2011-2012: Foi a pobreza que gerou a crise, não o inverso
Por Saul Leblon
Estender a jornada de trabalho, sem contrapartida salarial, é a contribuição que Portugal e Espanha oferecem ao mundo no apagar das luzes de 2011.
Uma alternativa neoliberal ao colapso do neoliberalismo. Antes de dar a isso o epíteto de uma
excrescência conservadora talvez fosse mais justo creditar a Passos Coelho e a Mariano Rajoy o benefício da coerência.
Nada mais fazem os dirigentes ibéricos do que radicalizar os fatores que deram origem ao colapso mundial, assentado, entre outros pilares, em três décadas de arrocho sobre o rendimento do trabalho nas principais economias ricas, associado a mimos tributários que promoveram o fastígio dos endinheirados.
Para clarear as coisas:
não foi a crise que gerou o arrocho e a pobreza em desfile no planeta, mas sim o arrocho e a desigualdade neoliberal que conduziram ao desfecho explosivo, exacerbado agora por direitistas aplicados, que dobram a aposta no veneno. A ordem dos fatores altera a agenda futuro:
a crise não é apenas financeira; controlar as finanças desreguladas é um pedaço do caminho para controlar a redistribuição do excedente econômico, ferozmente concentrado nas últimas décadas na base do morde e assopra --arrocho de um lado, crédito e endividamento suicida do outro, falindo famílias e governos.
Vista desse ângulo a equação contesta, por exemplo, o
jogral do conservadorismo nativo que qualifica como 'temerário' o reajuste de 14% (9% reais) para o salário mínimo em 2012, como a sugerir, à moda Rajoy e Passos Coelho, que a 'gastança' (fiscal/salarial) estaria na origem da crise, sendo a hora da verdade sinônimo de hora do arrocho.
Ao injetar R$ 47 bi adicionais à demanda interna, o governo brasileiro na verdade reforça as imunidades do país em relação às origens da crise mundial.
Em boa parte assentada no definhamento do poder de compra dos assalariados que se encontra hoje comprimido entre os menores da história em muitos países.
O aumento do salário mínimo, ao contrário, coloca o poder de compra de 48 milhões de brasileiros no nível mais alto dos últimos 30 anos. E
isso gera encadeamentos produtivos e fiscais virtuosos, de que se ressentem os países ricos nesse momento.
A 'gastança' de R$ 19,8 bi com os 20 milhões de aposentados beneficiados pelo reajuste do mínimo, por exemplo, retornará aos cofres públicos na forma de R$ 22,9 bilhões em impostos.Cálculos do Dieese.
O que fizeram os governantes das economias desenvolvidas desde os anos 90 - com os aplausos obsequiosos do dispositivo midiático demotucano - foi lubrificar uma espiral inversa.
Desde 2000, a classe média americana dotada de diploma universitário, não tem reajuste salarial. Mais de 46 milhões de norte-americanos vivem hoje na pobreza, constituindo-se na taxa mais elevada dos últimos 17 anos: 15,1% .
Em termos absolutos, o contingente atual de pobres é o maior desde que Census Bureau começou a elaborar as estatísticas americanas, há 52 anos.
Síntese do desmonte social acionado pelo neoliberalismo, o número de norte-americanos sem seguro-saúde é da ordem de 50 milhões de pessoas e tudo isso antecede a crise, que agravou o esferalamento do way of life elevando a 46 milhões o total de desempregados, sobre uma base de dissolução pré-existente.
A receita não é privilégio norte-americano.
Um quarto de todos os lares da Ingaterra e País de Gales, cerca de 20 milhões de pessoas, vivem em estado de pobreza atualmente, um sólido legado de sucessivos governos neoliberais, desde Tatcher, passando por Blair até chegar no atual 'engomadinho' atual, como diz Luiz Gonzaga Belluzzo. Cameron cuida de jogar a pá de cal naquela que já foi a rede de serviços sociais mais equipada da Europa. Pesquisas indicam que em pleno inverno, um número crescente de famílias inglesas vive o pior quadro de aperto financeiro desde a II Grande Guerra. E um relatório recente da OCDE - não propriamente uma trincheira progressista - sugestivamente intitulado "
Divididos estamos: porque aumenta a desigualdade”, indica que “
a renda média de 10% das pessoas mais ricas representa nove vezes a renda dos 10% mais pobres” nos países (ricos, em sua maioria) que integram esta organização.
A distância aumenta em dez para um na Grã-Bretanha, Itália e Coreia do Sul; chega a quatorze para um em Israel, Estados Unidos e Turquia, diz o informe. Os dados sobre os Estados Unidos mostram que
“a renda por família, após o pagamento de impostos, mais do que dobrou entre 1979 e 2007, entre o 1% mais rico. Na fatia dos 20% mais pobres, caiu de 7% para 5% no mesmo período.
“
Quando se fala dos mais ricos entre os ricos estamos dizendo que há espaço para aumentar os impostos”, afirmou Angel Gurria, o secretário geral da organização, numa menção indireta às escandalosas isenções tributárias acumuladas pelos endinheirados desde o governo Reagan, nos anos 80.
Foi sobre essa base de renda e trabalho esfacelados simultaneamente pela transferências de empregos e empresas às 'oficinas asiáticas', que se instalou o colapso neoliberal. A asfixia desse arranjo capitalista só não explodiu antes, graças à válvula de escape do endividamento maciço de governos e famílias, que atingiu patamares de virtuosismo insustentável na bolha imobiliária norte-americana, espoleta da crise mundial de 2008.
Quando as subprimes gritaram --'o rei está nu' todo o criativo edifício de
uma supremacia financeira baseada no crédito sem poupança (porque sem empregos, sem renda e sem receita fiscal compatível) veio abaixo.
A tentativa atual de 'limpar o rescaldo' do desabamento removendo apenas seus gargalos financeiros --ou seja, salvando os bancos e arrochando ainda mais os assalariados e os pobres-- é mais uma forma de perpetuar a essência da crise do que de enfrentar as suas causas seminais.
O jogo é mais pesado.
Controlar as finanças desreguladas é só um pedaço do caminho para controlar a redistribuição do excedente econômico, ferozmente concentrado nas últimas décadas, na base do morde e assopra --arrocho de um lado, crédito do outro.
Preservar o modelo com arrocho de crédito, como se tenta, requer uma carnificina econômica e social. A julgar pelas iniciativas dos governantes portugueses e espanhóis, a direita está disposta a movimentar o açougue em 2012. A ver.
Sexta-Feira, 30 de Dezembro de 2011
O menino e o lixo: um Conto de Natal
Mauro Santayana
Este deve ser o conto de natal de nossos tempos. Os dois meninos foram catar material reciclável no lixão de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Uma das máquinas empurrou a massa de detritos, para fazer espaço – e os soterrou. Um deles, mais ágil, conseguiu escapar. Maikon Correa de Andrade, de nove anos, ficou sob o lixo, e seu corpo foi encontrado muitas horas depois pelos bombeiros.
Maikon deve ser um dos milhares de máicons que receberam esse nome em homenagem a Michael Jakson, porque é assim que alguns ouvidos registram o nome do ídolo. Um dia, a mãe de Maikon deve ter sonhado destino de riqueza e de glória para o filho, e, nessa esperança, dado ao recém-nascido o nome de uma estrela. Maikon não sabia cantar, não sabia dançar – e talvez nem soubesse catar alguma coisa que prestasse no meio do lixo. Ele poderia ter pisado em uma agulha de seringa e se ter contaminado de alguma doença fatal, como já ocorreu a muitos. Mas poderia ter encontrado alguma coisa ainda precariamente servível, como um brinquedo jogado fora. Ou, apenas, teria recolhido restos de metal, fios de cobre, coisas de estanho e chumbo, para serem vendidos a intermediários, e destinados à reciclagem. Se Maikon conseguiu alguma coisa, não a tinha em suas mãos, rijas depois de tantas horas já mortas.
A morte de Maikon é um conto de Natal, sem a ternura dos relatos de Dickens ou de Mark Twain – mas é também a parábola negra do novo liberalismo triunfante. Somos uma sociedade que se dedica a produzir lixo.
As mercadorias que chegam ao mercado são, quase todas elas, lixo. Começamos com a embalagem – e essa civilização pode ser considerada a “civilização da embalagem” – tanto mais inútil quanto mais sofisticada. A essência da mercadologia – ou do marketing, se preferirmos – é a embalagem, trate-se de manteiga ou de candidatos a cargos eletivos; trate-se de hospitais ou de calistas. Todos os produtos, que a embalagem embeleza, são também lixo em sursis: concebidos para durar pouco. A idéia da reciclagem, fora a dos metais, é recente. Trata-se de um escamoteio da consciência, a de que o meio ambiente pode ser preservado com esse expediente esperto do capitalismo.
O mundo produziria menos lixo, se a idéia do lucro não prevalecesse sobre a idéia da vida. Assim, é o próprio capitalismo, em sua essência, que deve ser discutido. A mesma desrazão que produz o lixo material, produz o que sua lógica considera o lixo humano – os seres descartáveis que o senso estético e prático burguês rejeita. Os pobres são seres instrumentais, como as ferramentas que enferrujam, e, uma vez sem serventia, pelo uso e pelo tempo, devem ser jogadas fora. Sua reciclagem se faz nos filhos, que podem ser usados.
Maikon foi sepultado no lixo em que buscava a sobrevivência antes que cumprisse o destino do pai e, provavelmente, do avô. Morrendo tão cedo, frustrou o destino que provavelmente o esperava. Nada mais natural que Maikon, que morava em um bairro miserável de Campo Grande – ironicamente batizado com o nome do primeiro bispo e arcebispo da cidade, Dom Antonio Barbosa – se misturasse, aos nove anos, com os resíduos dos bairros ricos.
Mas, e se Maikon não tivesse ido ao lixão nesses dias entre o Natal e o Ano Novo, quando há presépios toscos mesmo nas casas pobres, e quando se celebra a vinda de Cristo e o início de mais uma volta da Terra em torno do Sol – o que poderia ocorrer em seu futuro? Como outros meninos, não muitos, mas alguns, ele talvez viesse a driblar o destino, crescer e deixar uma forte presença no mundo. Não era de se esperar - mesmo com a tentativa desnecessária dos evangelistas em lhe conferir progênie divina e ancestralidade nobre - que aquele menino nascido em uma gruta de Belém, viesse a dividir o mundo em duas eras. Afinal, ele, nascido na estrada, era de Nazaré – e se dizia, em seu tempo, que de Nazaré nada chegava de bom a Jerusalém.
Mesmo com o estranho nome de Maikon, o menino de Campo Grande era ainda um enigma, quando morreu sufocado pela sujeira da cidade rica.
Toda criança encerra, em si mesma, a dialética do futuro. Maikon poderia vir a ser um traficante de fronteira, ou um grande homem, nas artes ou na ciência. É nesse profundo mistério que se sepultou seu destino. O corpo, resgatado do lixo, voltou ao barro de que todos nós viemos, ricos e pobres, orgulhosos uns, humilhados outros.
Mauro Santayana é colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Ultima Hora (1959), e trabalhou nos principais jornais brasileiros, entre eles, a Folha de S. Paulo (1976-82), de que foi colunista político e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte.