sendo necessário consultar a internet para se assegurar de não cair em um golpe quando visitar Paris. Evidentemente são combatidos pelas autoridades, mas em tempos de crise, os golpistas se multiplicam para além de qualquer possibilidade de controle.
Mas eles não são os únicos problemas: experimente pedir informações em inglês e descubra rapidamente como franceses de todos os estratos sociais podem perder a pose e tratá-lo como um visitante indesejado, apesar da economia francesa precisar desesperadamente do turismo para sobreviver. Por outro lado, arranhe um francês rudimentar e patético e eles provavelmente lhe estenderão a mão com toda simpatia do mundo. A relação com o outro é muito, muito problemática para um país com questões de auto estima por resolver e uma grande crise econômica a superar.
Diante desse contexto, não é por acaso que mais do que nunca os franceses aprofundem sua relação de afetividade com o passado. Qualquer brasileiro se espanta com o espaço que as obras de história ocupam nas livrarias da França, principalmente em comparação com a relativa escassez da literatura jurídica, salvo em livrarias especializadas.
Mas não é uma história geral como a que é estudada no Brasil, por exemplo. Para os franceses, história é essencialmente história da França. São literalmente milhares de obras que retratam um passado glorioso que é devorado por um presente que tem pouco a comemorar. O século XX tem pouco destaque: a humilhação das duas grandes guerras mundiais e o colaboracionismo francês com o Nazismo (muito mais profundo do que os franceses gostariam de admitir) conformam profundas chagas na identidade nacional francesa. Uma identidade que interessa investigar, por sinal.
Diferentemente da tradição alemã, que constrói a identidade desde a perspectiva de um volk (povo) originário e primordial que desfruta de uma história e língua comuns (fundamentalmente com Herder e o Romantismo Alemão, que posteriormente resultou no argumento da superioridade da raça ariana), o critério de nacionalidade francês sempre foi baseado na vontade: na adesão subjetiva ao corpo da nação. Por um lado esse critério parece interessante, já que não impõe limites tão restritivos quanto o critério germânico. Mas para que esse pertencimento seja completo, é preciso abrir mão da diferença e abraçar a normalidade, ou seja, tornar-se efetivamente um francês, o que exige adesão ao padrão imposto como regra.
É aqui que o tão ostentado ideal de igualdade encontra seu ponto de torção, uma vez que a aceitação exige que se abra mão da condição de não igual, ou seja, de diferente. O leitor mais atento certamente percebeu onde quero chegar.
A crise alimenta a xenofobia, que cresce de forma assombrosa. É fácil culpar o outro pelas dificuldades. São eles, os diferentes, os imigrantes (mesmo os oriundos de países que foram colônias francesas) os bodes expiatórios mais convenientes para as dificuldades que os franceses enfrentam. Tudo isso cria um contexto favorável para que o ódio prospere e seja apropriado como capital simbólico pelos próprios políticos, pois é um discurso que rende dividendos.
Os franceses historicamente demonstram enorme dificuldade para lidar com a diferença. Se apegam desesperadamente a um orgulho doentio pelas realizações do passado e simultaneamente acumulam enorme mágoa pela perda de relevância no presente.
Na França o diferente é no máximo tolerado (como estorvo) e raramente respeitado como outro. Basta pensar na injustificável proibição da burca em lugares públicos, expressão máxima de uma tentativa de imposição de homogeneidade para um corpo social que é extremamente heterogêneo. A França tem a maior população islâmica da Europa Ocidental, com cerca de cinco milhões de muçulmanos, muitos deles franceses nativos, que se sentem injustificadamente oprimidos, pois estão fora do padrão normalizado francês. Não é difícil que o sentimento de opressão experimentado por essa população seja canalizado por extremistas radicais e eventualmente dê causa à violência, por mais mal direcionada que ela possa aparentar. A incompreensão facilmente se degenera em ódio mútuo.
É evidente que não se está aqui de modo algum justificando este ou qualquer outro atentado, muito menos dando vazão para que atos de inaceitável violência possam ser tidos como legítima resistência. Mas a normalização forçada de Paris assusta, principalmente se contrastada com o autêntico melting pot que é Londres, uma capital europeia em que a diferença desfila pelas ruas de forma majestosa.
Os franceses devem enfrentar essas questões, sob pena do pior cenário possível se materializar: que o atentado atinja o espírito da Charlie Hebdo de forma tão impactante como atingiu as vidas de seus colaboradores, dando margem para que a xenofobia cresça e o discurso de extrema direita ganhe ainda mais impulso, em um espiral ascendente de ódio com resultados imprevisíveis. É preciso atentar para o fato de que o mundo islâmico reprovou de forma veemente o massacre e que as ações isoladas de alguns indivíduos não podem ser tidas como representativas de um setor tão significativo da própria sociedade francesa. A história mostra que os discursos de ódio ao outro em nome da defesa do mesmo podem facilmente se prestar aos piores massacres. Que não seja esse o resultado último dessa tragédia, cujas consequências podem atingir muito mais pessoas do que os agressores e as vítimas originais.
Lutar contra essa interpretação desastrosa talvez seja a forma mais digna de honrar o trabalho de quem tanto combateu os radicalismos de todas as ordens. É o que resta. Je suiz Charlie!
Salah H. Khaled Jr. é Doutor e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS) e Mestre em História (UFRGS). É Professor da Faculdade de Direito e do Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014. É Conselheiro Editorial do Justificando.
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