Carta Capital, 02/02/2015
Editorial
E do que se riem?
Por Mino Carta
E no outro dia, janto em um restaurante e na mesa ao lado senta-se um tucano emérito, cercado, creio eu, por familiares. Conheço-o faz quase quatro décadas, mas ele não me cumprimenta. Chamo o garçom e peço tucano ao forno em tom audível da rua. “Não sei se tem, vou verificar”, diz o garçom, e parte para a cozinha. Chega o maître minutos após: “O que o senhor pediu?” Tucano ao forno, repito no tom precedente. O maître ri com gosto.
O vizinho da mesa, quando o conheci, tempos de ditadura, declarava-se de esquerda, até com alguma veemência. Era um jovem e promissor quadro e, de fato, fez carreira como parlamentar e na administração pública. Emedebista, peemedebista, enfim tucano desde os primórdios. Perfeitamente à vontade dentro de um partido que se tornou o melhor representante da casa-grande. Já o PMDB é a agremiação que interpreta admiravelmente, e sem a mais pálida intenção de disfarce, o oportunismo, o arrivismo, a falta de escrúpulos e compromissos ideológicos. O poder pelo poder.
E o PT? No governo não difere dos demais. Sua frequentação da hipocrisia está no fato de que ainda proclama ser dos trabalhadores. A esta altura, não engana mesmo os mais ingênuos, a começar por aqueles que afirma representar. Se o governo já praticou políticas de inclusão social, e com êxito não somente para os diretos beneficiados, hoje em dia tal orientação está em xeque, por obra de um ajuste fiscal a prometer desemprego e recessão.
Ajuste necessário, em princípio, mas desde logo vincado pela inspiração neoliberal. Avisa-se do alto, com pretensa generosidade, que de ajuste “pequeno” se trataria, quando até o mundo mineral capta o contrário. Pequeno? À mesa do governo, 39 ministros ali sentados em torno da presidenta, se riem largamente, e nesta bonomia risonha tem algo de sinistro. De todos, o mais vampiresco é o ministro da Fazenda. Podem crer, ele não é de ajustes pequenos. Gargalha, em uníssono, um Alckmin de boné, ao anunciar o drama hídrico instalado em São Paulo.
Um grande ajuste poderia haver, salutar, a taxação dos ricos. No entanto, que esperança, tanto mais no país da casa-grande e da senzala. Joaquim Levy, aliás, poderia nos poupar de suas lições a respeito de patrimonialismo, mesmo porque, ou não entende do assunto, ou tenciona levar-nos na conversa. A ideia vale em dois sentidos. Um gênero de patrimonialismo é aquele praticado pelo governante que se nega a perceber a diferença entre público e privado e usa o poder qual fosse de sua propriedade. Outro é aquele que permite a presença do Estado onde se faz necessária conforme as circunstâncias. Se tiverem dúvidas, perguntem a Franklin D. Roosevelt e lord Keynes.
Não há progresso desde a Revolução Industrial e a Revolução Francesa, sem a participação decisiva do Estado. Suponho que a este gênero de patrimonialismo se refira Joaquim Levy ao se dispor a erradicá-lo. Prefere um mundo de insuportável desigualdade, construído para a felicidade de banqueiros e especuladores, a fim de conseguir que 1% da população detenha 99% dos bens, como acontecerá em breve.
Perguntam meus botões: “Será que Dilma sabe ter ganho a eleição?” Evito respostas, embora perceba que o ajuste excogitado pelo ministro da Fazenda prejudica os eleitores da presidenta, antes de quaisquer outros. De todo modo, ao pensar no governo sorridente, me ocorre a imagem de um pesqueiro a navegar ao largo da costa nortista da Escócia, na neblina da madrugada invernal. E sem dispor do apito, irremediavelmente avariado.
Joaquim Levy se moverá ao escárnio se alguém se permitisse dizer que Tsipras, o grego, arca com um papel interessante. Cabe-lhe, ao menos, o destemor de levantar um debate importante sobre questões vitais. Inescapáveis, se estivermos interessados no futuro, do Brasil e da humanidade. Certo é, e insisto neste ponto, que nossa imensa terrinha poderia ter sido o paraíso terrestre. Se não é, cada vez mais escancarada a responsabilidade de uma elite incompetente, sobretudo incompetente, empenhada em manter de pé a casa-grande e a senzala.
Se padecemos uma crise hídrica e outra energética, a quem atribuir a responsabilidade? Quem sabe valesse perceber que o Brasil não carece de águas. São Paulo, digamos, atravessada por dois rios de notável porte, transformados em esgotos ao ar livre, em um país incapaz de alcançar com saneamento básico um terço do seu território. Incompetência, descaso, ignorância, irresponsabilidade, jactância dos provincianos recalcados e a impotência de um povo ignaro de sua própria cidadania. No meio, a ausência de mediação política eficaz. Meros exemplos da nossa persistente Idade Média.
O Brasil pretende-se democrático e civilizado e é o único país em que mais de 60 mil assassínios são cometidos anualmente, crimes contra a humanidade prescrevem, rico não vai para a cadeia e o novo ano só começa depois do Carnaval.
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