domingo, 8 de fevereiro de 2015

Uma tempestade perfeita

 
 
 




Carta Maior, 08/02/2015 



Urgente, falta uma ponte entre o apelo e a rua



Por Saul Leblon




Soa angustiante a dissociação entre o gesto  e o seu efeito.

Entre o apelo e o desdobramento.

Entre o alerta  do abismo e a impotência para deter o comboio.

De novo, no evento dos 35 anos do PT, lideranças do partido, entre elas a do ex-presidente Lula, expuseram  diagnósticos corretos sobre a ofensiva conservadora no país, denunciaram o golpe dissimulado, como de hábito, faxina moralizante; conclamaram o partido a sacudir a letargia, ir às ruas,  lutar, resistir.

Porém... nada se move.

De novo Lula, Rui Falcão, Tarso Genro e outros falarão em novas oportunidades; com já fizeram em ocasiões anteriores repetirão os mesmos diagnósticos corretos de um golpe dissimulado em marcha, evocarão as ruas..

Porém... nada se move.

Assim sucessivamente.

O anticlímax, para estreitar bastante a abrangência do retrospecto, teve um ponto de coagulação explícito na campanha de 2014.

Em diferentes momentos, então, mas sobretudo após a morte traumática do candidato do PSB,  Eduardo Campos, em 13 de agosto, a candidatura progressista  esteve  emparedada pela bateria conservadora, a ponto de muitos darem o jogo como perdido.

No final de agosto esse conjunto formava um aluvião anti-Dilma.

Porém, nada se movia.

Nenhuma reação.

Era tão denso o horizonte da derrota que expoentes do colunismo conservador ejaculavam precocemente divagações acerca do ‘pós-lulopetismo’.

A candidata Marina Silva chegou a abrir 10 pontos de vantagem nas enquetes  sobre um hipotético 2º turno, no qual o Datafolha dava como certa a sua presença.

Era uma dessas ladeiras de um sonho turbulento em que nada parece deter a aceleração em plano inclinado rumo ao muro de pedra.

Em cinco de setembro, em meio ao clima de colisão com o fim, uma reunião de avaliação da campanha assistiu à intervenção de um Lula endiabrado.

As reservas instintivas do retirante nordestino que saiu da seca para ocupar a presidência do país por duas vezes mobilizaram-se em seu organismo, à falta de outras formas de mobilização.

Desse arcabouço histórico/metabólico brotou um diagnóstico que sacudiu os brios de um comitê de campanha do PT e da militância até então  atônitos com a aproximação veloz  do desastre.

Em duas frases, Lula esquadrejou a areia movediça ao redor e identificou um pedaço de chão firme e instalou uma alavanca para a reação bem sucedida: ‘Nós ficamos economicistas; não nos faltam obras, mas política’, disparou para prescrever o antídoto: ‘Temos que demarcar o campo de classe dessa disputa: é preciso levar a política à propaganda’.

A partir de então a essência radicalmente neoliberal embutida nas candidaturas de Marina Silva e Aécio passou a ser floculada do espumoso caudal dissimulado em ‘renovação’, ‘ética’ e ‘mudança’ .

O extrato obtido foi exposto à luz do sol. A sonolenta  publicidade de sabonete do horário eleitoral ganhou uma narrativa pedagógica, determinada a tipificar um a um os riscos e alvos da agenda conservadora.

Na mesma chave narrativa, a Presidenta Dilma passou a dar nomes aos bois em debates, no rádio e na presença  diária na TV.

Ponto número 1: Dilma falava diariamente com o país.

Ponto número 2: confrontava  projetos.

Ponto número 3: discutia flancos ainda por enfrentar.

Ponto número 4: zelava pelo passado sem abstrair as lacunas enormes do muito que o Brasil ainda deve ao povo brasileiro.

Ponto número 5: não o fez, mas se tivesse incorporado à discussão os  ajustes necessários à reordenação de um novo ciclo baseado no investimento e no controle da inflação, o eleitor provavelmente entenderia –desde que ...

Ponto número 6: desde que  isso se fizesse acompanhar de salvaguardas, prazos e contrapartidas, ademais da determinação de dar à sociedade meios e estruturas para vigiar e assegurar a travessia segura rumo a um novo estirão de crescimento com justiça social.

O fato é que no breve interregno entre cinco de setembro quando Lula explodiu sua indignação e a vitória final em 26 de outubro, o PT e o governo fizeram o que nunca haviam feito e, incompreensivelmente, não voltaram a fazer ainda.

O quê?

Estabeleceram um canal de conversa indispensável  com a população sobre um tema de interesse geral: o Brasil,  a vida de sua gente, seus trunfos e desafios – hoje, ontem e amanhã.

Fez-se ali um ensaio de repactuação da confiança mútua, sintonizada no compartilhamento de rumos e de desafios, que Lula agora sugere  que o PT faça (leia o seu  discurso no evento dos 35 anos do partido; nesta pág.) , na forma de um Manifesto-compromisso e de uma repactuação política do partido com a nação.

Carta Maior viu no jorro de  desassombro daquela inflexão na campanha de 2014 um ponto de ruptura com o abismo há muito aguardado.

‘A ficha caiu’, saudou-se.

No final de setembro, seria a vez da própria candidata Dilma reforçar essa impressão.

Em entrevista  a um grupo de blogueiros, ‘sujos, ideológicos, governistas’, como a eles se refere o colunismo isento, a candidata explicitou o divisor que marcaria o seu segundo mandato.

A vitória então já não era mais um sonho de vento a escapar pelos dedos.

‘Terei um embate (político) mais sistemático; não serei mais tão bem comportada; me levaram para um outro caminho, que não era o que eu queria’.

Menos de cinco meses depois, onde foi que tudo se perdeu?

Perdeu-se  a ponto de retroagir à pasmaceira anterior a cinco de setembro de Lula, com o radical agravante de que Dilma agora ocupa a presidência da nação, de onde o conservadorismo fala abertamente em retirá-la.

E toma providências explícitas para isso.

Uma parte da recaída se deve à inércia traiçoeira  de uma fórmula de governo que se esgotou.

Em três mandatos presidenciais sucessivos predominou a determinação petista de restringir o confronto direto com os interesses conservadores na faixa de segurança permitida por uma correlação de forças adversa.

Mas a margem de manobra se esgotou proporcionalmente à contração do PIB e à pressão da crise mundial, agora definitivamente algemada ao Brasil.

O que antes parecia uma contingência administrável, ainda que a um custo político cada vez mais desgastante, acentua os contornos de um esgotamento de ciclo.

O conjunto aguça o desgaste intrínseco à tarefa de administrar o capitalismo ainda sem poder transformá-lo efetivamente.

O conjunto não pode ser descarregado apenas no colo de uma Dilma muda e jejuna em política. No mínimo, a sonambulismo presidencial funde as duas coisas: um pedaço da crise e o reflexo da sua imensa dureza.

Não fosse isso, por que então nada se move depois que Lula, Falcão, Tarso e outros se desdobram em evocações pela resistência?

Pela gravidade e abrangência do que precisa mudar para desviar o país do buraco negro conservador que diuturnamente vai sugando tudo ao redor, mas principalmente os corações e mentes da sociedade.

O Datafolha é o monitor de controle do mutirão sombrio. O relatório deste domingo avisa ao comando central: ‘estamos indo bem’.

À implosão do espaço acomodatício desfrutado em 12 anos de governo de composição emerge agora a clareza vertiginosa do despreparo organizativo, ideológico e programático para ir além da atual e angustiante  desconexão entre o apelo e a resposta.

Entre o gesto e o efeito.

Pior que tudo.

A desconexão imobilizante revelou um punhal de aço cravado contra as próprias costas do corpo progressista: não há canais de comunicação para uma urgente repactuação do futuro com a sociedade.

Nada se faz sem a mediação tóxica da emissão conservadora.

Cujas prioridades editoriais estão mobilizadas para acelerar a velocidade disso que o Datafolha colhe em intercurso orgânico.

Quando Lula diz ‘temos que voltar às bases, o PT se tornou um partido de gabinetes’, o que se veicula é a derrisão, não a gravidade da autocrítica abraçada pelo maior líder progressista do país.

Como é possível que um partido formado por franjas de toda a esquerda, quadros de alta qualidade e distintas filiações, tenha cogitado construir um Estado de Bem-estar social tardio, na oitava maior economia do mundo – na era da livre mobilidade dos capitais chantageadores -  sem dispor de canais pluralistas de comunicação?

Sem espaço ideológico para exercer o repto à hegemonia expressa pela dama de ferro do neoliberalismo, Margareth Tatcher: ‘Não há alternativa’.

Não apenas não há, como o que virá ‘será doloroso’, sapateava o Financial Times, antes das eleições, em editorial onde apregoava a inevitabilidade de  um conjunto de medidas cujo efeito ‘será doloroso’. ‘Ganhe quem ganhar a eleição’.

Os dias que correm parecem confirmar o vaticínio do porta-voz dos mercados financeiros globais.

Sem repactuação política desassombrada, sobra a receita seca do ajuste ortodoxo que, de tão postiço em relação ao que a transição de ciclo requer, teve que ser terceirizado a um centurião de confiança do mercado.

O ‘estelionato eleitoral’  denunciado pelo coalizão conservadora abstrai o fato de que ao esgotamento do espaço acomodatício pela crise, juntou-se um cerco policial em torno da Petrobras, o derradeiro braço do Estado para induzir o capitalismo no país.

À mutilação desse órgão vital (que carrega 13% do PIB), associou-se a queda de 50% nas cotações do barril e a maior seca já vivida no país em 80 anos.

Uma tempestade perfeita estacionou nos céus de Brasília.

Por onde começar?

‘Temos a oportunidade histórica de elaborar um novo Manifesto do PT. Isso exige humildade e coragem’, disse-o bem  Lula na última sexta-feira.

Falta agora o principal: correr riscos.

Adicionar ao enunciado a agenda capaz de erguer a ponte entre o apelo e a resposta.

Definir aquilo que, efetivamente, ofereça uma razão suficientemente forte, crível, palpável para a letargia deixar o sofá do descrédito e ir às as ruas, voltar às bases, cobrar, debater e pactuar  o passo seguinte do desenvolvimento brasileiro.

Se o PT, a esquerda em geral, os movimentos sociais e o campo progressista não se entenderem a tempo de definir uma agenda comum – e não há tanto tempo assim, avisa o Datafolha -  o juiz Moro o fará por eles.

Dando uma razão conservadora suficientemente apelativa para aglutinar o passo final da marcha regressiva em curso no Brasil.

As graves denúncias de Paulo Henrique Amorim sobre as condições em que estão sendo extraídas as ‘delações premiadas’ da Lava Jato, bem como  o parecer ’Gandra/FHC’, indicam uma determinação muito clara: ir além do estado de direito.

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