CartaCapital, 01/09/16
A falácia de comparar a economia doméstica com a do governo
Por João Sicsú
“O governo é como sua família. Se estiver endividada, precisa diminuir despesas para pagar dívidas. Por isso, uma de nossas primeiras providências foi impor limites para os gastos públicos”, declarou o recém-empossado Michel Temer, em pronunciamento em cadeia nacional na quarta-feira 31, dia do golpe.
É um equívoco recorrente pensar que se deve administrar a economia do setor público tal como se administram as finanças domésticas. Chefes de família, homens ou mulheres, aprendem ao longo de suas vidas como devem organizar suas receitas, despesas e dívidas. Tarefa que não é simples.
A administração das finanças do lar também é complexa, mas muitos a simplificam para que possam tirar falsas lições para serem aplicadas a economias de governos.
Pensam que a economia doméstica se resume a cortar gastos quando as receitas (salários) estão em queda ou quando a família está endividada. Contudo, essa é uma visão das elites, que nada sabem sobre finanças domésticas, sobre como a população (os mais pobres) administram recursos escassos.
As elites nada sabem sobre povo. O povo pobre, no dito popular, “se vira”. Faz cheques pré-datados (o nome disso é crédito, é endividamento), utiliza o escambo de serviços (o nome disso é criar receitas e liquidar compromissos), pede um vale ao patrão (antecipa receitas), arruma “um bico” (fonte extraordinária). Faz um biscate. Pernoita na rua para economizar no transporte, etc. A economia doméstica da maioria da população é complexa, mas não guarda qualquer semelhança com a economia do setor público.
As fontes de financiamento do setor público são bem diferentes das fontes de receita de um lar. Um governo se financia com impostos e taxas, que ele próprio pode aumentar ou diminuir. E, além disso, pode decidir quem pagará e quanto pagará. Um governo pode escolher quem vai tributar. Em geral, um chefe de família não pode decidir sobre o valor do seu salário e para quem vai trabalhar.
Um governo pode se financiar, ainda, através do endividamento, vendendo títulos da dívida pública. Somente governos que têm credibilidade podem se financiar dessa forma. Títulos de governos ditatoriais, caloteiros ou sem fontes robustas de receita não possuem compradores potenciais.
Não há limites ideais (teóricos ou empíricos) para níveis de endividamento público, o que existe é sempre uma avaliação do setor privado sobre a capacidade de solvência do setor público. Isso ocorre sempre, com altos ou baixos níveis de endividamento, com trajetória acentuada ou tênue de endividamento.
Uma família também pode se endividar. E se endivida. Por exemplo, o pagamento com o uso do cartão de crédito é um tipo de endividamento. A primeira atitude de uma família não é cortar gastos essenciais diante de dificuldades financeiras. Mas, sim o endividamento e, posteriormente, incorrem em inadimplência.
A diferença importante é que de maneira oposta às finanças domésticas o endividamento público é até mesmo necessário. Um governo que tem uma dívida pública com volume considerável pode administrar mais facilmente a liquidez da economia através da compra e venda títulos.
Quando vende títulos tira liquidez (moeda) da economia e quando recompra seus títulos aumenta a liquidez (a quantidade de moeda). Idealmente, governos devem possuir dívidas (com custos baixos). Esse é mais um canal para regular a economia. Idealmente, famílias não devem possuir dívidas.
Governos possuem, também, algo que para as famílias é um sonho: uma máquina de fazer dinheiro. E podem se financiar colocando a sua máquina para funcionar. A ignorância econômica, sempre precipitada, dirá que isso provoca inflação. Não é verdade. Mais dinheiro na economia é até necessário quando há crescimento real, quando temos mais produtos e serviços.
Mais dinheiro na economia somente provoca inflação quando há um boom econômico, quando há superaquecimento. Mas, sob essas condições, governos têm receitas de impostos e taxas suficientes e não precisam ligar a máquina de dinheiro para financiar seus gastos.
Toda decisão de governo, inclusive sobre suas fontes de financiamento, é sempre uma decisão política. A técnica econômica subsidia a política, mas não se sobrepõe a ela. Portanto, a decisão de conter gastos públicos diante de supostas necessidades de melhorar os resultados das contas públicas é uma decisão política (decorrente de uma ideologia) e não uma decisão baseada na vida econômica doméstica.
Se não existe receita pública de taxas e impostos suficiente é porque não há crescimento. Mas há outras fontes alternativas de financiamento, tal como mencionadas anteriormente. Portanto, o caminho adequado é sempre o estímulo ao crescimento e a readequação das fontes de financiamento.
Uma decisão de conter públicos gastos essenciais está longe de ser uma lição da economia do lar. Nada tem a ver com o comportamento, tido como óbvio, da vida da maioria da população.
As dificuldades orçamentárias do governo brasileiro não têm nenhuma relação com seus gastos primários (saúde, educação, Previdência etc.), nem com o seu nível de endividamento. Tanto é verdade que somente não houve superávit no orçamento primário, recentemente, nos anos de 2014 e 2015.
O problema central é que tem havido ao longo dos anos um gasto público excessivo com o pagamento de juros a rentistas e banqueiros (credores do governo) e, dessa forma, os recursos são insuficientes para a saúde, educação e demais áreas.
O governo Temer fará a opção de conter gastos públicos em áreas essenciais, mas vai transferir bilhões de reais, sem limites, a banqueiras e rentistas. Por exemplo, deixará de atender milhões de indivíduos no SUS para que sobrem recursos para pagar juros da dívida pública.
Mas como Temer gosta de utilizar a economia familiar como referência para suas decisões de orçamento público, então deveria perguntar a um chefe de família o que faria diante da escassez de recursos: pagaria juros ao banco ou deixaria seu filho sem atendimento médico?
Será melhor não perguntar, já que a resposta advinda da economia doméstica não deve ser aplicada à economia do governo. A opção de conter gastos em áreas essenciais feita pelo governo Temer é uma opção política de cunho ideológico. É somente isso. O governo não é como uma família.
“O governo é como sua família. Se estiver endividada, precisa diminuir despesas para pagar dívidas. Por isso, uma de nossas primeiras providências foi impor limites para os gastos públicos”, declarou o recém-empossado Michel Temer, em pronunciamento em cadeia nacional na quarta-feira 31, dia do golpe.
É um equívoco recorrente pensar que se deve administrar a economia do setor público tal como se administram as finanças domésticas. Chefes de família, homens ou mulheres, aprendem ao longo de suas vidas como devem organizar suas receitas, despesas e dívidas. Tarefa que não é simples.
A administração das finanças do lar também é complexa, mas muitos a simplificam para que possam tirar falsas lições para serem aplicadas a economias de governos.
Pensam que a economia doméstica se resume a cortar gastos quando as receitas (salários) estão em queda ou quando a família está endividada. Contudo, essa é uma visão das elites, que nada sabem sobre finanças domésticas, sobre como a população (os mais pobres) administram recursos escassos.
As elites nada sabem sobre povo. O povo pobre, no dito popular, “se vira”. Faz cheques pré-datados (o nome disso é crédito, é endividamento), utiliza o escambo de serviços (o nome disso é criar receitas e liquidar compromissos), pede um vale ao patrão (antecipa receitas), arruma “um bico” (fonte extraordinária). Faz um biscate. Pernoita na rua para economizar no transporte, etc. A economia doméstica da maioria da população é complexa, mas não guarda qualquer semelhança com a economia do setor público.
As fontes de financiamento do setor público são bem diferentes das fontes de receita de um lar. Um governo se financia com impostos e taxas, que ele próprio pode aumentar ou diminuir. E, além disso, pode decidir quem pagará e quanto pagará. Um governo pode escolher quem vai tributar. Em geral, um chefe de família não pode decidir sobre o valor do seu salário e para quem vai trabalhar.
Um governo pode se financiar, ainda, através do endividamento, vendendo títulos da dívida pública. Somente governos que têm credibilidade podem se financiar dessa forma. Títulos de governos ditatoriais, caloteiros ou sem fontes robustas de receita não possuem compradores potenciais.
Não há limites ideais (teóricos ou empíricos) para níveis de endividamento público, o que existe é sempre uma avaliação do setor privado sobre a capacidade de solvência do setor público. Isso ocorre sempre, com altos ou baixos níveis de endividamento, com trajetória acentuada ou tênue de endividamento.
Uma família também pode se endividar. E se endivida. Por exemplo, o pagamento com o uso do cartão de crédito é um tipo de endividamento. A primeira atitude de uma família não é cortar gastos essenciais diante de dificuldades financeiras. Mas, sim o endividamento e, posteriormente, incorrem em inadimplência.
A diferença importante é que de maneira oposta às finanças domésticas o endividamento público é até mesmo necessário. Um governo que tem uma dívida pública com volume considerável pode administrar mais facilmente a liquidez da economia através da compra e venda títulos.
Quando vende títulos tira liquidez (moeda) da economia e quando recompra seus títulos aumenta a liquidez (a quantidade de moeda). Idealmente, governos devem possuir dívidas (com custos baixos). Esse é mais um canal para regular a economia. Idealmente, famílias não devem possuir dívidas.
Governos possuem, também, algo que para as famílias é um sonho: uma máquina de fazer dinheiro. E podem se financiar colocando a sua máquina para funcionar. A ignorância econômica, sempre precipitada, dirá que isso provoca inflação. Não é verdade. Mais dinheiro na economia é até necessário quando há crescimento real, quando temos mais produtos e serviços.
Mais dinheiro na economia somente provoca inflação quando há um boom econômico, quando há superaquecimento. Mas, sob essas condições, governos têm receitas de impostos e taxas suficientes e não precisam ligar a máquina de dinheiro para financiar seus gastos.
Toda decisão de governo, inclusive sobre suas fontes de financiamento, é sempre uma decisão política. A técnica econômica subsidia a política, mas não se sobrepõe a ela. Portanto, a decisão de conter gastos públicos diante de supostas necessidades de melhorar os resultados das contas públicas é uma decisão política (decorrente de uma ideologia) e não uma decisão baseada na vida econômica doméstica.
Se não existe receita pública de taxas e impostos suficiente é porque não há crescimento. Mas há outras fontes alternativas de financiamento, tal como mencionadas anteriormente. Portanto, o caminho adequado é sempre o estímulo ao crescimento e a readequação das fontes de financiamento.
Uma decisão de conter públicos gastos essenciais está longe de ser uma lição da economia do lar. Nada tem a ver com o comportamento, tido como óbvio, da vida da maioria da população.
As dificuldades orçamentárias do governo brasileiro não têm nenhuma relação com seus gastos primários (saúde, educação, Previdência etc.), nem com o seu nível de endividamento. Tanto é verdade que somente não houve superávit no orçamento primário, recentemente, nos anos de 2014 e 2015.
O problema central é que tem havido ao longo dos anos um gasto público excessivo com o pagamento de juros a rentistas e banqueiros (credores do governo) e, dessa forma, os recursos são insuficientes para a saúde, educação e demais áreas.
O governo Temer fará a opção de conter gastos públicos em áreas essenciais, mas vai transferir bilhões de reais, sem limites, a banqueiras e rentistas. Por exemplo, deixará de atender milhões de indivíduos no SUS para que sobrem recursos para pagar juros da dívida pública.
Mas como Temer gosta de utilizar a economia familiar como referência para suas decisões de orçamento público, então deveria perguntar a um chefe de família o que faria diante da escassez de recursos: pagaria juros ao banco ou deixaria seu filho sem atendimento médico?
Será melhor não perguntar, já que a resposta advinda da economia doméstica não deve ser aplicada à economia do governo. A opção de conter gastos em áreas essenciais feita pelo governo Temer é uma opção política de cunho ideológico. É somente isso. O governo não é como uma família.
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