segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Antinomia na hidráulica da democracia: A hermenêutica dos vazamentos







INTELIGÊNCIA INSIGHT Ed. 70

JULHO  AGOSTO SETEMBRO 2015



Antinomia na hidráulica da democracia:
A hermenêutica dos vazamentos


Por Anna Cecilia Faro Bonan*



Instituições privadas ou públicas podem manter o sigilo de suas informações por considera-las demasiado sensíveis ao público ou mesmo para proteger a continuidade de suas políticas internas e externas. O vazamento consiste justamente em um escoamento indesejado dessas informações, isto é, a entrega e a exposição de informações caracterizadas como sigilosas. Nesse contexto, as intenções por trás da revelação de segredos podem ser variadas, desde intuitos altruístas em prol da sociedade até motivações individuais perversas. 

Todo cuidado é pouco para dissecar o fenômeno do vazamento. Diríamos que o mesmo é uma espécie de icosaedro, em virtude da multiplicidade das suas faces. Sua complexidade risca um caminho tortuoso entre as fronteiras do bem e do mal. Compreendendo que bem e mal somente podem ser trabalhados como categorias valorativas, e dentro de sua carga subjetiva precisam de um referencial, consideraremos o bem sempre em favor da democracia1 e o mal como um desserviço às estruturas democráticas. É dessa maneira bifronte que o instrumento dos vazamentos se apresenta à sociedade.

De acordo com o sociólogo alemão Georg Simmel, a ocultação de parcelas da realidade, por meio de ações ou omissões, é um dos fundamentos-chaves da vida social, uma vez que a publicidade total impediria que a vida se manifestasse em sua plenitude, o que só é possível com a delimitação de esferas mais íntimas. Simmel explica alguns elementos que dão forma ao que poderia se chamar “vida psíquica” do segredo: se, de um lado, existe uma atração formal e uma vantagem prática e funcional para a manutenção do oculto, em contrapartida há uma pressão interna estrondosa e crescente para se ceder à tensão infligida pelo compromisso do sigilo, somada com uma sensação de poder e de superioridade contidas no ato de revelar o que poucos conhecem.2 Essa combinação cria um dilema para aquele que detém o segredo: manter ou revelar?

Ademais, há também aqueles que desejam descobrir, motivados por um “instinto de idealização”3, quase que um fetiche natural pelo secreto, e pelo medo daquilo que desconhecem. Se o sigilo ergue uma barreira entre os indivíduos e começa a moderar suas relações, a tentação de irromper tal barreira por indiscrição, confissão ou mesmo intrusão é constante4, ainda quando ignoradas as intenções individuais dos personagens de um caso concreto.

Em uma reflexão mais próxima da ciência política, o segredo pode ser compreendido como um instrumento político essencial para as práticas de manutenção do governo e da dominação, ou seja, está alocado no “mais recôndito cerne do poder”5. Conforme narra Ruan Sales de Paiva Pinheiro em sua dissertação de mestrado apresentada ao Conselho do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista, a formação dos Estados modernos garantiu a prerrogativa de controle das informações estatais6, e, com o devir da história, os processos de abertura democrática, apesar de vincular o poder público ao interesse dos cidadãos, demandar a existência de uma cidadania ativa e ter como um de seus maiores fundamentos a transparência, mantiveram a garantia de proteção ao segredo em alguma instância, geralmente associado à ideia de segurança nacional, ou seja, o segredo como forma de garantia para a preservação dos próprios cidadãos.7

No entanto, segurança nacional é um conceito bastante impreciso e de grande elasticidade, o que permite, a partir de uma avaliação subjetiva, enquadrar múltiplas informações em uma categoria de segredo de Estado. O conceito que é mais frequentemente ligado a adversários ou inimigos, internos e externos, em supostas interações conflitivas, pode acabar sendo ampliado para tudo aquilo que cause um intenso impacto danoso, físico ou moral, na ordem pública e nas instituições de poder. É preciso estabelecer limites. Em uma democracia a transparência deveria ser sempre a regra, enquanto o segredo, a exceção. Se é premissa da democracia que “todo poder emana do povo”, parcas são as defesas para deixá-lo na completa ignorância. Toda informação restringida aos cidadãos deve possuir um arcabouço robusto de justificativas no seio das constituições democráticas.

Se o segredo é um instituto político tão poderoso, o vazamento só poderia ser compreendido como seu correspondente opositor. Assim, o vazamento é o ponto clave para compreender a própria dialética do segredo. Ambos os instrumentos mantêm um caráter dicotômico perante a democracia. Para elucidar a complexidade da questão, podemos avistar dois casos norteamericanos emblemáticos que se contrapõem nessa relação positiva e negativa para com a democracia: os vazamentos de Watergate e os da Nacional Security Agency (NSA) quanto às interceptações telefônicas de Osama Bin Laden.

Em 1969, Richard Nixon chegava à Casa Branca assumindo a presidência de um país que se encontrava em uma situação militar complicada. A guerra do Vietnã causava um déficit pessoal de 300 a 450 soldados mortos por semana, e o contingente humano norte-americano já somava 549 mil homens em ação8. Era urgente adotar novas estratégias contra os vietcongues para reverter o quadro. O recém-eleito presidente, então, ordenou os bombardeios sistemáticos ao Camboja, país que, apesar de declarar-se oficialmente neutro, servia de base de apoio ao exército norte-vietnamita. A estratégia, contudo, constituía uma violação das leis internacionais, e, portanto, os bombardeios deveriam ser mantidos em segredo. Porém, a ardilosa tática de Nixon foi revelada. Em maio daquele mesmo ano, o jornal The New York Times publicou informações bombásticas expondo tal segredo de Estado.

Os vazamentos não cessaram na ocasião. Em junho de 1971, o New York Times tornou público trechos dos famosos “Pentagon Papers”, um longo estudo de sete mil páginas acerca do envolvimento norte-americano no Vietnã. As informações cedidas por Daniel Ellsberg, antigo colaborador do programa de pacificação da CIA no Vietnã poderiam complicar negociações ultrassigilosas entre a Casa Branca e Pequim. Nixon trabalhava nesse período um de seus maiores objetivos na política externa, a ruptura da unidade comunista chinesa pelo reconhecimento oficial da República Popular da China, e toda aquela publicidade se apresentava devastadora para seus planos.

Os vazamentos seguiam como uma torneira aberta. Em julho de 1971, o New York Times revelou posições americanas nas negociações Salt de Helsinque. Em dezembro, o jornalista Jack Anderson, ganhador do prêmio Pulitzer daquele ano, revelou, ainda no New York Times, o conteúdo de memorandos secretos do Conselho Nacional de Segurança que demonstravam um suposto apoio militar ao Paquistão na guerra indo-paquistanesa em Bangladesh. Diante da situação, o estadista norte-americano foi obrigado a iniciar uma caça aos ratos a fim de evitar que os mesmos seguissem roendo os canos e, consequentemente, vazando informações secretas da Casa Branca. Para tanto criou uma espécie de “departamento” que uniam profissionais “expertos” na área de espionagem, estes ficariam conhecidos na história como “encanadores” da Operação Watergate9, que pretendia também descortinar um possível financiamento das campanhas eleitorais do partido democrata pelos cubanos.

As espionagens internas, realizadas dentro do edifício de Watergate, não trouxeram os resultados desejados por Nixon. A criação se voltou contra seu criador. Em dezembro de 1972, o jornal Washington Post expôs as relações entre os “encanadores” e a Casa Branca. O escândalo arruinou a popularidade de Nixon e fez com que ele, frente à ameaça de um processo de impeachment, renunciasse à presidência em meados de 1974.

Somente em maio de 2005, três décadas após o acontecimento, a identidade daquele que ficou conhecido pelo codinome de «Garganta Profunda», a misteriosa fonte do FBI que proveu as informações sigilosas de Watergate aos jornalistas do Washington Post, foi revelada por John D. O. Connor em um estrondoso artigo na revista Vanity Fair10. Mark Felt surgiu, então, como um justiceiro, um herói nacional. No entanto, de acordo com o artigo revelador, Felt passou décadas atordoado por um sentimento de culpa quanto à quebra de sua ética de conduta nos serviços prestados ao FBI.

Esse conflito moral interno é inerente à condição de vazador, ainda que esse tenha outros interesses ocultos por detrás dos interesses públicos, afinal, para se vazar uma informação, por maior que seja sua utilidade pública, é sempre necessário romper a barreira do sigilo, por meio do abandono de um compromisso funcional ou de uma intrusão ilegal ou imoral de “sistemas” de informação restritos por questões relacionadas à intimidade e à privacidade ou por questões correlatas a segredos de Estado e segurança nacional.

O caso Watergate é um bom exemplo de como os vazamentos podem ser uma intervenção positiva para o controle das atividades de governo, assim como para descortinar os casos de “desmandos” do poder público e principalmente afrontas severas aos direitos humanos. Porém, não são todos os casos os que geram um efeito positivo à sociedade. Algumas informações privilegiadas pelo manto do sigilo, quando desnudas, podem gerar efeitos desestabilizadores para políticas definidas pelo Estado como o bem comum, e assim compreendidas pela comunidade como uma construção de um valor ou uma demanda coletiva, portanto, democráticas.

Observemos o caso do vazamento quanto às interceptações telefônicas de Osama Bin Laden. Em 21 de agosto de 1998, um dia após disparos de mísseis contra as bases da Al Quaeda no Afeganistão, o jornal Washington Time expôs ao público que a National Security Agency (NSA) estaria interceptando a comunicação telefônica de Bin Laden. O grupo classificado como terrorista teria causado 258 mortes, entre esses 12 americanos, em bombardeios de embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia, um pouco antes do fato. Em decorrência do vazamento, Bin Laden supostamente deixou de utilizar os telefones por satélite, condenando uma fonte preciosa da inteligência norte-americana para as tentativas de rastrear seu declarado inimigo. Por tal motivo, o vazamento foi criticado veementemente pelo relatório final da Comissão Parlamentar de Inquéritos sobre os ataques de 11 de Setembro11, assim como pelo então presidente George W. Bush.

Não se pretende aqui tecer comentários acerca da subjetividade dessas interceptações, julgando-as boas ou más sob o ponto de vista particular. Mas, sim, compreender o ponto de vista da legitimidade das ações quanto política aceita por uma determinada comunidade, ou por uma expressiva maioria desta. Ainda que muitos norteamericanos e membros da comunidade internacional criticassem a guerra no Afeganistão, bem como as posturas e estratégias de guerra norte-americanas, tais críticas só ganharam uma força maior em decorrência da visibilidade de outro vazamento muito mais recente, pela plataforma WikiLeaks, que identificou a ocorrência de crimes de guerra por parte das forças armadas norte-americanas e expôs o fracasso que constituía as ações das mesmas12, de modo que, na ocasião, havia uma aceitação popular da medida afeta à segurança nacional – e talvez ainda haja. Portanto, o vazamento, apesar de trazer a transparência, acabou em conflito com políticas protegidas pela representação legítima do poder, fundada sobre o reconhecimento do Poder Público enquanto intérprete e atuante da vontade popular.

Os vazamentos acabam se firmando na relação Estado x Sociedade e, portanto, na democracia como uma imposição quase atávica, tornando-se uma representação da “transparência em movimento”, com as ações muitas vezes compreendidas como de interesse público, ainda que não o sejam. Porém para compreender esse fenômeno é necessário separar o vazamento do vazador. O vazamento torna-se legítimo ou não em função da forma com que a sociedade se relaciona com a informação vazada, não dependendo dos interesses individuais do vazador. Nesse contexto os vazadores de segredos do Estado compreendidos como legítimos pela sociedade são vistos como traidores, da mesma forma que o vazamento de segredos ilegítimos ou prescindíveis perante aos olhos dos cidadãos é muitas vezes aplaudido como ato de cidadania e até mesmo heroísmo.13

É claro que, a despeito de sua faceta “legítima”, os vazamentos constituem uma preocupação para os governos em todo o mundo, pois quando esses tomam sua forma inaceitável, condenada pela sociedade, podem gerar efeitos corrosivos às instituições de poder e suas políticas públicas. Uma amostra evidente dessa preocupação são os “Official Secrets Acts14 e outras legislações estrangeiras que versam acerca da proteção dos segredos de Estado e de suas informações confidenciais, como salvaguarda da segurança nacional. Porém, apesar das tentativas de coibir a prática dos vazamentos, inclusive com suspeitas de estratégias não tão ortodoxas15, os governos não vêm obtendo êxito no resguardo de suas informações sigilosas.

Isso ocorre porque é impossível reparar todo o “encanamento” das instituições e vedar os efeitos colaterais decorrentes dos vazamentos e da quebra dos compromissos que envolvem as informações em um Estado democrático ou naqueles em que ainda é possível trilhar os caminhos das lutas democráticas. A razão está no fato de que a prática do vazamento nasce no âmago de fundamentos democráticos, como a transparência dos atos públicos, o acesso à informação e a liberdade de imprensa. É natural que, em uma democracia, os cidadãos busquem romper o monopólio de determinados fluxos de informação pelo Estado, desafiando os procedimentos de classificação, controles de acesso e punições para quebra dos sigilos16, e que essa ruptura seja compreendida como um instrumento democrático e não como traição. Enquanto que em uma sociedade organizada na forma de um Estado autoritário, e não como uma sociedade civil autônoma, não há um lugar sequer simbólico para os vazamentos, pois eles contradizem a própria fundamentação daquele Estado, na qual o controle de todo e qualquer fluxo de informações é regra e a relação Estado x sociedade é mediada hegemonicamente pela força. Qualquer informação revelada nesse contexto é compreendida como traição.

O fato é que vazamentos não são exceções na democracia. Eles surgem quando a sociedade autônoma pode, ela mesma, decidir o que deve ser de seu conhecimento, e a própria divergência entre o que os cidadãos acreditam que deve ter publicidade possibilita uma sociedade ainda mais democrática, na qual mais informações estarão à disposição dos cidadãos. Ou seja, é a regra em uma sociedade democrática o vazamento recursivo de informações, e esses vazamentos ajustam as prerrogativas da sociedade e as atribuições do Estado, contribuindo para uma relação de democracia plena.17

Porém, esse instrumento que surge de um pleito democrático carrega às contradições do deus romano Janus – a divindade de duas faces –, gerando problemas para a própria democracia, pois de um lado sustenta-se o prato da liberdade e de outro o prato da segurança. Em geral, um deles sempre acaba se espatifando no piso. Portanto, um vazamento saudável à democracia deve passar por um processo cognitivo de reflexão elevada: a informação classificada como propriedade, protegida ou sigilosa deve ou não vazar?

De acordo com Kirk Hanson e Jerry Ceppos, um bom vazamento pode ser entendido como a divulgação de informações que expande a compreensão do público de uma questão de interesse público, sem prejuízo personificado ou quando o prejuízo é significativamente menos importante ao interesse público em questão. Enquanto um mau vazamento é aquele que prejudica e não ajuda a compreensão do público de um ato público importante, ou aquele que, ainda buscando esclarecer uma questão relevante ao interesse público, cria um prejuízo desastroso, não proporcional aos benefícios que atribui à sociedade18. Informações que versam tão somente a esfera privada, isto é, sobre a intimidade de um indivíduo, como a orientação sexual, suas finanças privadas, ou acerca de telefonemas pessoais, mesmo que não impliquem em alto nível de influência na esfera pública, são daninhas ao processo democrático, pois inoculam o vírus do desrespeito aos direitos individuais.

Tudo se resume à avaliação do benefício público. Não se nega uma dose, desde que medida, de dano material ou imaterial, mas é necessária uma justificação concreta dentro de limites “éticos”. O vazamento que serve apenas a um interesse estritamente político de setores da sociedade não pode ser considerado de interesse geral para a democracia. O interesse próprio muitas vezes pode ser confundido com o interesse público, assim como o “vazamento justiçador” é uma forma de instrumentalizar as informações buscando encurralar decisões democraticamente perfeitas. Cabe em todas essas circunstâncias, a mãe de todas as perguntas: quem ganha e quem perde com o vazamento? Vencedores e perdedores, não obstante o já declarado alto nível de subjetividade da questão, ainda são o melhor fio do novelo para a compreensão dos vazamentos.

Todo esse balanceamento seria facilitado se o “interesse público” fosse uma categoria objetiva, mas não, a expressão abre divergências tanto no plano abstrato quanto diante de casos concretos. Os vazadores definem tal interesse quando uma informação traz responsabilidade e transparência para o governo e expõem má administração ou corrupção. Os governos dos Estados Democráticos, por sua vez, se colocam como intérpretes do interesse público, imbuídos da legitimidade democrática do sufrágio universal, defendendo sua faculdade de determinar quando certas informações são demasiado sensíveis para conhecimento público e de punir aqueles que, em quebra de compromisso de sigilo, realizam uma “sabotagem” ao seu governo19. Nessa disputa pela definição do interesse público parece que só se pode conferir quem está correto depois que o cano estoura.

No geral, quatro são os personagens principais atuantes no fenômeno do vazamento: (i) os donos da informação, aqueles que já avaliaram a sensibilidade da informação e a cobriram pelo manto do sigilo; (ii) o vazador detentor da informação, seja pela sua condição funcional ou pela utilização de mecanismos de espionagem e intrusão, quem muitas vezes permanece oculto para a sociedade; (iii) a mídia, em sua forma ampla, incluindo a mídia tradicional e as ditas mídias alternativas, que dissemina a informação; (iv) o público, isto é, a sociedade civil como um todo, de onde surge a opinião pública, que poderá fortalecer ou esmaecer os impactos causados pela revelação da informação, tanto através do uso do ciberespaço, quanto por meio de grupos ativistas e movimentos sociais.

É de se esperar que tanto os vazadores como a mídia trilhem o caminho reflexivo quanto ao interesse público a ser promovido pela informação vazada, porém, afastando-nos de uma posição ingênua, há de se compreender que as informações na maior parte das vezes carregam também interesses particulares e, inclusive, perversos. Não raras vezes platitudes são recomendáveis como expressão de reforço quanto a determinado comportamento, no caso é aconselhável que o jornalista, ao receber a informação, mantenha certo grau de suspeição perante o vazador, e verifique a informação com o máximo de fontes possíveis a fim de medir a sua fiabilidade e compreender os interesses que o levaram até ela 20. Em contrapartida os delatores devem ter cuidado com a mídia que escolhem confiar seu vazamento, a fim de garantir que a informação não seja utilizada para outros interesses promíscuos.

Há ainda outros fatores a ser levados em consideração, como o respeito ao tempo correto de se realizar um vazamento, a maior confiabilidade de informações advindas de documentos físicos, a blindagem de um grupo de vazadores que trabalhem juntos, o interesse sobre a continuidade dos vazamentos e a sua possível banalização, a aceitação de pagar o preço após o risco ser assumido e a possibilidade de sanções para com terceiros não responsáveis pelo vazamento como forma de pressionar os verdadeiros delatores e de dar uma resposta de não impunidade. O processo do vazamento possui demasiadas variáveis e, portanto, deve ser analisado com cautela, pois a alteração de qualquer algarismo modifica o resultado da equação. O vazamento transita de posição em instantes na qualificação do bem e do mal.


Exegese dos vazamentos

Conforme já exposto, o segredo e o vazamento são instrumentos ligados diretamente ao poder, e, portanto, fazem parte da esfera política da sociedade. No entanto, algumas formas de vazamentos ganham contornos de estratégias que fogem do fair play da política. Podemos vislumbrar quatro exemplos de confronto ao sigilo – e estes não são exaustivos – que assumem um importante caráter político em virtude dos seus interesses e impactos na sociedade: os vazamentos seletivos, os “vazamentos chantagens”, o Trial balloon e os “vazamentos apoio”.

Os vazamentos seletivos talvez sejam os alvos mais frequentes de críticas acirradas contra o fenômeno dos vazamentos. A prática consiste na pré-seleção das informações a serem vazadas, com fins de direcionamento da “opinião pública” – poderemos aprofundar-nos na questão da opinião pública e compreender o uso das aspas mais à frente – a serviço de interesses políticos particulares. A seletividade desses vazamentos reflete um projeto de desestabilização/manutenção das instituições de poder, assim é prática comum tanto das forças da oposição, que usam dos vazamentos de informações para debilitar o poder estabelecido, quanto do próprio governo, que pode se utilizar de informações para enfraquecer a oposição e afirmar a adoção de suas políticas.

Os vazamentos seletivos passam a ser uma arma insidiosa, pois perdem seu conteúdo de justiça quando ocultam outras corrupções, que ensejam sua própria triagem, a fim de prejudicar algo ou alguém. Tais vazamentos abafam completamente o lado meritório do instrumento, a busca de transparência e de fiscalização popular das ações dos governantes, que se contrapõe à traição e ao descompromisso com o sigilo, a honra e a norma. Resta apenas o lado mais ordinário deste instrumento, sua forma de manchar figuras públicas e de desestabilizar a ordem política e econômica, a fim de satisfazer interesses próprios.

Apesar das críticas acerca do processo seletivo de informações a serem vazadas, nos resta a dúvida se todos os vazamentos não são, de certa forma, seletivos, pois toda informação traz consigo uma valoração subjetiva e demonstra algum interesse, nobre ou maquiavélico. O ícone número um dos vazamentos, Julian Assange diria que não. O australiano defende que as informações sejam de domínio público independentemente do nível de sensibilidade da informação. Para ele, os danos provocados pela informação são sempre inferiores à conquista da transparência, pois uma sociedade deve ter a possibilidade de conhecer todas as informações de interesse público e também a capacidade de lidar com elas.21

No entanto, Assange é fortemente criticado justamente por essa falta de seleção, acusado de expor cidadãos a perigos, quando não valorados os possíveis danos ocasionados por uma revelação impactante. Em um artigo publicado originalmente no jornal The Guardian e reproduzido pelo El País, James Ball, ex-empregado da organização WikiLeaks, revela que uma das causas de seu afastamento foi justamente a falta de seleção e edição dos documentos conhecidos como Cablegates, que revelaram detalhes secretos das ações diplomáticas dos Estados Unidos da América 22. De acordo com Ball, os documentos continham detalhes sobre ativistas, políticos de oposição, blogueiros em países autocráticos com seus nomes reais, vítimas de crimes perpetrados por Estados e outros indivíduos militantes de direitos humanos que tiveram algum contato com a diplomacia norte-americana. A exposição desses nomes e outros dados referentes a essas pessoas foi condenada por Ball, como de extrema irresponsabilidade. Se a ausência de seletividade é louvável como princípio, ela pode ser condenável como método. Mais uma vez o vazamento se apresenta de forma dialética, se a seletividade pode servir a interesses obscuros, ela também serve para proteger a exposição desumana de personagens citados em uma informação.

Uma vez identificado como os vazamentos e o controle de sua seleção podem ser um instrumento de desconstrução da estabilidade da ordem política e econômica torna-se mais simples evidenciar que seu uso ou sua ameaça podem granjear vantagens no jogo político. Surge assim outra faceta ardilosa dos vazamentos: o “vazamento chantagem”. Nessa modalidade de vazamentos “as fendas na tubulação e as torneiras frouxas” das instituições, são utilizadas como maneira de pressionar as mesmas a tomar certas atitudes e atender certos pleitos. Normalmente esses vazamentos são realizados entre diferentes instituições do próprio Poder Público, que possuem o acesso às informações, e de forma recorrente começam a disseminá-las, a fim de exigir o atendimento de alguma demanda, como aumento de verbas orçamentárias, ampliação de autonomia, reconhecimento de poderes e funções, entre outras. Não há aqui uma chantagem propriamente dita, escancarada, mas, sim, um jogo de pressões usando a assimetria do controle de informações.

A drenagem da inundação midiática causada por esses vazamentos, que pressionam as instituições por nutrirem-se de alguma informação, geralmente negativa e que se deseja manter oculta, só pode ser, por muitas vezes, realizada através de concessões. Tapar as fendas, cerrar as torneiras e apertar o encanamento podem ser soluções viáveis, mas que geram custos ao devir democrático. Não parece correto que qualquer decisão governamental seja tomada por meio de um constrangimento a base de “chantagem”. Não há defesas que possam acudir aqueles que vazam para garantir benefícios políticos e para cercear o poder daqueles que foram eleitos democraticamente. Os “vazamentos chantagem” são moralmente condenáveis, mas dificilmente puníveis. Uma das fuligens inerentes à democracia.

Já o chamado Trial baloon, isto é, o balão de ensaio, é comumente definido como aquela informação enviada para a mídia a fim observar a reação do público. Ele pode ser usado por empresas que enviam comunicados à imprensa para julgar a reação de seus clientes ou por instituições políticas que vazam deliberadamente certas informações acerca de uma proposta de mudança política a ser considerada. Thomas Meyer e Lew Hinchman exploraram como a política é feita através de balões de ensaio e como planejamentos políticos estão, muitas vezes, sujeitos à “colonização da mídia” no livro “Democracia Midiática”.

Para os autores, mais do que a opinião do público, que muitas vezes pouco entende sobre determinados temas da política, os balões de ensaio têm como alvo principal a própria mídia, a fim de identificar se determinada medida terá ou não o apoio desta. O balão de ensaio funcionaria então como uma espécie de barganha entre as intenções programáticas do governo e a reação da mídia; ou seja, os programas do governo acabariam sendo ajustados paulatinamente de acordo com a repercussão midiática.23

Essa intenção de buscar apoio na mídia para legitimar determinadas medidas políticas é encontrada também no que aqui chamamos de “vazamentos-apoio”. A prática consiste em vazar informações a fim de criar uma adesão popular a ações de governo e atos administrativos que não encontram apoio dentro do próprio governo e são considerados descolados da legalidade, porém ganham força para sua continuidade a partir de uma legitimidade construída com os cidadãos. O apoio recorre à velha proposição maquiavelista de que o vulgar sempre é tomado por aquilo que uma coisa parece ser e pelo que vem dela, o que tornam os meios justificados pelos seus fins.24

É por essas e outras estratégias, vez que os interesses políticos podem ir recriando as formas dos vazamentos, que levaram o reconhecido Yves Mamou, ex-editor do Le monde, a cunhar a frase cortante como navalha: “O vazamento de informações está para a democracia assim como a tortura para a ditadura.”


A responsabilidade e manipulação da imprensa

O papel da imprensa na configuração do “sistema hidráulico” da democracia é essencial. É ela a destinatária oficial dos vazamentos, embora às vezes estes também sejam divulgados a ativistas, que podem agir como um estímulo adicional para a cobertura da história25, amplificando sua ressonância junto à sociedade. Mesmo as plataformas de vazamentos criadas do ciberespaço contam com o apoio das grandes mídias, como o WikiLeaks, que mantém relações com os jornais The Guardian, The New York Times, Der Spiegel, Le Monde, entre outros.

A liberdade de imprensa é compreendida como um dos baluartes da democracia e se faz sempre presente no bojo das Cartas Magnas dos Estados fundados sob essa forma de governo, sejam liberais ou de alguma vertente socialista. A figura de uma sociedade sem imprensa ou com uma imprensa completamente jugulada pelo poder público nos arrasta a tempos dolorosos, em que o autoritarismo selava não só bocas como também corpos. Foram as numerosas experiências de períodos ditatoriais na história da sociedade moderna que solidificaram a compreensão de que a censura ou outra forma de cerceamento da liberdade de imprensa caracteriza verdadeira afronta aos direitos fundamentais, matéria versada inclusive em tratados internacionais, entre eles a Declaração Universal de Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica e a Declaração Internacional de Chapultepec 26. Ademais, muitas são as organizações internacionais não governamentais que atuam positivamente a fim de manter e ampliar esse direito, a exemplo do Reports Without Borders, do Committee to Protect Journalists e da Freedom House.

A liberdade de imprensa é própria da atividade jornalística e dos veículos de comunicação, sendo um desdobramento da liberdade de expressão e do acesso à informação. São direitos individuais de todo e qualquer cidadão e essenciais para o controle do abuso de poder. Congloba, dessa forma, tanto a circulação de valores subjetivos na expressão da opinião como de informações de categoria objetiva. A liberdade de imprensa não só protege aquilo que se pretende ser e é publicado, como também a negativa, por parte dos meios de comunicação, de realizar alguma publicação.

Compreender que a imprensa é “livre” é importante para entender o fenômeno do vazamento. Isso porque o vazamento só pode existir quando as informações não são regidas pelo governo. Somente em países autocráticos, onde a imprensa é um diário oficial é que existe uma blindagem eficiente para o vazamento. Portanto, uma imprensa responsável deve fornecer aos indivíduos informações que possibilitem o exercício da cidadania e a participação nas decisões políticas a serem tomadas com a sociedade. Assim, a razão de ser da imprensa deve primar pela responsabilidade, que tem como premissa a garantia de veracidade da informação e preocupação permanente com o impacto que ela possa causar na sociedade. É função precípua do jornalismo a vigilância constante e próxima das ações governamentais a fim de manter uma transparência plausível para controlar os desvios de conduta dos governantes.

A mídia vestida com sua armadura de defensora da democracia e do direito de expressão é magnífica; porém, despida, mostra a sua intimidade de detentora do capital. A imprensa, que aparece costumeiramente como um ente figurado, se materializa por meio de grupos econômicos, que possuem interesses próprios. Na origem, o primeiro controle da informação vem do proprietário da empresa jornalística, que acaba determinando a abordagem, intensidade e espaço concedido à notícia. É ele quem muitas vezes “cria a realidade” e determina a “opinião pública”. É impossível separar desse processo fabril da notícia, que vai da apuração até sua divulgação, o interesse ideológico do “patrão” e da prioridade tácita do lucro empresarial.

Em seu artigo ‘A fábrica de opinião pública’, o sociólogo francês Pierre Bourdieu traduz uma citação de Alexandre Mackinnon:

Quando se fala em opinião pública, há um duplo sentido entre definição legítima (a opinião de todos) e a opinião autorizada e eficiente que é obtida da opinião pública democraticamente definida: “[A opinião pública] é esse sentimento sobre qualquer tema forjado pelas pessoas mais bem informadas, mais inteligentes e mais autorizadas moralmente na comunidade. Essa opinião é gradualmente difundida e adotada por todas as pessoas de alguma educação e adequadas a um Estado civilizado”.27

Essa difusão da “opinião esclarecida” é feita através dos meios de comunicação. Os donos das mídias acabam por concentrar um “quarto poder”, que, com a formação da opinião pública, possui alta permeabilidade na sociedade e passa a ditar regras sociais. Via de regra a imprensa já atua com uma enorme margem de subjetividade para definir o que é de interesse público através da edição de uma agenda setting, o que a torna controladora dos debates públicos e das informações a serem reveladas. A complexidade desse empoderamento da mídia na democracia cria proporções ainda maiores quando a mesma mantém relações promíscuas com vazadores, essa combinação é nefária, pois amplia o poder de manipulação das vozes ocultas sobre a sociedade.

Essa situação é agravada quando os veículos de comunicação se concentram nas mãos de oligopólios, um fenômeno que parece ser de escala mundial. Segundo o escritor francês Paul Virilio, os veículos de comunicação estão se concentrando, no mundo inteiro, nas mãos de grandes grupos econômicos, que se ocultam em um cínico discurso pela liberdade de imprensa para manter a prerrogativa de editar suas próprias leis e de, concomitantemente, não se submeter a qualquer outra 28. Apesar do importante debate sobre a regulamentação e a redemocratização das mídias, no que tange à matéria do vazamento, o mais grave nessa cartelização da mídia não é necessariamente a concentração de empresas, mas o fato delas estarem ideologicamente alinhadas, de não haver discordância entre os patrões que determinam, em última instância, a linha editorial.

O fato tem essencial valor no que tange à seletividade das informações a serem vazadas e expostas ao público, pois é a mídia quem detém o arbítrio da publicação. Se os próprios vazadores realizam a seletividade das informações de acordo com seus interesses individuais, como não esperar que a imprensa o faça? E se os vazamentos são instrumentos políticos é natural que uma imprensa ideologicamente aglutinada utilize-os em prol de uma ideologia comum. O perigo é ainda maior nos casos em que os editoriais não assumem sua posição ideológica e mantém um falso ar de imparcialidade, como ocorre com a imprensa brasileira, diferente das premissas do jornalismo norte-americano.

A imprensa vende notícia, e é claro que sua intenção é fazer da comunicação um negócio lucrativo. O furo jornalístico dos vazamentos passa a ser uma atração fantástica para esse mercado. O noticiário, por vezes, acaba condicionando o leitor a demandar o vazamento, que se torna sinônimo de informação cobiçada, quentíssima, é o furo de primeira mão. Torna-se uma dependência perversa e doentia, como uma espécie de síndrome de Estocolmo, na qual a imprensa, que depende da fidelização do leitor, o vicia, para o seu prazer, com cada vez mais doses de vazamentos. A mídia pode, inclusive, ao receber vastas informações, administrá-las como conta-gotas a fim de prolongar o máximo possível a presença do vazamento em suas páginas.

O vazamento, quando assume características de campanha, condicionamento ou método viciado, acaba por perverter a mídia. Torna leniente a apuração da veracidade da notícia, na medida em que se pressupõe que a fonte do vazamento ou sua origem são confiáveis; premissa, aliás, para a divulgação honesta da informação vazada. Uma boa parte dos vazamentos já são auto-checáveis, pois surgem de documentos timbrados, datados e com textos perfeitamente conectados à realidade dos fatos. Mas há também uma quantidade expressiva de informações vazadas que não são passíveis de serem apuradas. Normalmente elas são publicadas no condicional, que é uma forma do jornal se proteger da publicação de inverdades.

Os dois tipos de vazamentos, o da informação verídica e o daquela benne trovato, inoculam o jornalista com o vírus da preguiça. É bem verdade que existem as suítes das matérias, que impulsionam o profissional à repercussão das notícias. Mas digamos que, numa perspectiva utilitarista do vazamento, o repórter ceda lugar ao editor, que faria o recorte das edições e o comentário que acompanha as “informações sem dono”. Aliás, quanto mais notícias “caírem do céu”, menos profissionais serão necessários na imprensa convencional. Na internet, o vazamento já faz parte da lógica do conteúdo da mídia eletrônica. Ele não altera o contingente de capital humano e nem desestimula a apuração, já que as redes sociais primam pela velocidade da divulgação e não pelo rigor na confirmação da veracidade. É nesse ambiente cibernético que ele realiza todo o seu potencial, mergulhando no efeito de viralização, que hoje cria uma segunda camada no conceito de realidade pura: a “realidade viral”, que é aquela que todos sabem.

Há que se exigir da mídia certa responsabilidade pelas notícias veiculadas. Primeiro uma responsabilidade referente à autenticidade das informações divulgadas, pois não é saudável à democracia que sujeitos e mesmo instituições sejam reféns de uma “imprensa marrom”. Reverter o dano de informações que são “jogadas ao vento” pela mídia é uma tarefa demasiado complicada, vez que nem todos aqueles que tiveram acesso a falsas, distorcidas e descontextualizadas informações terão acesso ou atribuirão a mesma importância às retratações da mídia, a observação ao direito de resposta e a possíveis sentenças indenizatórias condenando os veículos de comunicação por espalhar inverdades.

Há também de se tomar certo cuidado com o Dossiê, aquele que tradicionalmente surgia em um envelope pardo e que ninguém sabia de onde vinha. O risco do Dossiê está no fato de que o mesmo pode conter informações verdadeiras, porém carrega consigo o ovo da serpente, uma vez que algumas informações não podem ser apuradas e, portanto, podem ser apócrifas. Se em uma democracia a premissa é de que a imprensa deve ser livre, devemos lembrar que a ideia de liberdade enseja o zelo e o cuidado nas escolhas, e, portanto, é necessária a imputação de responsabilidade – o que esclareço, desde logo, não significa penalização – e a criação de instrumentos de controle da malversação da mídia.

A responsabilidade da mídia é uma questão central, tanto no que diz respeito com sua relação com a democracia quanto à delicada atenção que deve ser atribuída à divulgação de notícias com grande impacto junto à sociedade. É compreensível que a mídia tenha certos acordos tácitos de não publicação em relação a determinados assuntos que mobilizam sentimentos confusos e alterem o psicossocial, a exemplo de casos de suicídios em locais recorrentes (metrô, vão da ponte Rio-Niterói), de forma a não divulgar informação que estimule a atitude. Os mesmos acordos tácitos envolveriam assuntos religiosos (exorcismos) ou fenômenos inexplicáveis (objetos voadores não identificados). Você não pode dizer que eles não aconteçam. Mas você não vai vê-los publicados nos jornais. Algum cuidado, mesmo que não similar, deveria ocorrer nos casos de vazamentos, sendo igualmente importante se ater ao nível de sensibilidade da informação.


A proteção do vazador

Vazamentos podem chegar aos jornalistas através de quatro formas: (i) por uma denúncia aberta, na qual a identidade do informador é publicamente conhecida; (ii) por meio de uma divulgação não autorizada da identidade de fontes, isto é, acobertada pelo sigilo de fontes; (iii) por uso do off the record, um acordo entre cavalheiros no qual o jornalista e o informante selam um pacto de que a informação não será divulgada, servindo esta para situar o jornalista o contexto de determinados acontecimentos; (iv) por meio de, já citado, legendário dossiê ou da denúncia anônima, na qual o disseminador não sabe a origem do objeto da divulgação. Entre essas formas, o sigilo de fonte ascende ao posto principal na proteção do vazador.

O sigilo de fontes das atividades relacionadas à circulação de informações é garantido na ordem constitucional brasileira como um direito fundamental29 acompanhando grande parte das constituições europeias, como a de Portugal30, Espanha31 e Alemanha32, assim como tratados internacionais já citados aqui. As decisões recentes do Supremo Tribunal Federal endossam a tese de que nenhum jornalista poderá ser impelido a revelar suas fontes, bem como não poderá, exercendo sua prerrogativa profissional, sofrer qualquer sanção, direta ou indireta, fundamentada em seu silêncio ou por sua legítima recusa em responder às inquirições que lhe sejam eventualmente dirigidas com o objetivo de romper o sigilo da fonte. O mecanismo democrático, de importância vital ao jornalismo investigativo, é frequentemente testado nos tribunais, e o tema é usualmente abordado por artigos de juristas e de profissionais na área de comunicação, inclusive objeto de inúmeras citações históricas em defesa da liberdade de imprensa, de modo que não nos cabe discorrer sobre aquilo que já foi pensado e repensado por tantos intelectuais, portanto nos atentaremos a algumas das enfermidades mais reconhecidas da proteção a fonte.

A problemática do sigilo de fontes amplia a ausência de verificabilidade e refutabilidade das notícias veiculadas. O jornalismo norte-americano tem se preocupado com a possível perda de credibilidade dos repórteres que não conseguem dar informações concretas acerca de suas fontes, reconhecendo a importância de manter a veracidade de suas publicações e de situar o leitor das motivações da fonte, isto é, do contexto em que surgem as informações. Norman E. Isaacs, editor aposentado e presidente do National News Council até 1982, demonstrou sua preocupação com a banalização do uso do sigilo, evidenciando que repórteres chamam as pessoas e dizem logo de início que, se não quiserem ser citadas, tudo bem. William J. Small, antigo presidente da UPI e da NBC News, afirmou que recorrentemente jornalistas o telefonam com uma proposta direta de entrevista off the Record, enquanto ele só se pronuncia publicamente. Nancy Woodhull, ex-editora administrativa do Democrat and Chronicle aponta que os jornalistas presumem que as fontes não querem ser citadas. Robert W. Greene, do Newsday, chama atenção para um problema de maior gravidade: “Já vi repórteres que passam adiante suas próprias ideias dizendo que são de fontes anônimas”. Nas palavras de Donald Graham, diretor responsável do Washington Post, “os leitores devem saber tudo o que se puder dizer a eles a respeito de onde surgem as informações, para que possam entender a informação [...] Se não puder dizer ao leitor exatamente quem disse o que, o repórter deve contar o máximo a respeito da pessoa que disse, de maneira que os leitores possam entender, se possível, quais eram os motivos da fonte”.33

A questão central da forma como o vazamento é recepcionado pelo jornalista aparece quando o vazamento e o off (sigilo da fonte e off the record) tornam-se uma coisa só. A informação é entregue por um emissário ao disseminador, que sabe as razões do vazamento e as protege com o sigilo da fonte. Ao conhecer as razões inconfessáveis do vazador, o disseminador o protege com o escudo jurídico do sigilo. Portanto, mesmo quando o vazamento é criminoso do ponto de vista moral, político e até normativo, ele acaba não sendo responsabilizado, ficando protegido de represálias. É um mundo de sombras que contrasta com a exigência da transparência, conceito basilar da democracia e, paradoxalmente, fundamentação dos próprios vazamentos.

Nesse sentido, os vazamentos, quando se utilizam do direito de sigilo da fonte, se apresentam como uma prática covarde, que não suporta a luz do dia e, quando não é apócrifo, cria uma real cumplicidade entre o vazador e o receptador/disseminador das informações. É este último, que conhecendo o vazador, pode identificar suas intenções verdadeiras. O motivo do vazamento pode ser outro completamente diferente do que transparece na informação vazada. Como já explicamos no que tange à legitimidade dos vazamentos, o interesse público não se confunde com o interesse do vazador.

Se o objetivo do vazamento é trazer a verdade à tona, há uma verdade antecedente, cujas motivações podem ser torpes, protegida pelo sigilo da fonte. A premissa é que o bem público ocasionado pelo vazamento deva ter um retorno social que compense o encobrimento de interesses escusos. Nessa hora, o receptor é o grande juiz. Ele sabe, ao menos em parte, aquilo que o leitor não saberá jamais: o enredo oculto, as motivações inconfessáveis e as trocas que a publicação por si só não descortina. A gravidade do caso é aprofundada quando levamos em consideração que informações que constituem vazamentos são obtidas por meio da quebra de sigilo funcional daqueles que trabalham na própria Administração Pública ou por ações de espionagem ou de hackers que invadem sistemas de informação secretos, configurando uma conduta criminosa. É importante frisar que não estamos buscando aqui satanizar o vazamento, muito menos tomar algum partido na discussão criminalizadora dele, mas, sim, expor os conflitos e a relação dialética dos vazamentos para com a norma, a moral e a democracia. Superando o dilema moral do próprio vazador, o que já foi aventado, a questão da criminalidade gera um dilema demasiado pesado para os jornalistas acerca do sigilo da fonte: nesses casos é dever ou não manter o sigilo da fonte?

Nos Estados Unidos, o emblemático caso judicial envolvendo a jornalista Judith Miller fomentou essa discussão. Em seu julgamento, a Corte Constitucional norte-americana reconheceu que o sigilo de fontes não era matéria constitucional, e Judith foi condenada pelos tribunais comuns por negar romper o sigilo de fontes e revelar a identidade do autor de crime federal de divulgação da identidade secreta de funcionários da inteligência, de agentes e de informantes em geral, crime previsto na lei Intelligence Identities Protection Act. O caso provocou uma reação negativa por parte da imprensa em todo o mundo. No Brasil, além da manifestação dos principais veículos impressos, a condenação da jornalista recebeu duras críticas de entidades como a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI) e o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.

Há, no entanto, quem discorde do frenesi causado pela imprensa em defesa de Miller. No Brasil, o jornalista Argemiro Ferreira acompanhou a decisão da Suprema Corte norte-americana, afirmando que, diante da existência de várias categorias de fontes anônimas, aquelas constituídas por pessoas que praticam ou praticaram crimes não devem receber a proteção do princípio do sigilo da fonte, isso porque o bom jornalismo deveria repelir o privilégio do sigilo quando este é usado para servir ao Poder. Para Ferreira, revelar a verdade não deve corresponder a proteger criminosos, sob pena de engendrar uma categoria de cúmplices profissionais.34


Em exposição recente, no II Seminário de Direito Penal, Criminologia e Processo Penal em Homenagem a Winfried Hassemer, o Ministro do Supremo Tribunal de Justiça, Sebastião Alves dos Reis Júnior, comparou, com todas as vênias, ou melhor, como uma metáfora, as publicações de conteúdos protegidos pelo segredo de justiça ou outras formas de sigilo funcional ao crime de receptação qualificada, na medida em que a imprensa vende, em proveito próprio, ainda que alegue o interesse público, no exercício de sua atividade, produto que sabe ser decorrente de crime.

Entretanto os operadores do Direito, majoritariamente, endossam a tese de uma proteção quase irrestrita da liberdade de imprensa e das fontes off, em defesa da democracia, arrazoando o sigilo da fonte de informação jornalística como limite à prova no processo penal. Seguiremos essa linha, no sentido de que o sigilo de fontes é, ainda que conflituoso, um instituto de grande valor à democracia, pois é uma alternativa de denúncia que protege o vazador de eventuais punições que o coíbem de expor informações importantes à sociedade, que revelam condutas muito mais deletérias à democracia do que a quebra de um sigilo funcional. Sem a proteção do sigilo de fontes, estaríamos criando uma verdadeira barreira ao jornalismo investigativo. Dessa forma, os jornalistas não podem ser responsabilizados pela quebra do sigilo funcional e tampouco podem ser obrigados a revelar sua fonte; porém, é claro que o Ministério Público e a polícia judiciária tanto podem como têm o dever funcional de investigar os responsáveis pelos vazamentos. Não obstante, o que ocorre quando as fontes são as mesmas instituições que deveriam perseguir sua responsabilização? É de se compreender que os emissores, guardiões e responsáveis pelas informações sejam o primeiro alvo de desconfiança, vez que tais informações sigilosas tramitam sob rígidas regras de acesso e fluxo de dados, a fim de que se tornem conhecidas apenas quando declarado for seu domínio público.


Escapamentos através do ciberespaço

Em um mundo globalizado, o qual sofreu uma mudança brusca na comunicação com o advento da internet e a democratização, os vazamentos extrapolam as fronteiras nacionais. O fenômeno passa a expor as táticas ardilosas de espionagem e de guerra dos Estados, e geram embaraços diplomáticos profundos. O público deixa de ser somente aquela sociedade civil autônoma circunscrita à esfera nacional e torna-se toda a comunidade internacional. Exemplos claros são aqueles vazamentos proporcionados pela plataforma WikiLeaks, que funcionam como um portal de vazamento global alimentado por whistleblower de todo o mundo e bem relacionado com importantes mídias nos mais diversos países. Ou o caso relativamente recente do vazamento de Edward Snowden, que revelou aos jornais The Guardian e The Washington Post os detalhes da Vigilância Global de comunicações e tráfego de informações mantidas por diversos programas dos Estados Unidos.

​ 
O conteúdo dessas informações teve um enorme impacto nas relações norte-americanas com outros países e reafirmaram uma ideia negativa quanto aos EUA, na medida em que não só espionavam atividades dos países aliados, como também criaram uma fonte de acesso, por meio de bases de dados na internet, para informações privadas de qualquer civil que navega na rede sem maiores cuidados. Revelações como essas parecem não ter um intuito somente de oxigenar a democracia de uma nação, mas, sim, de criar mobilizações em escala global, seja por alguma ideologia ou por determinado interesse duvidoso.

O avanço na tecnologia ocorre de forma avassaladora: se antes as pessoas tinham acesso a computadores dentro da sua casa, hoje eles são portáteis, e parecem ser até mesmo uma extensão do corpo humano. Pesquisas apontam que em cinco anos mais de 65% da população do planeta contarão com smartphones35.  Aplicativos são criados e depositamos neles nossos dados, inclusive bancários, repassamos imagens e filmes através de redes sociais, deixamos nossas pegadas registradas em navegadores, contamos nossos interesses por meio dos sites que acessamos, somos rastreados por GPS, vinculamos nossos e-mails em softwares, guardamos nossa vida na “nuvem”. A transmissão de dados e informações acontece ininterruptamente através de uma rede que é como um “organismo sem pele”.36

Nesse contexto, é natural estarmos mais vulneráveis. Os dados de cidadãos comuns são facilmente acessados por aqueles com um bom conhecimento de informática e teoria da informação, não necessariamente agentes de inteligência ou hackers de excelência. Os governos, a fim de criar uma blindagem maior, fazem investimentos pesados na área de Segurança da Informação; no entanto, o processo é irreversível, o volume dos vazamentos é hoje exponencializado, justamente pela quantidade de informação produzida e armazenada, assim como pela facilidade de sua transmissão. E, apesar desses investimentos, ainda podemos dizer que o ser humano é o elo mais fraco e a camada de segurança mais vulnerável; portanto, é inevitável a dissidência de certos funcionários que trabalham com segredos de alta relevância. O uso das tecnologias certamente facilita que esses movimentem essas informações.

Toda essa modernização alterou algo na relação que temos com as informações e na forma de comunicarmos. O sociólogo chileno Manuel Castells tem estudado os comportamentos sociais a partir do que ele chama de “comunicação em rede”, afirmando que a mudança na forma de comunicação reformou toda a estrutura da sociedade, e que hoje vivemos em uma sociedade global em rede. Essa nova forma de compreender a trama social aponta para uma relação dual: de um lado a sociedade civil passa a se mobilizar de forma orgânica e a ampliar a circulação de ideias autorais e de informações variadas; em contrapartida, a vigilância eletrônica e o controle social mediante a tecnologia estão aumentando as capacidades do Estado de utilizar a fundo a tecnologia para contrariar as mobilizações democráticas e a demanda de transparência.

No que tange aos vazamentos, as redes sociais atuam como um catalizador e viralizam as informações disseminadas, o que pode ser extremamente perigoso, principalmente no que tange à divulgação de informações não autênticas. É difícil controlar o que se cai na rede social, compartilhamentos são feitos em progressões geométricas e atingem um público cada vez mais variado, entre diferentes círculos de indivíduos. O fenômeno já foi, inclusive, percebido pelas mídias convencionais, que possuem diferentes formas de penetração nessas redes para repassar informações. A rede social aparenta ser gerida por um domínio público e espontâneo, no entanto também é passível de manipulações.


À guisa de posfácio: o “vazalão”

A famosa, centro de todas as atenções midiáticas, Operação Lava Jato faz coçar as urticárias da maior parte dos analistas independentes que observam a política nacional. A Lava Jato é, possivelmente, o pretexto da maior mobilização de vazamentos na história do país, talvez por inaugurar o vasto uso subsequente das delações premiadas após sua regulamentação normativa. Iniciou-se a “delação das delações”. Muito há que se discutir sobre o instituto da “colaboração” premiada, porém esse não é o foco desse artigo. O interessante para as questões em pauta está nas articulações dos vazamentos por meio da relação entre o Ministério Público, as autoridades policiais e a mídia. Essas relações parecem ter evidenciado o uso recorrente de três formas do que aqui chamamos de vazamentos estratégicos, isto é, com interesses políticos bem definidos, de modo que o case brasileiro é um interessante caso de estudo para a observação dos efeitos nocivos dos vazamentos

Os vazamentos seletivos têm ganhado um lugar especial nesse contexto. Não é nenhuma novidade que a mídia tradicional brasileira é um forte oligopólio de ideologia coesa, e que, atualmente, se situa como oposição a políticas do governo petista. Nesse cenário conflituoso, em meio a uma grande crise política e econômica agravada pela investigação que envolve nomes de figuras políticas notórias e de empresas públicas e privadas, a mídia tem se aproveitado dos vazamentos para articular seus interesses políticos e desestabilizar o poder, agindo muitas vezes como um “partido da mídia”. Entre esses vazamentos existe, aparentemente, uma seleção, no sentido de que o vazador disponibiliza em maior escala delações danosas à imagem do governo e minimiza aquelas informações conectadas a nomes da oposição, um tanto mais alinhada aos seus interesses. É bem verdade, contudo, que, se a mídia pode determinar o que e em qual velocidade exercerá a publicação, ela também é refém do vazador, que determina o que e qual o ritmo do vazamento. Quem poderá afirmar qual dos dois é responsável pelo quê? É um jogo de espelhos.

Os vazamentos-chantagens também tiveram seu lugar. O Ministério Público e as autoridades policiais têm pressionado o governo a fim de garantir o atendimento de certas demandas, como foi o caso da pressão dos delegados para que a presidente Dilma Rousseff publicasse a MP 657/2014, reconhecendo a Polícia Federal como integrante da estrutura básica do Ministério da Justiça – a medida foi apelidada de “MP do Vazamento37. A terceira forma estratégica de apresentação do vazamento alastrada pela Operação Lava Jato foi a do “vazamento-apoio”. O Ministério Público passou a vazar as próprias informações a fim de ganhar respaldo na opinião popular para o prosseguimento das investigações. Somente assim um inquérito tão complexo, com tantos personagens poderosos, poderia não ter seu curso obstaculizado. É de fato louvável que a investigação esteja desafiando uma cultura em que há uma crença difundida de que a lei não se aplica aos poderosos, bem como fazendo um combate claro contra a corrupção em nosso país, mas cabe pelo menos um questionamento sobre se isso deve ser feito com a ruptura de outras leis justamente por um órgão que deveria exercer uma função neutral de controle e fiscalização.

Além de defender a delação premiada e seus vazamentos, a mídia parece ainda confirmar uma ideia de que as provas inquiridas pelas autoridades policiais são suficientes para uma condenação popular – antevendo o próprio julgamento e o devido processo legal – e, dessa forma, atua diretamente com a espetacularização dos processos criminais. O espetáculo é uma clara demonstração do populismo penal e traz consequências severas aos direitos e garantias constitucionais previstos na ordem normativa pátria. Tal espetacularização nos recorda as origens mais remotas do direito penal, no qual a pena e o rebaixamento social, associados ao desejo de vingança, eram executados em espetáculos teatrais nas praças públicas, perante aos olhos de todos. O fato é ainda mais grave quando o espetáculo é dirigido não somente à execução criminal, mas também à investigação e à ação penal, isso porque fomenta a formação de uma opinião popular, por meio de uma linguagem sensacionalista e de apelo emocional, já condenatória, que neutraliza o princípio da inocência e influencia todos os procedimentos a serem tomados e, pior, a própria sentença judicial. É a expressão factual do clássico verbete “trial by media38 ou da “sentença midiática transitada em julgado”.39

A execração midiática gera consequências consideravelmente drásticas ainda que haja uma decisão absolutória, pois tem o condão de manchar as imagens de forma permanente. Nas palavras de Aury Lopes Jr., “É muito mais fácil abrir uma ferida do que fechá-la, sem deixar marcas ou cicatrizes40. Nesse contexto, os vazamentos ganham especial destaque, pois dão ao cidadão a sensação de estar vigiando aquilo que lhe é indevidamente escondido, espelhando a frase de Armando Nogueira O jornalista é o único ser capaz de olhar com altivez por um buraco de fechadura. Quem está ali, bisbilhotando, é a sociedade inteira”.41

Porém, o espetáculo serve contra a sociedade, pois desperta seu arrobo vingativo e implode todas aquelas garantias que defendem o cidadão da “vara” do Estado. O jornalista leva o conteúdo das delações ao público, antes dos próprios advogados dos investigados terem acesso ao mesmo, inibindo qualquer estratégia de defesa a ser apresentada, transformando a exposição em um verdadeiro linchamento midiático. A prisão, término do processo penal que culmina na condenação, torna-se o início deste, com o uso abusivo da prisão preventiva. Esse é o caso, por exemplo, da prisão preventiva de Carlos Habib Chater, dono do Posto da Torre, que durou mais de 500 dias, ensejando fortes críticas a respeito da razoabilidade da medida42. As delações passam a estampar manchetes, e as chamadas dos jornais, a despeito de que o artigo 5° da Lei 12.850/2013 garante ao “colaborador” ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados, bem como faz menção expressa à proteção contra o abuso dos meios de comunicação. 43

Em um pacto velado entre os vazadores e a mídia, trocam-se os direitos e as garantias fundamentais por prestígios políticos, visibilidade institucional e pessoal, venda de notícias e poder de influência. O processo penal acaba por se confundir com política, como em regimes totalitários. É evidente que aqueles preocupados com o compromisso das garantias constitucionais no processo criminal não apoiam as condutas criminosas, muito menos desejam ocultar os casos de corrupção no país, na medida em que o desvio de dinheiro público é corrosivo para à sociedade. Porém, é necessário reprimir o crédito daquelas ações extremistas, ainda que por fins justificáveis, caso contrário os meios serão considerados honestos.

Por outro prisma, o vazamento das delações prejudica a aplicação e a validez do próprio instrumento, isso porque as delações devem trazer fatos novos à investigação, porém sob a condição da incomunicabilidade. Pensemos aqui, como forma ilustrativa, no Dilema do Prisioneiro, clássico problema da Teoria dos Jogos abordado pela ciência jurídica44 : Dois suspeitos, A e B, são detidos pela polícia. A polícia tem provas insuficientes para condená-los, mas, separando os prisioneiros, oferece a ambos o mesmo acordo: se um dos prisioneiros, confessando, testemunhar contra o outro e esse outro permanecer em silêncio, o que confessou sai livre enquanto o cúmplice silencioso cumpre 10 anos de sentença. Se ambos ficarem em silêncio, a polícia só pode condená-los a seis meses de cadeia cada um. Se ambos traírem o comparsa, cada um leva cinco anos de cadeia. Cada prisioneiro faz a sua decisão sem saber que decisão o outro vai tomar, e nenhum tem certeza da decisão do outro. O silêncio só será a melhor solução para aqueles que possuem algum certo nível de confiança e cooperação com o parceiro, porém é a traição a solução dominante para reduzir os danos sem depender da escolha do outro.

É claro que a busca de equilíbrio do jogo só pode ocorrer se os suspeitos estiverem separados e não possuírem qualquer comunicação; uma vez fragilizada essa premissa, o jogo desmorona. O mesmo ocorre na delação. Delatar é sempre a escolha menos arriscada para aqueles que desconfiam de sua condenação, no entanto as informações reveladas passam a ser pautadas por aquilo que já se tomou ciência, dessa forma o instituto está viciado. Os vazamentos não facilitam em nada a busca pela reconstrução da verdade no processo penal.

Restam as perguntas: tantos vazamentos auxiliam na sedimentação de uma democracia? Uma democracia que vive em situação torrente de vazamentos não deveria pensar em reformar suas estruturas? Numa visão positiva registra-se a crença de que poderemos drenar a inundação causada por um alto nível de intensidade dos nossos desarranjos hidráulicos e, de certa forma, aproveitar essa limpeza; afinal, nossa democracia é jovem e tem forças para se reinventar.

.........

*A autora é Mestranda em Direito Constitucional na Universidade Federal Fluminense, integrante do Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Direito Constitucional Latino-Americano e avaliadora da Revista de Direito dos Monitores da Universidade Federal Fluminense – e-mail: acbonan@gmail.com

Notas de rodapé

1. Utilizaremos o delineamento de Noberto Bobbio para compreender tal conceito: “Acredita-se que o conceito de democracia seja um conceito elástico, que se pode puxar de um lado e do outro à vontade. Desde que mundo é mundo, democracia significa governo de todos ou de muitos ou da maioria, contra o governo de um só ou de poucos ou de uma minoria. [...] Não, o conceito de democracia não é um conceito elástico. Na sua contraposição à autocracia é um conceito de contornos precisos. E eu o defino da seguinte forma: “democrático” é um sistema de poder no qual as decisões coletivas, isto é, as decisões que interessam toda coletividade (grande ou pequena que seja) são tomadas por todos os membros que a compõem” In BOBBIO, Norberto. Qual socialismo?: Debate sobre uma alternativa. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1983. pp. 79-80.
2. SIMMEL, G. The Sociology of Secret and of Secret Societies. The American Journal of Sociology, v. 9, n. 4, pp. 441-498, 1906.
3. Idem.
4. PINHEIRO, Ruan Sales de Paula. SEGREDO, TRANSPARÊNCIA E AS PERSPECTIVAS PARA A POLÍTICA EXTERNA DEMOCRÁTICA NO BRASIL. Dissertação de mestrado apresentada ao Conselho do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista – UNESP. Disponível em http://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/123178/000822224.pdf?sequence=1
5. CANETTI, Elias. Massa e Poder. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 290-296.
6. Nesse período vigorava os arcana imperii, os quais poderiam ser justificado pelo entendimento que “o poder do príncipe é tão mais eficaz, e, portanto mais condizente com seu objetivo, quanto mais oculto está dos olhares indiscretos do vulgo, quanto mais é, à semelhança do de Deus, invisível” In BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: para uma Teoria Geral da Política. 14. ed. São
Paulo: Paz e Terra S/A, 2007.
7. O segredo atua como “paradoxo fundamental da política democrática” impossível de ser dissolvido. In FRIEDRICH, Carl J. The Pathology of Politics: Violence, Betrayal, Corruption, Secrecy and Propaganda. New York: Harper & Row, 1972. pp. 175-233.
8. Dados disponibilizados pela Reportagem Watergate– a queda do estadista, por Raphaella de Campos Mello. URL: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/watergate-queda_do_estadista.html
9. Os fatos aqui narrados são minuciosamente tratados no livro: WOODWARD, Bob, e BERNSTEIN, Carl. Todos os homens do presidente. Tradução de Denise Bottmann. Ed. Três Estrelas, 2014.
11. Disponível em: http://www.9-11commission.gov/report/911Report.pdf12. Em 25 de julho de 2010, a plataforma Wikileaks expôs os chamados “war logs” da guerra do Afeganistão, um conjunto de milhares de documentos secretos relatando o dia a dia dos soldados norte-americanos e detalhes sórdidos da guerra, vazados pelo ex-analista de inteligência do Exército dos Estados Unidos, Chelsea Elizabeth Manning, condenado a uma longa pena pelo tribunal militar norte-americano. O vazamento contou com o apoio de 3 poderosas mídias: The New York Times, The Guardian e Der Spiegel. O acesso aos documentos e outras informações sobre o tema podem ser feitos pelo URL https://wikileaks.org/afg/
13. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1968
14. Assim são designadas leis que protegem as informações confidenciais no Reino Unido, em Hong Kong, na Índia, na Irlanda, na Malásia e, antigamente, no Canadá e na Nova Zelândia.
15. Um exemplo dessas práticas foi denunciada por Edward Snowden, que afirmou que o governo britânico estaria vazando informações danosas contra si mesmo a fim de criar uma imagem negativa contra os “leakers”, acusados de terrorismo. A matéria foi publicada no The Guardian, em agosto de 2013. Disponível em: http://www.theguardian.com/commentisfree/2013/aug/23/uk-government-independent-military-base
16. CEPIK, Marco. Espionagem e Democracia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
17. PAIT, Heloísa; PINHEIRO, Ruan Sales de Paiva. Vazamento de informações: um ritual democrático na era da comunicação em rede. Disponível em http://www.kas.de/wf/doc/16470-1442-5-30.pdf
18. CEPPOS, Jerry, e HANSON, Kirk. The Ethics of Leaks. Disponível em http://www.scu.edu/ethics/publications/ethicalperspectives/leaks.html
19. Flynn, K. 2011. The practice and politics of leaking. In Social Alternatives, Volume 30, Number 1, 2011, pp. 24-28. Disponível em http://www.bmartin.cc/pubs/11sa/Flynn.html
20. Flynn, K. 2006. ‘Covert Disclosures: Unauthorized Leaking, Public Officials and the Public Sphere.’ Journalism Studies 7:256-273.
21. ASSANGE, Julian; APPELBAUM, Jacob; MÜLLER-MAGUHN, Andy, ZIMMERMANN, Jérémie. Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet. Trad. YAMAGAMI, Cristina. São Paulo: Boitempo, 2013.
23. HINCHMAN, Lew, MEYER, Thomas. Democracia Midiática – Como a mídia coloniza a política. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 2008.
24. MACHIAVELLI, Niccolò. O Príncipe. Edição eletrônica: Ed. Ridendo Castigat Mores. Disponível em http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/principe.pdf
25. MARTIN, B. 2009. ‘Corruption, Outrage and Whistleblowing.’ In Research Companion to Corruption in Organizations, eds. R. J. Burke and C. L. Cooper. Cheltenham, UK: Edward Elgar, 206-216.
26. Essa última fora redigida por 100 especialistas a pedido da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), versando exclusivamente sobre a liberdade de expressão e de imprensa e atacando a censura prévia e a violência contra jornalistas.
27. John David Yeadon Peel; Herbert Spencer, The evolution of a sociologist [A evolução de um sociologista], Londres, Heinemann, 1971. William Alexander Mackinnon (1789-1870) teve uma longa carreira como membro do Parlamento Britânico. In BOURDIEU, Pierre. A fábrica de opinião pública. Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1074
28. In Weissheimer, Marco Aurélio. Estamos construindo um admirável mundo novo? Anais do 3º Seminário de Estudos em Análise do Discurso.
29. BRASÍLIA, Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5º, XIV, CRFB/88.
30. Constituição da República Portuguesa, arts. 37.1 e 38.2 b.
31. Constituição Espanhola, art. 20, 1, d.
32. Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, art. 5, 1, 1ª fase, 2ª parte.
33. GOODWIN, H. Eugene. Procura-se: ética no jornalismo. Rio de Janeiro, Nórdica, 1993.
34. FERREIRA, Argemiro. “Porque dona Judith Miller não é vítima nem heroína”. Disponível em: www.tribuna.inf.br/anteriores/2005/junho/29/coluna.asp?coluna=argemiro
36. ASSANGE, Julian; APPELBAUM, Jacob; MÜLLER-MAGUHN, Andy; ZIMMERMANN, Jérémie. Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet. Trad. YAMAGAMI, Cristina. São Paulo. Boitempo, 2013.
37. MELLO, Carlos Alberto de. O Vazamento Chantagem. Observatório da Imprensa, Jornal debates > Eleições 2014, ed. nº 867. Disponível em http://observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-debates/o_vazamento_chantagem/
38. Conforme definição do Black’s Law Dictionary: “É o processo pelo qual o noticiário da imprensa sobre as investigações em torno de uma pessoa que vai ser submetida a julgamento acaba determinando a culpabilidade ou a inocência da pessoa antes de ela ser julgada formalmente”. Disponível em http://thelawdictionary.org/
39. VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo Penal e Mídia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 168
40. LOPES JUNIOR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal: Fundamentos da Instrumentalidade Constitucional. 4ª ed. rev, atual. e amp. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 7.
41. “Playboy entrevista Armando Nogueira” In: Playboy, fevereiro, 1988.
42. A exemplo das críticas tecidas pelo Jurista Lênio Streck ao juiz Sérgio Moro em debate no 21º Seminário Internacional do IBCCRIM.
43. Art. 5º, Lei 12.850/2013: São direitos do colaborador: II - ter nome, qualificação, imagem e demais informações pessoais preservados; V - não ter sua identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado, sem sua prévia autorização por escrito.
44. CARVALHO, José Augusto Moreira de. Introdução à teoria dos jogos no Direito. In: Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, v. 15, n. 132, pp. 213-234, abril/junho, 2007.

Nenhum comentário:

Postar um comentário