Avesso e Direito, 28/09/16
Simplesmente assustador
Por Antonio Alberto Machado
HOJE, qualquer opinião que se emita sobre a operação Lava Jato – seja a favor seja contra, seja de crítica seja de apoio -, será sempre entendida e julgada pelo viés ideológico. Não adianta negar – o país ficou dividido entre os que aprovam e os que reprovam essa operação, na mesma medida que se dividiu entre os que apoiavam e os que reprovavam o governo petista. Mas, sejam lá quais forem as ideologias e as preferências políticas de cada um, algumas coisas na operação Lava Jato são muito polêmicas, tanto do ponto de vista político quanto jurídico – e algumas constituem verdadeiros absurdos.
Se não, vejamos.
É polêmico – e, para mim, um
verdadeiro absurdo – que as delações premiadas no âmbito da Lava Jato
sejam obtidas mediante prisão ou ameaça de prisão. A essência desse
instituto, e o que o faz tolerável, é a espontaneidade do delator.
Quando a delação é obtida mediante tortura física e psicológica – e
decerto que a prisão e a ameaça de prisão constituem suplício físico e
psicológico – ela deixa de ser espontânea e se transforma numa prova
ilícita – expressamente vedada pela Constituição Federal.
É polêmico – e, para mim, outro
absurdo – que os advogados dos réus na Lava Jato só tenham acesso ao
conteúdo das delações feitas contra seus clientes na véspera das
audiências, dificultando-lhes a articulação e o exercício do direito de
defesa; e isso quando a Lei Maior assegura exatamente o contrário, isto
é, assegura a todos os réus o direito ao contraditório, a publicidade
dos atos processuais, e a ampla defesa – tal como exige o “devido
processo legal” consagrado na Constituição Federal.
É polêmico – e, para mim, autêntico
absurdo – que o juiz da Lava Jato tenha mandado conduzir
coercitivamente um ex-presidente da república até uma repartição
policial, sem intimar previamente o conduzido para que ele comparecesse
perante a autoridade de polícia. Essa condução constrangedora só tem
lugar quando o conduzido teima em não atender à intimação da autoridade –
do contrário, como no caso do ex-presidente, é uma medida que ofende o
direito de ir e vir consagrado na Constituição Federal.
É polêmico – e, para mim, mais um
absurdo – que esse mesmo juiz tenha determinado a interceptação ilegal
de uma conversa telefônica entre uma presidenta e um ex-presidente da
república, e, depois, tenha revelado através da mídia o conteúdo dessa
conversa, com o claro propósito de influenciar no delicado jogo político
por que passava o país às vésperas de um processo de impeachment – essa
divulgação é crime e ofende o sigilo das comunicações telefônicas
consagrado na Constituição Federal.
É polêmico – e, para mim, um
rematado absurdo – que o juiz da Lava Jato tenha mandado “grampear” o
telefone dos advogados de réus, e do defensor de um ex-presidente da
república, malferindo assim a inviolabilidade dos escritórios de
advocacia, o direito de defesa, o direito de ampla defesa, o direito ao
livre exercício da profissão de advogado e o princípio da lealdade
processual – tudo isso configura afronta à lei e aos ditames da
Constituição Federal.
É polêmico – e, para mim, outro
absurdo – que esse juiz tenha cometido essas arbitrariedades todas,
tenha reconhecido publicamente que as cometeu, e, em seguida tenha sido
“perdoado” pelo Supremo Tribunal Federal, mesmo depois de o ministro
relator do processo da Lava Jato no STF ter afirmado, nos autos e por
escrito, que a atitude do juiz “comprometia um direito fundamental” de
dois ex-presidentes da república – aliás, um direito fundamental
consagrado na Constituição Federal.
É polêmico – e, para mim, um
flagrante absurdo – que o juiz da Lava Jato tenha mandado prender um
ex-ministro de estado do governo petista, e, menos de cinco horas
depois, porque descobriu que a mulher do ex-ministro estava sendo
internada com câncer, tenha revogado essa prisão por considerá-la
desnecessária – isso viola o direito constitucional de liberdade, a
dignidade humana, e a presunção de inocência consagrados na Constituição
Federal.
É polêmico – e, para mim, absurdo
também – que o juiz da Lava Jato tenha feito aliança com a mídia
empresarial para exercer melhor suas funções de magistrado, e, por força
dessa aliança fizesse “vazar” informações ao mais poderoso grupo de
mídia do país, com o insofismável propósito de predispor a opinião
pública contra os réus que ele (juiz) mandava prender – isso viola o
sigilo das delações, o direito à privacidade e o princípio da presunção
de inocência inscritos na Constituição Federal.
É polêmico – e, para mim, outro
injustificável absurdo – que um juiz de direito, no exercício de suas
funções públicas, faça alianças com a mídia privada. E, além disso,
aceite premiação concedida publicamente por essa mídia, mesmo sabendo
que ela é adversária dos réus da Lava Jato, que ela não se cansa de
manipular informações, e que no passado até já apoiou ditadura militar –
isso fere mortalmente o princípio republicano e a independência do
Judiciário consagrada na Constituição Federal.
Porém, o mais polêmico (e absurdo) é
ver agora um Tribunal Regional Federal (4ª Região Sul) render-se ao
óbvio e reconhecer que as práticas do juiz da Lava Jato são realmente
ilegais, pois “escapam ao regramento” do direito. Mas, segundo esse
mesmo tribunal, apesar de ilegais, trata-se de “soluções inéditas” que
devem ser toleradas porque o processo da Lava Jato é também um “processo
inédito”. Em suma, o tribunal afirma, por escrito, que o direito
aplica-se aos “casos comuns” em geral; mas, à Lava Jato aplicam-se, não a
Constituição e o direito, e sim as “soluções inéditas”, ou seja, as
soluções buscadas fora do direito, ou fora do “regramento comum” – com
essa retórica canhestra, esse tribunal federal acaba de proclamar que a
lei e a Constituição não valem para o processo da Lava Jato, ou, noutros
termos, admite expressamente que esse processo tramita mesmo perante
uma lei e um juízo de exceção.
Nem no tempo da ditadura militar
isso ocorreu. É certo que os militares nos outorgaram uma Constituição
autoritária (67-69); é certo também que eles editaram um ato de exceção
(AI-5); mas, mesmo a Constituição autoritária dos ditadores, e mesmo o
Ato Institucional nº 5, valiam para todos: igualmente, isonomicamente –
coisa que não ocorre agora porque, segundo esse tribunal federal do Sul,
nem a lei nem a Constituição valem para os réus da Lava Jato.
Isso já não é apenas polêmico, nem somente um absurdo – isso já passa a ser simplesmente assustador.
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