Revista Krinos, 16/09/16
Por Gilberto Miranda Júnior*O argumento ontológico abdutivo de Dallagnol
Ou da falácia do uso da conclusão como premissa
O termo
“ontológico” atribuído ao argumento sobre a existência de Deus foi
cunhado por Kant, que entendia ontologia como uma filosofia
transcendental à priori, ou seja, aquela que dispensa a experiência
sensível ou empírica para definir o próprio saber. Anselmo de Canterbury
(santo católico que viveu entre 1033 a 1109) possui o argumento
ontológico mais famoso, estudado e comentado ao longo dos tempos.
Anselmo parte da premissa (mesmo que não fique tão evidente em seu texto
original apresentado nos capítulos II e III de seu “Proslogium”,
escrito em 1078) de que a existência é superior a inexistência. Desse
ponto, segundo sua definição de Deus (como o SER mais perfeito e
superior do universo), conclui que Ele tem, necessariamente (uma
necessidade lógica), de existir. Uma lógica impecável, obviamente: se
seres existentes são superiores a seres inexistentes, e se Deus é o ser
superior a todos, logo ele necessariamente tem de existir. Não aceitar
essa conclusão é incorrer em contradição.
Todo
o problema desse tipo de argumento centra-se no fato de se usar aquilo
que se quer concluir como premissa. Para que Deus seja visto como
superior a todos os seres, é preciso já admitir sua existência, para
depois afirma-la como conclusão. Esse tipo de argumento funciona como um
jogo de cartas marcadas, onde se manipula com uma marca a carta que
precisa ser encontrada no final para se ganhar o jogo. No limite, é um
raciocínio capcioso, uma empulhação, uma desonestidade intelectual. Isso
não significa que Deus não exista. Significa apenas que as razões dadas
para sua existência, nesse caso, não são suficientes.
Nota-se
que em geral, todo raciocínio de cunho religioso carrega essa distinção
argumentativa. Primeiro dispensa-se a necessidade de qualquer
demonstração empírica do que se quer demonstrar. Em seguida, munidos de
uma premissa que já pressupõe a conclusão a que se quer chegar,
declara-se a conclusão como se o fato dela não ter sido diretamente
mencionada nas premissas fosse algo novo e necessariamente lógico.
Podemos, ao ouvir, ficar com uma sensação incômoda de que fomos
enganados, mas se caso a conclusão for ao encontro do que já cremos,
essa sensação é logo abafada e passamos a reproduzir a forma de pensar
sem maiores problemas.
Pensadores
como Descartes, Spinoza e Leibniz fizeram variações do argumento
ontológico, porém a estrutura do raciocínio sempre foi a mesma.
Descartes em suas Meditações Metafísicas
dedicou-se a esse tema e tentou provar a necessidade da existência de
Deus para que faça sentido a própria existência do mundo externo ao
nosso pensamento. Em resumo: se é possível imaginar um ser perfeito em
todos os sentidos e que, na perfeição, a existência é um atributo
lógico, então Deus, que é perfeito em todos os sentidos,
necessariamente, existe.
Talvez
não pelo fato de ser membro da Igreja Batista (embora esse fato possa
ter influenciado), o promotor Deltan Dallagnol usa do mesmo tipo de
raciocínio para desenvolver a acusação contra Lula. No entanto, olhando
seu Currículo Lattes, constatamos que o mesmo se especializou na Harvard Law School em um curso chamado “The Best Explanation of Circumstantial Evidence”.
Ou seja, sua especialidade parece ser a de determinar a melhor
explicação possível para evidências circunstanciais. Ao lermos a peça
acusatória fica claro que, se usada sua expertise
acadêmica naquilo que apresentou na denúncia, podemos concluir que,
para o promotor, a melhor explicação para um conjunto de evidências
circunstanciais será amealhar aquelas que possam confirmar uma crença
anterior na culpa de alguém. Isso é problemático demais e equivale a
usar um argumento ontológico para a existência da culpa.
No ano em que cursou Harvard, Dallagnol apresentou um projeto de pesquisa intitulado “Melhor explicação da prova indiciária”,
com ênfase em provas indiretas e diretas através das “lógicas que guiam
o raciocínio probatório”. No curso que fez e no projeto de pesquisa que
apresentou há estudos sobre dedução, indução, analogia e inferência
para a melhor explicação (chamada IME, mas conhecida também por
abdução). No projeto ele conclui que “a prova, inclusive a
circunstancial, é melhor compreendida a partir de óculos abdutivos, isto
é, via argumentos guiados pela inferência para a melhor explicação”.
Mas a questão que se abre é até que ponto a compreensão de uma prova
circunstancial lhe daria materialidade para compor uma peça de acusação?
O
pensamento abdutivo que foi clarificado por Charles Peirce se constitui
a essência de seu pragmatismo. Hoje, compõe um dos três tipos de
raciocínio lógico para o estabelecimento de hipóteses científicas junto
com o raciocínio dedutivo e o indutivo. No entanto seu uso tem elementos
característicos. Enquanto o pensamento dedutivo infere casos
particulares a partir de um todo conhecido e o pensamento indutivo
infere um todo a partir da generalização de casos particulares
conhecidos, Peirce considera a abdução como um juízo intuitivo que serve
como primeiro estágio de toda investigação científica. Ou seja, a
abdução vai reunir elementos novos que podem, hipoteticamente, ser a
explicação para um fenômeno, de forma que essa ligação possa ser
submetida à indução ou dedução como forma de especificação causal do
fenômeno. Cientificamente, no entanto, todo esse aparato racional só
será validado a partir da corroboração empírica das hipóteses. O
circunstancial no meio científico sempre irá favorecer a dúvida e em
epistemologia só existe a figura “in dubio pro reo”
(na dúvida, a favor do réu). Mesmo que na construção do processo para a
apresentação da acusação o direito trabalhe com o princípio do “in dubio pro societá”, cabendo o juiz a aplicação “pro reo”
caso a dúvida persista, ainda assim é preciso que peça se cerque de uma
heurística virtuosa que se antecipe ao contraditório previsto em Lei.
Não
peço, obviamente, que o direito passe a obedecer a heurística
científica, mas o IME (Inferência pela Melhor Explicação) possui uma
série de critérios que devem ser observados na composição de uma peça
acusatória, pois o termo “melhor explicação” não se refere à mais
conveniente ou a que possui mais adesão popular, mas sim a mais provável
na observância dos critérios da IME. Críticos da IME, no entanto,
alegam que não há conexão lógica necessária nem suficiente para que uma
inferência para a melhor explicação corresponda à verdade. Toda IME
trabalha no campo do provável, e como a próprio termo se explica, o
“provável” é o que pode ou não ser provado. Portanto, considerar, por si
só, um pensamento abdutivo como prova é dar-lhe um caráter ontológico
por fé, crença, mera convicção: um salto despropositado para quem
procura a verdade.
Ao
se dispensar a necessidade de corroboração material ou empírica e
transformar a hipótese abdutiva como a essência do fenômeno, Dallagnol
propõe que aceitemos uma ilação como um argumento ontológico abdutivo,
por mais que isso encerre uma clara contradição entre termos. Ele quer
nos fazer crer que todo o esquema de corrupção na Petrobrás,
necessariamente, precisaria ter um chefe maior, e se Lula era o
presidente à época e pode ser visto como um elemento comum entre os
envolvidos com o esquema (por favor, esqueça aquele Power Point), logo
Lula, necessariamente, é o chefe maior do Petrolão.
Curiosamente,
porém, Lula não é acusado por esse suposto crime, embora tenha sido
demonstrado por argumento ontológico que o crime não existiria sem Lula.
Porém, com base nele, o nosso ilustre promotor chega à conclusão que o
tríplex no Guarujá, sendo da OAS e despertando em 2014 o interesse de
compra de Lula, então se trata de um bem doado ilicitamente fruto da
corrupção. Não importa que não haja prova material dessa afirmação.
Importa é que ela é logicamente necessária para se confirmar a
metafísica que dá condições para que a realidade atenda aos desejos do
procurador. O fato de não haver como provar a propriedade do bem
atribuída ao acusado, para o promotor, se constitui em prova de que
houve a intenção de escondê-la. Carl Sagan estaria se revirando no
túmulo por ver deturpada sua famosa frase: “ausência de evidências não
significa evidência da ausência”.
Se
o envolvimento de Lula no Petrolão só é atribuível a partir de um
argumento ontológico que insere a conclusão nas premissas, e se a
ligação de Lula com o tríplex, a partir desse argumento base, é fruto de
um raciocínio abdutivo (IME), inescapavelmente estamos diante de uma
hipótese a ser corroborada materialmente. Jamais seria considerado
verdade em qualquer pesquisa científica ou pensamento epistemológico,
mas no direito brasileiro é. Nossa análise, obviamente, centra-se na
argumentação do promotor e não na pertinência jurídica da peça.
O
grande problema de tudo o que foi apresentado é que no âmbito jurídico é
o Juiz quem decidirá qual tipo de instrumento probatório é mais
conveniente para ele, de acordo com suas convicções. Não há, na Lei
brasileira, hierarquia de provas. Distinto do direito em outros países, a
materialidade da prova não é, necessariamente, superior a uma abdução,
pois é o juiz quem decide que prova o “convence” melhor. Mesmo com a
obrigatoriedade de justificar sua escolha, a ausência de provas
materiais sobre um fato não tira a capacidade probatória de uma abdução,
mesmo que ela seja baseada em um argumento ontológico, como nesse caso,
fruto de uma falácia.
Embora
os promotores não tenham dito na mesma sentença a frase que tem sido
fruto de diversos memes na internet (“Não tenho provas, mas tenho
convicção”), ela reflete mesmo o que está em jogo. A confissão de
ausência de prova cabal e a convicção inabalável na versão construída
dos fatos foram ditas ao longo do discurso da promotoria. A questão a
ser respondida é se essa convicção foi construída a partir do raciocínio
abdutivo (inferência da melhor explicação — IME) ou se o raciocínio
abdutivo foi construído a partir de uma convicção já existente. A
resposta está no flagrante uso da falácia embutida no argumento
ontológico, onde, necessariamente, a conclusão faz parte das premissas,
gerando uma tautologia disfarçada.
Essa
brecha para meras convicções em nossas Leis nos deixa à mercê de
elementos ideológicos e políticos nos julgamentos, ou seja, à mercê da
subjetividade de alguém cujas motivações estão ocultas, embora no caso
de Sérgio Moro, estejam mais do que reveladas. A crescente politização
do pensamento religioso não está apenas em projetos como o Escola Sem
Partido, mas está presente maciçamente no Congresso e em nosso
Judiciário. Laico, nosso Estado parece ser apenas no papel. O próprio
sistema que molda e sequestra nossas instituições a seu favor tem como
elemento substancial a ética protestante, como nos denunciou Max Weber
já há mais de 150 anos.
Portanto,
podem esperar, apesar do Power Point tosco e da mera convicção dos
procuradores, que não só a acusação contra Lula seja aceita, como sua
condenação após rápido julgamento. As cartas estão marcadas desde há
muito, independente de sua culpa, o que jamais deixará de ser uma
possibilidade concreta.
*Licenciado em Filosofia, estudou Ciências Econômicas. Participa do Círculo de Polinização do RAIZ Movimento Cidadanista, é editor do Zine Filosofando na Penumbra e Revista Krinos. Escreve para as revistas Maquiavel, TrendR e Portal Literativo.
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