Blog da Santayana, 12 de setembro de 2016
O Brasil e o perigoso jogo da história
Por Mauro Santayana
Embora muita gente não o veja assim, o afastamento definitivo de Dilma Rousseff da Presidência da República, em votação do Senado, por 61 a 20 votos, no final de agosto, é apenas mais uma etapa de um processo e de um embate muito mais sofisticado e complexo, em que está em jogo o controle do país nos próximos anos.
Desde que chegou ao poder, em 2003, o PT conseguiu a extraordinária
proeza de fazer tudo errado, fazendo, ao mesmo tempo, paradoxalmente, quase
tudo certo.
Livrou o país da dependência externa, pagando a dívida com o FMI, e
acumulando 370 bilhões de dólares em reservas internacionais, que transformaram
nosso país, de uma nação que passava o penico quando por aqui chegavam missões
do Fundo Monetário Internacional, no que é, hoje - procurem por mayor
treasuries holders no Google - o quarto maior credor individual externo dos
Estados Unidos.
E o fez, ao contrário do que dizem críticos mendazes, sem aumentar a
dívida pública.
A Bruta, em 2002, era de 80% e hoje não chega a 70%.
A Líquida era, em 2002, de aproximadamente 60% e hoje está por volta de
35%.
Mas isso não veio ao caso.
Ajudou a criar milhões de empregos, fez milhões de casas populares,
criou o Pronatec, o Ciências Sem Fronteiras e o FIES, fez dezenas de
universidades e escolas técnicas federais e promoveu extraordinários avanços
sociais.
Mas isso não veio ao caso.
Voltou a produzir e a construir, depois de décadas de estagnação e
inatividade, navios, ferrovias - vide aí a Norte-Sul, que já chegou a
Anápolis - gigantescas usinas hidrelétricas (Belo Monte é a terceira maior do
mundo) plataformas e refinarias de petróleo, mísseis ar-ar e de saturação,
tanques, belonaves, submarinos, rifles de assalto, multiplicou o valor do
salário mínimo e da renda per capita em dólares.
Mas isso não veio ao caso.
Porque o Partido dos Trabalhadores foi extraordinariamente incompetente
em explicar, para a opinião pública, o que fez ou o que estava fazendo.
Se tinha um projeto para o país, e que medidas faziam,
coordenadamente, na economia, nas relações exteriores, na infraestrutura e na
defesa, parte desse projeto.
Em vez de "bandeiras" nacionais, como a do fortalecimento do
país no embate geopolítico com outras nações, que poderiam ter
"amarrado" e explicado a criação do BRICS, os investimentos da
Petrobras no pré-sal, a política para a África e a América Latina do BNDES, o
rearmamento das Forças Armadas, os investimentos em educação e cultura, em um
mesmo discurso, o PT limitou-se a investir em conceitos superficiais e
taticamente frágeis, como, indiretamente, o do mero crescimento
econômico, fachada para as obras do PAC.
Na comunicação, o PT confiou mais na empatia do que na informação.
Mais na intuição, do que no planejamento.
Chamou, para estabelecer sua linha de comunicação,
"marqueteiros" sem nenhuma afinidade com as causas defendidas pelo
partido, e sem maior motivação do que a de acumular fortunas, que se dedicaram
a produzir mensagens açucaradas, estabelecidas segundo uma estratégia
eventual, superficial, voltadas não para um esforço permanente de
fortalecimento institucional da legenda e de seu suposto projeto de nação, mas
apenas para alcançar resultados eleitorais sazonais.
O Partido dos Trabalhadores teve mais de uma década para explicar,
didaticamente, à população, as vantagens da Democracia, seus defeitos e
qualidades, e sua relação de custo-benefício para os povos e as nações.
Não o fez.
Teve o mesmo tempo para estabelecer, institucionalmente, uma linha de
comunicação, que explicasse, primeiro, a que tinha vindo, e os avanços e
conquistas que estava obtendo para o país.
Como, por exemplo, a multiplicação do PIB em mais de quatro vezes, em dólar, desde o governo FHC - trágicos oito anos em que, segundo o Banco Mundial, o PIB e a renda per capita em dólares andaram para trás - que foram simplesmente ignorados.
Como, por exemplo, a multiplicação do PIB em mais de quatro vezes, em dólar, desde o governo FHC - trágicos oito anos em que, segundo o Banco Mundial, o PIB e a renda per capita em dólares andaram para trás - que foram simplesmente ignorados.
Poderia ter divulgado, também, os 79 bilhões de dólares de Investimento
Estrangeiro Direto dos últimos 12 meses, ou o aumento do superavit no comércio
exterior, ou o fato de o real ter sido a moeda que mais se valorizou este ano
no mundo, ou o crescimento da valorização do Bovespa desde o início de 2016,
como exemplos de que o diabo não estava tão feio quanto parecia.
Mas também não o fez.
Sequer em seu discurso de defesa ao Senado - que deveria ter sido usado
também para fazer uma análise do legado do PT para o país - Dilma Roussef tocou
nestes números, para negar a situação de descalabro nacional imputada de forma
permanente ao Partido dos Trabalhadores pela oposição, os internautas de
direita e parte da mídia mais manipuladora e venal.
O PT dividiu-se, também, quando não deveria, e não estabeleceu uma
estratégia clara, de longo prazo, que pudesse manter em andamento o projeto -
de certa forma intuitivo - que pretendia implementar para o
país.
O partido e suas lideranças foram reiteradamente advertidos de que
ocorreria no Brasil o que aconteceu no Paraguai com Lugo - a presença aqui da
mesma embaixadora norte-americana do golpe paraguaio era claramente indicativa
disso.
De nada adiantou.
De que era preciso estabelecer uma defesa competente do governo e de seu
projeto de país na internet - cujos principais portais foram desde 2013
praticamente abandonados à direita e à extrema-direita enquanto a esquerda, sem
energia para se mobilizar, se recolhia ao monólogo, à vitimização e à
lamentação vazia em grupos fechados e páginas do Facebook.
De nada adiantou.
Não se deu combate às excrescências que sobraram do governo Fernando
Henrique, justamente no campo da corrupção, com a investigação de uma
infinidade de escândalos anteriores, que poderia ter levado à cadeia bandidos
antigos como os envolvidos agora, por indicação também de outros partidos, nos
problemas da Petrobras.
E erros táticos imperdoáveis - não é possível que personagens como Dilma e Lindbergh continuem defendendo a Operação Lava-Jato, de público, em pleno julgamento do impeachment, quando essa operação parcial e seletiva foi justamente o principal fator na derrubada da Presidente da República.
E erros táticos imperdoáveis - não é possível que personagens como Dilma e Lindbergh continuem defendendo a Operação Lava-Jato, de público, em pleno julgamento do impeachment, quando essa operação parcial e seletiva foi justamente o principal fator na derrubada da Presidente da República.
Sob o mote de um republicanismo "inclusivo", mas cego,
criou-se um vasto ofidário, mostrando, mais uma vez, que o inferno - o próprio,
não o dos outros - pode estar cheio de boas intenções.
Desse processo, nasceram uma nova classe média e uma plutocracia
egoístas, conservadoras e "meritocráticas", paridas no bojo da
expansão econômica e do "aperfeiçoamento" administrativo, rapidamente
entregues, devido à incompetência estratégica à qual nos referimos antes, de
mão beijada, para adoção institucional pela direita.
Ampliaram-se a autonomia, o poder e as contratações do Ministério
Público e da Polícia Federal, medidas elogiáveis, que poderiam em princípio
funcionar muito bem em um país verdadeiramente democrático, mas que, no Brasil
da desigualdade e da manipulação midiática, levaram à criação de uma nova casta
- majoritariamente conservadora - de funcionários públicos educados em
universidades privadas - também ideologicamente alinhadas com a direita - com
financiamento do FIES e em cursinhos para concurseiros, que não tem nenhuma
visão real do que é o país, a República ou a História, e acham - ao lado de
jovens juízes - que devem mandar na Nação no lugar dos "políticos" e
do povo que os elege.
Como consequência disso, há, hoje, uma batalha jurídica que está sendo
travada, principalmente, no âmbito do Congresso Nacional, voltada para a
aprovação de leis fascistas - disfarçadas, como sempre ocorre, historicamente,
sob a bandeira da anti-corrupção, que, com a desculpa de combater a impunidade
- em um país em que dezenas de milhares de presos, em alguns estados, a maioria
deles, se encontra detido em condições animalescas sem julgamento ou acesso a
advogado - pretende alterar a legislação e o código penal para restringir o
direito à ampla defesa consubstanciado na Constituição, no sentido de se
permitir a admissibilidade de provas ilícitas, de se restringir a possibilidade
de se recorrer em liberdade, e de conspurcar os sagrados e civilizados
princípios de que o ônus da prova cabe a quem está acusando e de que todo ser
humano será considerado inocente até que seja efetiva e inequivocamente provada
a sua culpa.
Batalha voltada, também, para expandir o poder corporativo dessa mesma
plutocracia e seus muitos privilégios.
Enquanto isso, aguerrida, organizada, fartamente financiada por fontes
brasileiras e do exterior, a direita - "apolítica",
"apartidiária", fascista, violenta, hipócrita - deu, desde o início
do processo de derrubada do PT do governo, um "show" de
mobilização.
Colocou milhões de pessoas nas ruas.
E estabeleceu seu domínio sobre os espaços de comentários dos grandes
portais e redes sociais - a imensa maioria das notícias já eram, desde 2013
pelo menos, contra o governo do PT, em um verdadeiro massacre
midiático promovido pelos grandes órgãos de comunicação privados -
estabelecendo uma espécie de discurso único que, embora baseado em premissas e
paradigmas absolumente falsos, se impôs como sagrada verdade para boa parte da
população.
Entre as principais lições dos últimos anos, vai ficar a de que a
História é um perigoso jogo que não permite a presença de amadores.
Enganam-se aqueles que acham que o confronto expõe apenas a direita e a
esquerda, ou o PT e o PSDB - que agora se assenhoreou do PMDB e dos partidos do
baixo clero.
Muito mais grave é a guerra que se desenha - e que já começou, não se
iludam - entre aqueles que atacam a política, os "políticos", a
democracia e o presidencialismo de coalizão - e aqueles que, por conveniência
ou idealismo, serão chamados a mobilizar-se para defendê-los daqui até 2018 e
além.
O futuro da República e da Nação será definido por esse embate.
E é o conjunto de erros e circunstâncias que vivemos até agora, e o que
faremos a partir de agora, que poderá levar, ou não, para o Palácio do Planalto
e o Parlamento, um governo fascista e autoritário em 2019.
Os opositores do PT tiveram com o processo de afastamento de
Dilma, iniciado ainda em 2013, à época da Copa do Mundo, uma vitória de Pirro.
A judicialização da política, a ascensão da Antipolítica e de uma
plutocracia que acredita, piamente, que não precisa de votos, nem de maior
legitimação do que sua condição de concursada para "consertar" o país
e punir vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores, Presidentes
da República, em defesa de "homens de bem" que desfilam com as cores
da bandeira e com uniformes negros de inspiração nazista, ajudará a
sepultar, no lugar de aperfeiçoar, o regime presidencialista anteriormente
vigente, e introduzirá um novo elemento, ilegítimo e espúrio, no universo
político brasileiro, transformando-se em permanente ameaça para o funcionamento
e a essência da Democracia.
Infelizmente, para o país e para a República, a permanência de Dilma no
poder tornou-se, devido à irresponsabilidade da mídia e da oposição - vide as
pautas bomba do ano passado - ao sucesso da estratégia de fabricação do
consentimento levada a cabo pela direita e à incompetência política do Partido
dos Trabalhadores - de tal forma insustentável, que, se ela voltasse,
caminharíamos para uma situação de confronto em que o fascismo - como ocorreu
em 1964, no Brasil, e, mais tarde, no Chile e na Argentina - ficaria - como já
está ficando, de fato - com todas as armas, e a esquerda, com todas as
vítimas.
Nações e pessoas precisam aprender que, às vezes, é preciso saber dar um passo para trás para depois tentar avançar de novo.
É preciso resistir, mas com um projeto claro para o país.
A corajosa defesa do governo Dilma por parte de grandes lideranças da agricultura e da indústria brasileira, como os senadores Kátia Abreu, ex-Presidente da Confederação Nacional da Agricultura, e Armando Monteiro, ex-Presidente da Confederação Nacional da Indústria, mostram que não é impossível sonhar com uma aliança que una empresários e trabalhadores nacionalistas em torno de um projeto vigoroso e coordenado de desenvolvimento, que possa promover o fortalecimento do país, do ponto de vista econômico, militar e geopolítico - é preciso preservar e concluir os programas concebidos e iniciados nos últimos anos, como o dos caças Gripen NG BR, o do submarino atômico nacional, o do cargueiro multipropósito KC-390, o dos tanques leves Guarani, o projeto de enriquecimento de urânio da Marinha - e evitar, ao mesmo tempo, a abjeta entrega de nossas riquezas, como os principais poços do pré-sal, já descobertos, desenvolvidos e produzindo, aos estrangeiros (até mesmo a estatais estrangeiras, como estão defendendo, em absurda contradição, parte de nossos privatistas de plantão).
A costura de uma aliança que evite a subordinação e o caos e a transformação do país em uma nação fascista, na prática, em pouco mais de dois anos, deveria ser, daqui pra frente, a primeira missão de todo cidadão brasileiro - ou ao menos daqueles que tenham um mínimo de consciência e de informação - neste país assolado pelo ódio e pela mentira, a hipocrisia e a ignorância.
A divisão da Nação, a crescente radicalização e o isolamento
antidemocrático das forças de esquerda - que devem combater esse isolamento
também internamente e rapidamente se organizar sob outras legendas e outras
condições - a fratura da sociedade nacional; a desqualificação da política e da
democracia; só interessam àqueles que pretendem consolidar seu domínio sobre o
nosso país, evitando que o Brasil fortaleça sua soberania e a sua sociedade, em
todos os aspectos, e que venha a ocupar o lugar que lhe cabe no mundo, como
quinta maior nação do planeta em população e território.
É preciso costurar uma ampla aliança nacional, que parta, primeiramente,
do centro nacionalista - se não existir, é preciso criar-se um -
suprapartidária, politicamente includente, equilibrada e conciliatória, que una
militares nacionalistas da reserva - e eles existem, vide o Almirante Othon,
por exemplo - empresários como Armando Monteiro e Kátia Abreu, técnicos e
engenheiros desenvolvimentistas, grandes empresas de capital majoritariamente
nacional e os trabalhadores, começando pelos de grandes estatais como a
Petrobras, em torno de um projeto que possa evitar a descaracterização e a
destruição da Democracia, o estupro das liberdades democráticas e dos
direitos individuais, o pandemônio político e institucional e a
"fascistização" do país, com a entrega de nossas riquezas e de nosso
futuro aos ditames internacionais.
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