Folha.com, 10/10/2015
Enigma envolve chacinas
N. R. KLEINFIELD RUSS BUETTNER DAVID W. CHEN NIKITA STEWART
Eles viraram uma das faces mais notórias e preocupantes do mal. Homens que, olhando em retrospectiva, pareciam não se encaixar. Que não se vestiam normalmente. Não conversavam com os outros. Que alimentavam uma amargura que os corroía por dentro.
Então eles pegaram em armas e mataram o máximo possível de pessoas.
As mesmas perguntas se repetem após cada massacre: como não previmos isso antes? Por que os atiradores não foram impedidos?
Christopher
Harper-Mercer
Porém, também foram feitas em relação ao homem que matou nove pessoas numa igreja em Charleston, Carolina do Sul, em junho. Ao homem que dizimou seis pessoas em Isla Vista, Califórnia, no ano passado. Ao homem que deixou 12 mortos numa instalação da Marinha em Washington em 2013.
Quando se traça o perfil de autores de chacinas, vêm à tona características comuns. Porém, essas características também se aplicam a inúmeros outros indivíduos que jamais pegarão em armas ou cometerão crimes.
"O grande problema é que o tipo de padrão que os descreve também descreve dezenas de milhares de americanos", disse o criminologista James Alan Fox, da Northeastern University, em Boston."Não podemos prender todas as pessoas que nos metem medo."
Esses massacres são um fenômeno que praticamente não existia nos EUA até duas gerações atrás.
O criminologista Grant Duwe, do Departamento Correcional do Minnesota, estudou mais de 1.300 chacinas ocorridas entre 1900 e 2013. Entre esses incidentes, ele classifica 160 como assassinatos públicos, em que pelo menos quatro pessoas foram mortas a tiros em um curto período de tempo.
Houve poucos incidentes desse tipo antes dos anos 1960. Segundo Duwe, o episódio que alguns acadêmicos consideram que "apresentou ao país à ideia da chacina em espaço público" ocorreu em 1966, quando Charles Witman subiu em uma torre na Universidade do Texas em Austin e matou 16 pessoas.
Usando dados compilados por Duwe, o Serviço de Pesquisas do Congresso dos EUA divulgou um estudo que mapeou o aumento desses massacres desde então, de uma média de um por ano na década de 1970 para quatro na década de 2000, com um ligeiro aumento nos últimos anos.
As pessoas que estudam esses crimes constatam que quase todos os autores são homens, em sua maioria solteiros, separados ou divorciados. Os atiradores são em sua maioria brancos. Com a exceção de jovens que atacaram escolas, eles geralmente são mais velhos que o assassino médio - estão na casa dos 30 ou 40 anos.
Sua ideologia varia. Geralmente adquirem suas armas legalmente. Muitos revelavam sinais de doença mental, especialmente aqueles que cometeram matanças indiscriminadas. No entanto, outros não demonstravam nenhum sinal, e a maioria das pessoas com doenças mentais não é violenta.
"Eles têm depressão", disse Fox. "Não estão fora de contato com a realidade. Não ouvem vozes. Não pensam que as pessoas em quem atiram sejam ratos."
"Histórico de frustração"
Os autores de chacinas se sentem mais à vontade em sua própria companhia. Segundo Fox, eles tendem a ser pessoas que vivem "em situação de isolamento social, sem apoio para superar momentos difíceis e para que voltem a ter contato com a realidade."
"Eles têm um histórico de frustração. Tendem a culpar fatores externos. Nada é culpa deles, nunca. Eles culpam outras pessoas mesmo que as outras pessoas não sejam culpadas. Enxergam-se como pessoas boas."
Jeffrey Swanson é professor de psiquiatria e ciências comportamentais na Universidade Duke, em Durham, Carolina do Norte. Ele explicou que esses indivíduos com frequência se sentem deslocados, mas muitas vezes vivem "em cidades pequenas, onde se encaixar no grupo é muito importante".
Christopher Harper-Mercer deixava transparecer esse isolamento. Como outros, era fascinado por autores de massacres passados. "Eles os veem como heróis", comentou Fox. "Como alguém em favor dos oprimidos."
Elliot O. Rodger, 22, era estudante universitário na Califórnia e não tinha amigos desde a escola primária. As poucas interações que tinha pareciam acontecer on-line, jogando World of Warcraft. Muitos autores de chacinas se rendem à atração de games violentos, como muitos jovens de modo geral. Porém, isso pode ser mais um sintoma de seu isolamento.
Adolescente, Rodger foi diagnosticado como portador de um transtorno de desenvolvimento. Na Santa Barbara City College, ele se desentendia com seus colegas de quarto e vivia uma vida on-line. Parou de assistir às aulas e postou vídeos em que falava de ser rejeitado por mulheres.
Pouco antes de atacar, ele postou um vídeo no YouTube. O vídeo o mostra sentado na direção de sua BMW, falando com raiva sobre seu isolamento, as mulheres que não tinham mostrado nenhum interesse nele e sua decepção por ser virgem. E reclamou de todos os homens sexualmente ativos que estavam curtindo a vida. "Amanhã será o dia da desforra. O dia em que vou me vingar da humanidade. De todos vocês", disse.
No dia 23 de maio de 2014, Rodger matou três homens a facadas em seu apartamento. Em seguida, saiu de carro e atirou em três pessoas. Depois de trocar tiros com a polícia, se matou.
Pedro Alberto Vargas era outro solitário. Ele vivia com sua mãe idosa num prédio em Hialeah, Flórida, e raramente falava com qualquer pessoa. Uma das poucas com as quais falava - um conhecido da academia - disse que Vargas malhava para pôr a raiva para fora e tinha tido experiências negativas com mulheres.
Em 26 de julho de 2013, Vargas, 42, derramou gasolina sobre uma pilha de dinheiro no chão de seu apartamento e acendeu um fósforo. Os zeladores do prédio, um casal, correram para lá, e Vargas os matou a tiros. Depois, saiu do apartamento e continuou a disparar, matando quatro outras pessoas até ser abatido pela polícia.
Alvos desconhecidos e específicos
Especialistas acreditam que autores de chacinas costumam visar pessoas específicas. Escritos explícitos ou postagens nas redes sociais às vezes revelam o que os motiva. Pode ser um ressentimento contra o chefe ou colegas de trabalho. Ou contra qualquer pessoa que por acaso se encontre em seu local de trabalho, como foi o caso com a onda de assassinatos em agências dos correios. Ou das mulheres e dos filhos de colegas.
Às vezes, porém, as razões só ficam claras para os próprios assassinos. Quase um ano atrás, Jaylen Ray Fryberg, garoto popular de 14 anos que jogava futebol americano e vivia perto de Seattle, chamou dois primos e três amigos por SMS para se encontrarem com ele na cafeteria. Ele abriu fogo contra os amigos e depois de matou. Quatro morreram. Ele tinha postado mensagens enigmáticas nas redes sociais: "Isso acaba comigo... acaba mesmo. Sei que parece que estou pondo para fora com a transpiração... mas não estou... e nunca vou conseguir."
Outros atacam categorias amplas, como membros de uma igreja, imigrantes ou mulheres. Em julho, Mohammod Youssuf Abdulazeez, 24, matou cinco militares a tiros em Chattanooga, Tennessee, até ser morto a tiros, ele próprio, por um policial.
Dylann Roof, 21, tinha abandonado a escola e em junho deste ano foi acusado pelo massacre de nove pessoas na igreja Emanuel, da Igreja Episcopal Metodista Africana, em Charleston. Ele tinha criado um site no qual postou uma diatribe sobre sua luta pela supremacia branca.
A variante menos comum dessas chacinas envolve pessoas que morrem por se encontrarem, por mero acaso, no local onde o assassino está.
Kurt Myers, 64, sobrevivia com dificuldade no povoado de Mohawk, no interior do Estado de Nova York. Estava desempregado desde 2006 e devia mais de US$ 21 mil. Ele não tinha histórico conhecido de doenças mentais ou envolvimento com a polícia, exceto por uma prisão em 1973 por dirigir sob a influência de álcool.
Em 13 de março de 2013, Myers teria ateado fogo em seu apartamento. Ele pegou uma espingarda. Foi de carro até uma barbearia próxima, onde disparou contra quatro pessoas, matando duas. Em seguida, foi a um lava-jato e matou mais duas. Ele se escondeu em um bar abandonado, onde foi morto pela polícia no dia seguinte.
Myers quase não tinha tido contato anterior com as pessoas que matou ou os lugares onde as matou.
Transtornos mentais
James Fox pensa que, no caso de massacres de famílias, os responsáveis normalmente "não têm doenças mentais sérias, mas são vingativos". Já no caso de "agressões aleatórias, é comum encontrar pensamento psicótico. Quanto mais indiscriminada a matança, maior é a probabilidade de haver doença mental grave."
Entre os 160 casos que compilou de chacinas realizadas em público, Duwe concluiu que 61% dos autores apresentavam transtorno mental grave. O problema mais comum era esquizofrenia paranoica, seguida por depressão.
Em setembro de 2012, Aaron Alexis, 34, ex-reservista da Marinha, posicionou-se sobre um átrio numa instalação da Marinha em Washington e atirou contra todos que viu, matando 12 pessoas. Ele foi morto pela polícia.
Um mês antes do ataque, Alexis estava viajando quando se envolveu em uma discussão com uma família em um aeroporto na Virgínia. Glynda Boyd se recorda que Alexis lhe perguntou "por que ela está rindo de mim?". A pergunta dizia respeito à tia de Boyd, que tem 78 anos e é cadeirante.
Depois de chegar em um hotel de Middletown, em Rhode Island, ele se queixou de estar ouvindo vozes de uma cozinha que não ficava perto de seu quarto. Outro hóspede do hotel pediu para mudar de quarto depois de Alexis ter começado a bater nas portas, à procura das vozes.
Pesquisas revelam que pessoas com esquizofrenia, depressão grave ou transtorno bipolar apresentam grau um pouco mais alto de risco de violência. Porém, segundo Swanson, apenas 7% das pessoas com doenças mentais cometem algum ato violento em um ano, "e estamos falando de algo tão leve quanto dar um empurrão em alguém".
"Não é possível prender todos os rapazes revoltados e que se sentem desajustados", disse.
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