domingo, 18 de janeiro de 2015

A mais útil das falácias






Folha.com, 18/01/2015



Os alvos esquecidos



Por Janio de Freitas



Deu no que era de esperar. Além das mortes parisienses, os jihadistas assassinos conseguiram uma vitória cruel sobre todo o Ocidente: "instauraram a cizânia", como diziam na aldeia de Obelix, e entre os ocidentais ninguém se entende sobre o que é liberdade, humorismo, direitos, expressão, charge, convivência, terror - é o vale tudo da desinteligência.

Ainda que a possibilidade de debate não fosse bloqueada pelos que se supõem detentores de direitos e liberdade absolutos, como encarnações de todos os profetas, e dos que se valem das diferenças para expelir suas iras neuróticas, o ponto de partida era por si mesmo complicador. Propôs aos raciocínios, ou ao que deles poderia sobreviver sob o jugo emocional, uma associação improvável de conceitos: terrorismo e liberdade de expressão.

Não está estabelecido que do lado de "Charlie Hebdo" houvesse apenas a liberdade de expressão em seu sentido mais puro e pleno. Os que assim entendem não dissolveram, até hoje, os argumentos que os contestam. Nem estes se impuseram àqueles. Nesse impasse a divergência perdeu o rumo.

O jihadismo homicida, por sua vez, não se mobilizou com a ideia posta no cerceamento à plenitude da liberdade expressão. Moveu-o um sentimento justiceiro, vingativo, amálgama de fé no divino e ódio animal. Contra o abuso que via no "Charlie", mas não só. O vídeo gravado com antecedência por Amedy Coulibaly, o assassino do mercado judeu, foi explícito: eles iriam vingar o seu profeta, as humilhações impostas pelo tratamento ocidental aos muçulmanos e, precisão dele, os palestinos.

A ação dos assassinos fundamentalistas foi, portanto, de sentido muito mais amplo do que o ataque ao "Charlie". Isso mesmo se poderia entender, antes ainda de ser encontrado o vídeo, pelo ataque e sequestro feitos por Coulibaly no mercado judeu. E pelo assassinato de um policial, que cometeu ainda antes da invasão do "Charlie". Se, porém, os seus foram atos diversionistas, como em geral os interpretaram, o vídeo é enfático quanto ao sentido largo da ação terrorista.

As análises teriam ganho se tratassem os diferentes em separado, cada qual voltado para o tipo de problema que representa.

No Brasil distante dos acontecimentos, e menos do que secundário em suas conceituações, as divergências foram infiltradas por agressividades que não se mostraram nem nos centros europeus da discussão obsessiva. Não por acaso, claro. Oportunidade para afirmações assim: "Os jovens países [da África] até deveriam agradecer aos 'opressores' [europeus] por coisas que nunca tinham visto". Pois é, ainda um defensor do colonialismo genocida na África, e entre os que publicam coisas na Folha como gente da casa.

Em grande parte dos escritos e entrevistas de brasileiros sobre o ataque ao "Charlie", viu-se a mesma inadmissão de opiniões divergentes criticada pelos autores nos jihadistas extremados. Não é a única semelhança.
 
 
 
 



​Carta​ Maior, 16/01/2015



A miséria do terror islâmico


​Por Reginaldo Nasser ​


​​O recente atentado terrorista em Paris, praticado por homens fortemente armados e determinados, trouxe, novamente à tona, a nefasta conexão entre terrorismo e islamismo.  Tanto o terrorismo como a religião, no caso o islamismo, são fenômenos sociais e, portanto, são passiveis de ser entendidos como tais a partir de pesquisas que se inserem dentro do campo das ciências humanas. Não que os números sejam suficientes para nos fazer compreender o fenômeno, mas sem eles o acontecimento presente, ainda mais quando se trata de um pais como a França, se sobrepõe sobre o processo histórico atrapalhando nossa visão sobre o fenômeno.
 
No dia 24 de setembro de 2013 militantes argelinos, ligados ao ISIS, executaram um refém francês, após terem solicitado ao governo francês que interrompesse seus ataques aéreos no Iraque. No vídeo divulgado, os militantes denunciavam a intervenção dos "cruzados criminosos franceses" contra os muçulmanos na Argélia, no Mali e no Iraque. Naquele contexto, o governo de Hollande já havia declarado guerra ao ISIS, meses antes, sendo, inclusive, o único país a autorizar envio de armas aos “rebeldes” na Síria.
 
Após os ataques terroristas em Paris, foi a vez do primeiro ministro francês, Manuel Valls, declarar guerra contra o “terrorismo e o islamismo radical”, sinalizando que a França seguirá o roteiro traçado pelo presidente George Bush, após os ataques do dia 11 de Setembro, quando conclamou os EUA e seus aliados a empreender uma longa guerra global contra o terror. São declarações de guerra que produzem um duplo efeito. Ao mesmo tempo em que conferem um estatuto de “quase estado” a essas organizações, a declaração de guerra vai mais além se dirigindo, mais especificamente, contra fenômenos tais como: “islamismo radical e “terrorismo”. Ora, uma das primeiras consequências desse tipo de guerra é que ela tende a assumir característica de ser perpétua, pois será impossível eliminar por completo o terrorismo ou, mais ainda, o chamado islamismo radical. Além, disso à medida que a guerra é empreendida uma sucessão de outras "guerras" vai aparecendo, gradativamente, revelando os mais diversos inimigos e objetivos a serem alcançados.
 
Como sempre acontece após atentados terroristas, que ganham notoriedade internacional, os políticos, pressionados pela sociedade que se sente insegura e fragilizada, fazem questão de dizer que serão tomadas novas medidas de segurança. Sendo que o destaque para o novo procura se justificar tentando mostrar que a ameaça atual seja sempre percebida como pior que a anterior. Já notaram que os europeus se esqueceram dos atentados em Madrid e Londres em 2005?
 
Mas como esquecer que foram gastos pelos EUA e aliados trilhões de dólares para promover ações contra-terroristas? Como esquecer os milhares de inocentes mortos nas invasões do Afeganistão e Iraque sob o argumento do combate ao terrorismo, além de milhares inocentes detidos? Como esquecer que a tortura passou a ser praticada de forma sistemática e a vigilância das pessoas se tornou algo permanente com significativa restrição dos direitos individuais? Não se pode esquecer também que as forças armadas dos EUA já invadiram, ocuparam ou bombardearam 13 paises islâmicos desde 1980. Os EUA possuem mais de 20 bases militares em 6 países da região (Afeganistão, Bahrein, Djibuti, Emirados Árabes Unidos, Omã e Turquia) e destacamentos militares de larga escala em muitos outros, incluindo o Egito, Kuwait, Qatar, e Arábia Saudita.  Não se pode esquecer que a partir do Governo Sarkozy a França triplicou seu orçamento de Defesa e Segurança, liderou as intervenções militares na Libia e Mali e pressiona os EUA e aliados para intervir na Siria.
 
Todas essas ações se justificam em torno da guerra contra o terror. Bem, qual o resultado de tudo isso? Vamos aos dados.  No ano 2000, portanto, antes dos atentados do 11 de Setembro de 2001, por volta de 3800 foram mortas por ações terroristas no mundo. Já em 2013 foram cerca de 18 mil pessoas assassinadas por ataques terroristas, ou seja, cinco vezes mais do que em 2000. Durante o mesmo período, aumentou o número de países que sofreram mais de 50 mortes por terrorismo, subindo de 15 para 24. Ou seja, não só a intensidade do terrorismo é crescente, mas, sobretudo, sua amplitude.
 
Por outro lado, apesar de ser um fenômeno globalmente distribuído, apenas 5% das mortes atribuídas ao terrorismo ocorreu em nações que fazem parte da OCDE que inclui algumas das mais ricas economias do mundo.  Já 85 % das 18 mil mortes se concentram em 5 paises (Afeganistão, Iraque, Nigéria, Paquistão e Síria). Não precisamos elaborar muito esses dados para constatar que, não por acaso, esses paises são cenários de conflitos, que contam com a participação ( direta ou indireta) das chamadas potencias ocidentais (incluindo a Rússia no caso da Síria); e que a grande maioria das vitimas do terrorismo no mundo são islâmicos.
 
Cabe destacar que o Iraque é o pais com o maior numero de mortos por terrorismo. Sendo que não há referencia a respeito de um único atentado terrorista se quer, nesse país, antes da invasão militar em 2002. No que se refere aos EUA, durante o período 1991-2000 foram 217 mortes por atentados, e 50 apenas no período 2002-2013. A exposição dos norte-americanos às ameaças terroristas no exterior em 2013 permaneceu baixa: 16 cidadãos norte-americanos foram mortos num universo de 18 mil mortos no mundo inteiro e 7 foram feridos dentre os 32 mil no total. Em relação à Comunidade Europeia: 7 pessoas foram mortas em ataques terroristas em 2013: um soldado do exército Britânico e um muçulmano no Reino Unido; 2 membros de um partido de extrema-direita na Grécia e 3 membros do (PKK, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão) em Paris (França).
 
Com todos os possíveis problemas que esses dados possam ter, será que podemos aceitar aquilo que tem sido divulgado, à exaustão, que o “Ocidente” é a maior vitima dos atentados terroristas no mundo? Com esses dados é possível afirmar que a guerra contra o terror tem tido sucesso? Alguém poderia responder afirmativamente, cinicamente ou não, dado o pequeno numero de mortos na Europa e EUA; mas seria difícil não imputar responsabilidade as intervenções militares nos países islâmicos.
 
Em 2013, 4 grupos terroristas (Taleban, Taleban do Paquistão, Isis e Boko Haram) foram responsáveis por 66% de todas as mortes provocadas por atos terroristas no mundo e, pelo menos, 25 mil pessoas, em uma década. As origens da al-Qaeda e do Taliban podem ser encontradas na guerra soviética no Afeganistão, quando foram apoiados e armados pelos EUA e Arábia Saudita, assim como foi criado o ISIS com o objetivo de derrotar Assad na Síria. Em relação à autoria dos atentados em países ocidentais, consta que nos EUA, desde 11/09, extremistas afiliados com uma variedade de ideologias de extrema-direita, incluindo supremacistas brancos, extremistas antiaborto e militantes anti-governo, mataram mais pessoas (34 pessoas) do que extremistas motivados pela ideologia islâmica ( 21 pessoas). Em 2013, em toda Europa, apenas 1 pessoa foi vitima de ataque terrorista jihadista.
 
Mas, apesar de seu caráter fantasioso, contrariando todos os dados mencionados acima, o mito do terror islâmico é realimentado a cada episodio de ataque terrorista que acontece no Ocidente. Temos que admitir que não há, até o momento, uma falácia tão útil como essa que permite aumentar a produção de armas, fazer mais guerras, restringir cada vez mais a liberdade das pessoas, praticar a tortura e, no final de tudo isso, ter a coragem de dizer que essas ações são feitas para proteger-nos do mal que assola o mundo civilizado: o “islamismo radical”.

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