quarta-feira, 28 de maio de 2014

A primeira contradição histórica do Papa Francisco






​Carta Maior, 28/05/2014 
 

A primeira contradição histórica do Papa Francisco


 
 
Federico Fasano (*)

​Há poucos dias, o Papa Francisco, furacão das mudanças estratégicas na segunda religião do planeta Terra, cometeu seu primeiro erro histórico.
Deu aval à canonização simultânea do “Papa bom”, como chamavam o Papa João XXIII, o Papa da mudança renovadora, o dirigente pontífice que voltou às raízes se inspirando na Igreja primitiva das primeiras centúrias; e a de João Paulo II, o Papa do status quo, artífice da restauração termidoriana na Igreja dos pobres, aquela comunidade espiritual fundada há dois mil anos por um humilde carpinteiro hebreu de Nazaré – a mesma que Francisco pretende refundar com sagacidade e cautela, resgatando as sementes igualitárias dos primeiros cristãos.

Ignoro o fato de isso talvez ter sido uma concessão tática à poderosa burocracia do Vaticano, que já havia decidido canonizar o principal baluarte dos conservadores muito antes da eleição do cardeal Jorge Bergoglio para ocupar a cadeira de Pedro, o pescador da Galileia.

Parece algo difícil de explicar e de entender o fato de se colocar no mesmo pedestal Angelo Giuseppe Roncalli – o renovador de Sotto Il Monte, arquiteto do edifício intelectual e filosófico mais humanista da história da Igreja Católica do último milênio, que foi o Concílio Vaticano II, de 21 de janeiro de 1959 – com Karol Wojtyla, a máquina de demolição mais feroz desse Concílio, destruído peça por peça durante os 27 penosos anos de sua administração, a segunda mais duradoura desde a crucificação do primeiro Papa, Pedro.

Mas Wojtyla, emergido no seio da Igreja polaca, profundamente conservadora – que não titubeou ao apoiar as formações políticas da ultradireita e racistas, como o PIS (Partido Lei e Justiça) da Polônia –, não somente demoliu o Concílio da igualdade, como também enterrou a revolucionária proposta de Medellín de 1968 (Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano), a Teologia da Libertação e a colegialidade no governo do Vaticano, fortalecendo a tendência absolutista restauradora do antigo sistema romano medieval, profundamente pré-conciliar. Seu reinado foi autoritário, afastado de qualquer horizontalidade.

Bem o define o sólido teólogo suíço Hans Kung ao analisar o legado de Wojtyla:

Peço aos bispos que exijam um novo Concílio, porque a Igreja Católica caminha para se transformar em uma grande seita. O absolutismo de Roma não conseguiu sepultar o Concílio Vaticano II, mas o traiu. O Papa deveria ser o servus servorum, o servidor dos servidores e não o dominus dominorum homini”. Acrescentando algo que Francisco está tentando fazer: “Devemos entender também os agnósticos e os que não têm nenhuma religião. Não é possível mandar todos para o inferno, seria uma imensidão”.

Para os católicos, a canonização não é uma condecoração, mas a constatação da santidade de um membro dessa fé comum que une, capaz de realizar fatos sobrenaturais. Para os não crentes, é a outorga da medalha mais valorizada obtida por um homem excepcional de um grupo humano religioso. É, então, impossível, para os que não acreditam em milagre, entender como a Igreja Católica pode dar tal condecoração a um homem que defendeu o corrupto Banco Ambrosiano, que protegeu a pedofilia e os dois mais eminentes abusadores de menores, os cardeais Bernard Law, dos Estados Unidos, e Hans Hermann Groer, da Áustria. Isso sem nos esquecer de seu apoio ao sinistro Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, sacerdote com duas mulheres e vários filhos de quem abusou sexualmente; e do fato de ter prejudicado por todos os lados os teólogos da libertação, negando-se a beatificar o bispo mártir de El Salvador, Arnulfo Romero, porque esse gesto “seria instrumentalizado pela esquerda”. E ainda teve a insolência quando o Monsenhor Romero lhe entregou, no Vaticano, em 1979, poucos meses antes do assassinato do religioso salvadorenho, as provas das violações dos direitos humanos em seu país e as ameaças de morte que diariamente ele recebia do governo homicida, respondendo, sem rubor: “Pois então se relacionem melhor com seu governo”. Este é mesmo São Wojtyla, cúmplice das ditaduras latino-americanas. O mesmo que saiu na varanda do Palácio La Moneda no Chile, em 1987, ao lado do tirano Pinochet, ambos saudando o sofrido povo chileno sem pronunciar uma só palavra de proteção àqueles que estavam submetidos ao ditador.

Os que creem poderão dizer que, apesar de isso tudo estar correto, também é certo que foram comprovados milagres, cumprindo as normas canônicas necessárias para a beatificação e santificação. Mas isso tampouco está certo. Todas essas normas foram violadas para que São Wojtyla tivesse um lugar na sancta santorum. Seriam necessários 30 anos depois de morto para que fosse aberto o processo de beatificação. Eliminados 23 anos em um só golpe, aos sete anos de falecimento de Wojtyla foi aberto esse processo para o Papa viajante.

Entre outras questões, o processo estava semigarantido pela instituição do “advogado do diabo”, uma espécie de fiscal que colocava todo tipo de travas e obstáculos para evitar manobras ou fraudes que desacreditassem a honra da santidade. Pois o cargo e a função foram eliminados para facilitar a fraude. O advogado do diabo se transformou em advogado de Deus. Os milagres também foram reduzidos a 2, porque não encontraram 3 e os 2 que afirmam terem encontrado são inverossímeis.

Esse processo de canonização de João Paulo II, pontífice que passará à história como o Papa carrasco da modernidade, da Igreja dos pobres e do Concílio Vaticano II, é uma vergonha histórica.

Confiamos que o aval de Francisco foi uma necessidade tática diante dos poderosos interesses burocráticos que o rodeiam, tal como rodearam João Paulo I, que desapareceu do mundo dos vivos 33 dias após assumir. Tudo indica que seu pontificado será renovador, ao menos nas suas folhas, e talvez em algumas raízes. É soldado de um exército espiritual, inteligente e inovador, como os jesuítas, envolvidos em batalhas históricas, expulsos pelos poderes conservadores de outrora de muitas comarcas do mundo por sua valentia frente a poderes autoritários. Eles alcançam pela primeira vez uma magistratura espiritual com jurisdição sobre 1,22 bilhão de seres humanos que seguem os passos do hebreu crucificado por se opor à oligarquia religiosa de sua época. Seu chefe foi um ser humano excepcional, Ignacio de Loyola, o mesmo que há 300 anos, rodeado por seus seguidores nas portas do mesmo Vaticano, lhes dizia enquanto serviam aos pobres dos bairros romanos: “Não será ainda mais condizente com a vontade de Deus se nos esforçássemos para que os pobres de Roma pudessem viver por si mesmos?”. Ele se adiantava a Mao Tse Tung, que séculos mais tarde preferiu ensinar o povo a pescar em vez de lhes entregar o peixe. Ou aos abolicionistas, que antes de brigar por um tratamento humano e justo para os escravos, estavam decididos a lutar pela supressão da escravidão.

Acredito que o Papa Francisco seja primo-irmão dessas ideias no campo social – não me refiro ao religioso –, e ele também não teme o socialismo. Não se assustaria se lhe recordássemos, com Nikolai Berdiaev, que o “comunismo não é outra coisa se não o dever não cumprido pelos cristãos”.

É talvez a última oportunidade para uma Igreja que se esqueceu de sua gênese igualitária.

(*) Federico Fasano Mertens, advogado, jornalista e empresário uruguaio nascido na Argentina, é o fundador (em 1988) e atual diretor do jornal La República, de Montevidéu.

Tradução: Daniella Cambaúva

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