Folha.com, 17 de janeiro de 2015
A Batalha de Argel
Por Álvaro Pereira Júnior
As relações tensas entre França e Argélia, em filme tão realista que as imagens parecem querer saltar da tela
Colônias eram os outros: Marrocos, Tunísia etc. A Argélia era mais que isso, era a própria França. Tão francesa quanto a Borgonha, a Bretanha, a Alsácia. Só que do outro lado do Mediterrâneo.
Esse era o pensamento dominante na França dos anos 50, incluindo boa parte da esquerda. Os franceses entraram na Argélia em 1830. Achavam que estava tudo dominado. Até que um dia a revolta saiu do controle.
"A Batalha de Argel" (1966), do diretor italiano Gillo Pontecorvo, captura esse "zeitgeist" com realismo e precisão. As imagens parecem querer saltar da tela. É um dos maiores filmes políticos de todos os tempos. Pontecorvo, de uma rica família judaica italiana, ex-estudante de química e ex-tenista de competição, morreu em 2006, pouco antes de completar 87 anos. Só este filme bastaria para justificar sua carreira.
"A Batalha de Argel" se passa na segunda metade dos 1950, em uma Argel segregada. Na parte baixa, uma cidade como as do sul da França: ruas largas e arborizadas, cafés com mesas nas calçadas, prédios baixos de amplas varandas, festas glamorosas que parecem não ter fim.
Poucos quilômetros acima, pendurada nas montanhas, está Casbah. A cidade árabe reduzida a um gueto: labiríntico, miserável, terreno fértil de revoltas. Lá é a sede da Frente de Libertação Nacional (FLN), organização que aglutinou diversos grupos para combater o colonialismo francês.
Os policiais franceses raramente chamam os argelinos pelo nome. Preferem um epíteto: "árabe sujo". Depois de uma série de atentados da FLN, Casbah é cercada com arame farpado. Ninguém entra ou sai sem passar por "check points", onde os árabes são tratados a empurrões e pontapés (as mulheres, menos --os policiais franceses se derretem em galanteios às mais bonitas).
Os guerrilheiros da FLN agem no mesmo compasso. Plantam bombas em danceterias, bares, no Jóquei Clube, passam de carro fuzilando inocentes a esmo, matam policiais pelas costas. Usam mulheres e crianças para suas ações. Remorso zero.
A repressão francesa é brutal. No comando, o coronel Mathieu, herói da resistência antinazista, interpretado por Jean Martin, o único ator profissional do filme. A tortura é seu principal método de "investigação". Paus-de-arara, afogamentos, surras, choques elétricos nos lóbulos das orelhas - tudo mostrado em cenas explícitas.
Numa tensa entrevista coletiva, repórteres contestam Mathieu e seus métodos ultraviolentos. O militar retruca: "Vocês nos chamam de fascistas, mas muitos de nós lutamos na Resistência contra Hitler. Muitos de nós somos sobreviventes de campos de concentração. Criticam nossos métodos, mas se esquecem de que, quando a FLN começou a atacar, toda a imprensa, inclusive 'L'Humanité' [órgão oficial do Partido Comunista], exigiu que o movimento fosse esmagado".
Cineasta de esquerda, mas crítico do stalinismo (como se percebe pela ironia de Mathieu contra o jornal comunista), Pontecorvo fez um filme distante de maniqueísmos e julgamentos morais. Sua narrativa, embora pró-argelina, se equilibra em uma corda fina de ambiguidade.
Bebendo direto da fonte de Eisenstein, com fotografia cintilante em preto e branco, o cineasta filma manifestações de ruas e atentados a bomba como se estivesse fazendo uma reportagem. São multidões onde nada parece encenado. E a câmera ali no meio, a insurgência em temperatura máxima.
Em 1962, depois de oito anos de guerra e mais de um milhão de mortos, veio a independência. A FLN tomou o poder, que exerceu com implacável autoritarismo, instalando-se como partido único.
Cerca de um milhão de franceses que viviam no país foram forçados a voltar para a França. E os argelinos que, sem o jugo colonial, sonhavam com a liberdade, esses continuaram sonhando. A FLN ainda controla a Argélia, em conflito constante com rebeldes islâmicos fundamentalistas.
Os irmãos Chérif e Said Kouachi, facínoras que cometeram o atentado contra o "Charlie Hebdo", eram cidadãos franceses de origem argelina (a mesma de 5 milhões dos 6,5 milhões de muçulmanos da França).
Como escreveu o jornalista Robert Fisk, correspondente no Oriente Médio do "Independent": "Eles agiram com o descaso impiedoso e quase profissional. [...] Nada, absolutamente nada, pode justificar esse ato cruel de assassinatos em massa. E não, os assassinos não podem apelar à história para justificar seus crimes. [...] Mas é preciso lembrar que nada - zero mesmo - acontece sem um passado".
É esse passado que vive em "A Batalha de Argel".
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