sábado, 10 de janeiro de 2015

O Islã somos nós




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O Islã somos nós


Por Paulo Goethe  / arte Greg




Avicena (Medicina), Averróis (Filosofia), Omar Khayyam (Literatura) e Ibn-Kaldum (História). Basta consultar qualquer bom almanaque (palavra, aliás, árabe) para constatar as contribuições dessas mentes privilegiadas muçulmanas para a nossa própria cultura ocidental. À sua maneira, em séculos passados, eles seguiram à risca um dos preceitos mais cultuados do Alcorão, o de cultivar o amor ao lado da razão. Criaram, não destruíram. Porque valia o escrito: “uma hora de reflexão tem mais valor que sessenta anos de adoração”.

Os irmãos Kouachi, mortos ontem pelas forças de segurança francesas depois de terem assassinado, na quarta-feira, 12 pessoas na sede da publicação satírica Charlie Hebdo, não representam o mundo islâmico e nem uma religião professada por 1,6 bilhão de pessoas - cerca de 23,4% da população mundial. Muito menos Amedy Coulibali, que invadiu supermercado judaico na periferia parisiense e também morreu ontem com mais quatro reféns depois da intervenção policial.

As ações de lobos solitários que tentam mergulhar a França e a Europa numa onda de terror devem reabrir mais do que feridas de cidadãos de origem árabe e imigrantes que se sentem como párias em algumas das maiores potências econômicas do mundo. É preciso reabrir a discussão.

O fundamentalismo não é uma particularidade muçulmana. Os partidos de direita e os xenófobos de qualquer bandeira e crença já têm argumentos para travar o mau combate. Que já começou pela internet, colocando todos nós no centro desta discussão. Mesmo entre nossos amigos e conhecidos, alguns comentários assustaram. A tecnologia, ao mesmo tempo, nos aproxima e nos afasta.

O drama vivenciado pelos franceses e, por extensão, por quem defende os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, tem profundas raízes históricas. Nesta semana, contando com a policial assassinada na rua e creditada a Coulibali, os parisienses choram a morte de 17 inocentes, vítimas da sanha de quem crê que o diferente é o inimigo. Neste mesmo período, quantos foram mortos de forma brutal e sem defesa por militantes do Estado Islâmico do Iraque e da Síria, interessados em consolidar um califado sunita no Oriente Médio?

A britânica Karen Armstrong, autora do fundamental 'Em nome de Deus - o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo', ressalta que o extremismo religioso é um movimento que surgiu no século 20 como uma reação contra a cultura científica e secular que nasceu no Ocidente e depois se arraigou em outras partes do mundo. Isto gerou uma reação de rejeição do racionalismo científico. “A civilização ocidental mudou o mundo. Nada - nem a religião - será como antes. Em todo o planeta há pessoas lutando contra essas novas condições e vendo-se obrigadas a reafirmar suas tradições religiosas, que foram concebidas para um tipo de sociedade inteiramente diverso”, alerta.

O palestino Edward Said, autor de 'O orientalismo - O Oriente como invenção do Ocidente', destaca um aspecto pouco valorizado, o de que é fácil estereotipar o que não se conhece: “As sociedades contemporâneas de árabes e muçulmanos sofreram um ataque tão maciço, tão calculadamente agressivo em razão de seu atraso, de sua falta de democracia e de sua supressão dos direitos das mulheres que simplesmente esquecemos que noções como modernidade, iluminismo e democracia não são, de modo algum, conceitos simples e consensuais que se encontram ou não, como ovos de Páscoa, na sala de casa”.

Na Europa e no Oriente Médio, bem como nos Estados Unidos e outros países ao redor do mundo, as comunidades islâmicas organizadas repudiaram veementemente os ataques ocorridos na França. É hora de estreitar os laços com elas. Fiquemos com a sabedoria de Omar Khayyam. O que ele escreveu há quase mil anos continua valendo hoje: “Que a tua sabedoria não seja humilhação para o teu próximo. Guarda domínio sobre ti mesmo e nunca te abandones à tua cólera. Se esperas a paz definitiva, sorri ao destino que te fere; não firas a ninguém”.

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