Folha.com, 31/10/2015
Pobre Simone de Beauvoir...
Por Luis Caversan
Trevas, obscurantismo, reacionarismo ou estultice, burrice, mesmo.
A que atribuir a vergonhosa e falsa controvérsia que se criou em torno da participação involuntária da filósofa Simone de Beauvoir (1908-1986) na prova do Exame Nacional do Ensino Médio?
Como dissimular o engulho diante de tanta besteira que se perpetrou a respeito de uma das frases mais lindas da inteligência humana ("Ninguém nasce mulher, torna-se mulher"), que foi inserida na formulação de uma das questões do Enem?
Como é possível não entender que se trata de uma elegia da condição feminina e de suas conquistas e direitos; uma exaltação da beleza do crescimento individual e coletivo das mulheres na construção da modernidade?
Modernidade...
Imbecilidade é mais conveniente, no caso.
Não há outra maneira de classificar, por exemplo, a ação de vereadores da valorosa cidade de Campinas que aprovaram uma "moção de repúdio" ao Ministério da Educação por ter incluído o trecho do livro de Beauvoir, "O Segundo Sexo", no exame.
A proposta foi do vereador Campos Filho (DEM), logo apoiada pela maioria de seus pares, que tomou a decisão de pedir a anulação da questão porque, a seu juízo, ela "afronta esse conjunto de fundamentos jurídicos e o próprio Estado Democrático de Direito", pasme!.
Disse mais o nobre edil: "Foram buscar informações com uma filósofa lá em mil trocentos e pouco para impor a nós a discussão de gênero. Como pode alguém ser um homem de manhã e mulher à noite? Dizem que isso acontece porque as pessoas sentem uma pulsão. Mas eu digo: é preciso tomar cuidado com essa pulsão, porque isso pode te levar para cadeia."
Que beleza de raciocínio, não?
Claro e transparente, afinal conceitos formulados no longínquo 1949 (ano
da primeira edição do livro de Beauvoir) são arcaicos demais para serem
levados a sério.
Não é mesmo, Platão, Sócrates, Descartes, Pascal, Emerson, São Tomás de Aquino, Hobbes, Rousseau?
Se é assim, e para corresponder às inovadoras expectativas do caro vereador, vamos apelar a um "pensamento" contemporâneo. Que tal a pensata do notório pastor-deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), que ao lado de Jair Bolsonaro (PP-RJ) constitui vanguarda do atraso no parlamento brasileiro.
Eis o que postou em sua página no Facebook para formar e informar desavisados a respeito de "quem foi Simone de Beauvoir": "Simone era filha mais velha de uma família que embora fosse rica ficou pobre. O pai de Simone teve duas filhas mulheres, e seu pai queria que ela tivesse nascido homem. (...) Simone começou a estudar pra substituir a falta de 'dote', ao mesmo tempo que assumiu uma postura MASCULINA como forma de se sentir superior e psicologicamente aceita, pois agir como homem a fazia sentir estar agradando ao pai. Simone se tornou escritora e criticava a burguesia de onde ela saiu. Saiu porque seu avô banqueiro perdeu tudo, ficou pobre e tiveram que voltar a trabalhar. A crítica de Simone era por ter sido rejeitada. Era um tipo de vingança contra a burguesia com sentimentos de rejeição, ódio e inveja. O ENEM colocou na prova um texto de uma MULHER com problemas emocionais e psicológicos e quer convencer milhões de alunos a não aceitar sua condição natural de MACHO ou FÊMEA. (...)"
Ao reler palavras tão esclarecedoras, com o deputado caprichando nas maiúsculas para que a gente não deixe de captar nada do essencial, me pergunto: a anencefalia demonstrada acima deve ser considerada problema emocional ou psicológico?
Enquanto permanece a dúvida, talvez seja o caso de recorrer a quem de fato entende do assunto, como o matemático John Nash, que ganhou um Nobel apesar de maluquinho da silva (lembram do filme "Uma Mente Brilhante"?), ou a sir Isaac Newton, que descobriu a lei da gravidade mesmo tendo o que hoje se chamaria de transtorno bipolar, ou ainda ao filósofo Immanuel Kant, que seria atualmente classificado como legítimo portador de transtorno obsessivo compulsivo, tal sua mania exagerada de pontualidade – acertava-se o relógio pelos seus hábitos, afirma-se.
Ou talvez quem sabe devamos recorrer a Beethoven, Van Gogh, Caravaggio,
Genet, Rimbaud, Edgard Alan Poe, Ernest Hemingway, Tennessee Williams e
tantos outros que, "apesar" de suas obras seminais para a cultura e a
sabedoria tão escassas ultimamente, saberiam explicar com propriedade do
que se trata "problemas emocionais e psicológicos".
Caro vereador, caro deputado, é a sua "normalidade" que nos assusta, não a genialidade de Simone de Beauvoir...
Nenhum comentário:
Postar um comentário