Folha.com, 31/10/2015
Os verdadeiros terroristas
Por Maria Rita Kehl
O que justifica o projeto de lei antiterror enviado ao Congresso Nacional? Fora as denominadas pautas-bomba lançadas pelo presidente da Câmara em causa própria e/ou contra a legitimidade democrática, onde mais encontramos ações que lembrem crimes de terrorismo na sociedade brasileira?
Não, não me esqueci dos manifestantes presos em 2013 porque lançaram o rojão que matou um repórter da TV Bandeirantes. Mas eles foram julgados de acordo com a Constituição, sem necessidade de uma lei excepcional para tipificar o crime. Por outro lado, nada aconteceu aos sinistros black blocs que, de cabeça coberta, depredaram patrimônio público e privado e desmoralizaram o movimento popular.
No passado, mesmo entre os grupos que pegaram em armas para lutar contra o terrorismo de Estado implantado pelos governos militares no período 1964-1985, poucas ações poderiam ser qualificadas como atos terroristas, isto é: aqueles praticados não em enfrentamentos entre grupos armados, e sim contra a população indefesa.
Uma bomba acionada no aeroporto de Guararapes, em Recife, matou duas pessoas. O atentado não foi reivindicado por nenhuma organização armada. Outra bomba, contra o consulado americano em São Paulo, feriu três. Houve também os sequestros dos embaixadores dos Estados Unidos, Suíça e Alemanha – tratados com respeito pelos sequestradores, até serem trocados pela libertação de presos políticos.
Terrorismo de Estado houve, sim. Prisões ilegais, torturas, assassinatos de prisioneiros e de pessoas já rendidas. Muitos desses crimes foram camuflados com falsos laudos de suicídio ou de "resistência seguida de morte", artifício conservado em plena democracia pelos comandantes das Polícias Militares para justificar execuções de prisioneiros rendidos, ou mortos por torturas em dependências do Estado.
Os camponeses do Araguaia, presos ilegalmente e torturados de todas as formas, criaram uma resposta corajosa para responder à pergunta dos militares:"onde estão os terroristas?". "Não conheço nenhum terrorista", diziam. "Quem pratica o terror aqui são vocês."
A ousadia fazia recrudescer a violência dos agentes da repressão: afogamentos, choques elétricos, espancamentos, confinamento de um grande número de pessoas em um buraco exposto ao sol e à chuva, passando fome e sede, práticas consideradas como crimes hediondos pela Constituição de 1988.
Mas os crimes de Estado ficaram impunes, pois a Lei da Anistia, negociada com urgência entre governo e familiares de prisioneiros fragilizados, determinou igual perdão para os "dois lados". Ainda sofremos as consequências da equivalência jurídica entre crimes praticados por agentes do Estado e os cometidos por civis em luta contra aquele mesmo Estado fora da lei – como se fossem da mesma natureza.
Até hoje mais pessoas são mortas pelas PMs do que durante os 21 anos de ditadura. Aliás: nossas polícias continuam militares. Por que submeter a treinamento de guerra os futuros agentes de segurança encarregados de enfrentar compatriotas civis, ainda que fora da lei?
Se vivemos ainda algum resquício de terror no Brasil, isto se deve mais à ação de agentes do Estado que violam os direitos elementares do cidadão do que a abusos cometidos pela população ou por criminosos comuns – cujas punições estão previstas na Constituição.
Não me parece que o projeto de lei contra o terrorismo atenda a uma necessidade da sociedade brasileira. Vale lembrar que movimentos sociais – ocupações do MST ou de luta por moradia – são parte da dinâmica democrática. É preocupante que possam ser criminalizados, se predominar a pauta conservadora orquestrada pelo presidente da Câmara dos Deputados.
Tal projeto deveria nos aterrorizar, enquanto é tempo.
MARIA RITA KEHL, 63, psicanalista, foi integrante da Comissão Nacional da Verdade. É autora "Processos Primários" (Estação Liberdade)
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