Carta Maior, 05/02/2015
Ives Gandra: um parecer a serviço do vale tudo
Por Martonio Mont'Alverne Barreto Lima (*)
A centralidade do argumento do Prof. Ives Gandra Martins em parecer de sua autoria para sustentar a existência de elementos jurídicos autorizadores da abertura de processo de impeachment contra a Presidenta da República é equivocada. Ainda que observada apenas do ponto de vista jurídico, na forma advertida pelo Autor do parecer logo no seu início (e como se uma análise exclusivamente jurídica fosse possível quando se envolve Direito Constitucional!), a tese sustentada carece de fundamento sobre alguns aspectos que passarei a elencar.
Primeiro. Um processo de impeachment não é o espaço onde tudo é possível, como afirmou o então Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) José Carlos Moreira Alves ao proferir seu voto no Mandado de Segurança 21.689-DF, impetrado contra decisão do Senado Federal. Com tal pensamento, o Ministro Moreira Alves deixou evidente sua desconfiança dos políticos e da política democrática, o que não surpreende, se se conhece sua história como um dos principais representantes do conservadorismo político no STF. Além dos arts. 85 e 86 da Constituição Federal, dos Regimentos Internos do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, os parlamentares estão vinculados ao processo da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950. Esta Lei teve sua recepção pelo sistema constitucional atual confirmada por entendimento do Supremo Tribunal Federal. A vinculação a estes atos normativos constitucionais e infraconstitucionais é tão decisiva que o Supremo Tribunal Federal entende poder controlar eventuais violações praticadas pelos parlamentares.
A única jurisprudência do STF sobre a matéria é aquela das disputas judiciais travadas pelo então Presidente Collor de Mello contra a Câmara dos Deputados e Senado Federal durante seu processo de impeachment. Nesta jurisprudência o STF não deixou dúvidas sobre sua competência para corrigir eventuais abusos cometidos por parlamentares.
Assim, é um engano do Prof. Ives Gandra Martins imaginar que o juízo político pode fazer o que bem entende. Igualmente não traduz novidade alguma esta posição. Na verdade, consiste ela na política de esconder uma política, como se esta não houvesse em todos os espaços da vida republicana brasileira e de qualquer país do mundo. Dizer que o juízo político tudo pode é o mesmo que legitimar qualquer desmando do Poder Legislativo e, principalmente, acreditar que os políticos estarão sempre prontos para esta tarefa. Mais: a natureza dos políticos nas democracias fortemente vigiadas de hoje (pena que a política interna do Poder Judiciário não seja vigiada da mesma forma!) seria aquela da eterna propensão à violação dos preceitos constitucionais e legais. Em outras palavras: tal pensamento ressuscita a tradição conservadora de que os políticos eleitos pelas “maiorias loucas”, a permitirem a participação de todos nos processos decisórios, não dão tanta importância à legalidade, não se preocupam com o estado democrático de direito. Evidente que esta ideia não resiste à objetividade da história, ou hegelianamente, à “razão da história”: foram exatamente esta política, com estes políticos que legaram ao Brasil o mais longevo ininterrupto período democrático, sobrevivendo às mais complexas tensões, como o processo de impeachment de 1992.
Afirmar que inexiste exigência constitucional e legal a ser observa em processo de impeachment é um erro. O tempo dos governantes absolutos e irresponsáveis acabou com a modernidade da idade política iniciada pelo Iluminismo e realizada pela radicalidade democrática e jacobina da Revolução francesa. O mesmo limite vale para os parlamentares. Quando estes decidem por esta ou aquela aprovação de projeto de lei ou quando decidem, na condição de poder constituído, afastar um governante eleito diretamente pelo poder constituinte, isto é o povo, os parlamentares não podem fazer o que bem entendem: devem observar a Constituição e as leis.
É assim que Paulo Brossard e sua obra ‘O Impeachment’ devem ser compreendidos e não como deseja o Prof. Ives Gandra. Quando Paulo Brossard discorre sobre os juízos políticos e sua liberdade de ação anota o ex-Ministro do STF que a liberdade do parlamento sujeita-se às leis existentes. Esta reflexão que faço parece ser autorizada pela objetividade do entendimento de Paulo Brossard expressado em seus votos divergentes a não competência do STF em conhecer e julgar questões políticas resultantes de processo de apuração de crime de responsabilidade do Presidente da República. Em suas palavras em diversos acórdãos, Paulo Brossard afasta a jurisdição do STF porque explicita a confiança que o constituinte originário teve na política e nos políticos de se submeterem à Constituição e às leis que regulam este processo de afastamento do mais elevado mandatário da República. Da mesma maneira que o constituinte confiou nas mulheres e homens que fazem o STF quando de sua função caracterizadora que é julgar. Por que haveria o parlamentar de afastar-se da Constituição e das leis quando investido na função de julgador, enquanto um juiz do STF jamais sucumbiria diante desta tentação? A teoria defendida por Brossard é a de que todos erramos; “felizmente, erramos menos que acertamos”. Se a posição de Brossard foi vencida no plenário do STF, foi ele vitorioso na qualidade de sua construção teórica constitucional: deve-se confiar na política democrática e nos políticos por ela construídos. Se não se deve alimentar ilusões, tampouco há elementos objetivos a legitimarem a qualificação de que todos são demônios.
Segundo. Trata-se, sim, de um novo mandato da Presidenta, o que impede o prosseguimento do raciocínio de que, por ser um só mandato, o atual restaria contaminado com o que ele denomina de continuação do crime. Simplesmente não há qualquer sustentação constitucional para que se compreenda um só mandato. São dois mandatos, com eleições entre eles. Findo seu segundo termo na Presidência da República, Dilma Rouseff não poderá exercer um terceiro consecutivo. Aqui a clareza da Constituição é peremptória, como não poderia deixar de ser. E novamente, as palavras de Brossard: a Constituição assim fez. Fez certo ou errado? Um poder constituído não tem como questionar o constituinte democrático; deve obedecê-lo! Ainda que fosse possível discutir-se a extensão de crimes durante vários anos, do ponto de vista da política, não há como negar que o caso a envolver a Petrobras esteve presente ao longo de toda a campanha eleitoral de 2014. Portanto, o povo brasileiro sabia do que ocorria – ainda que inegável dose de parcialidade pelos grandes meios da imprensa eletrônica, escrita radiofônica e televisada – e decidiu reeleger a atual Presidenta. Por qual razão seriam os políticos eleitos na mesma eleição iluminados, a ponto de enxergarem o que o povo não viu, e corrigir sua vontade? O juízo do povo, este sim, soberano, é o que não conhece limites. Não o juízo dos poderes constituídos.
A abertura de processo por crime de responsabilidade requer indícios convincentes da existência concreta de determinados atos a comprometerem sua legítima eleição. Não se trata de uma aventura. Aliás, este argumento está presente na decisão do STF que rejeitou pedido de instauração de processo de impeachment contra o ex-Presidente José Sarney. Os indícios deverão ser incontestes para a condenação. É assim que funciona o estado democrático de direito no Brasil e mundo afora. Somente após o aparecimento de gravações – provas claras de envolvimento direto - é que o Congresso dos Estados Unidos iria instaurar o processo de impeachment contra o então Presidente Nixon. Somente após o depoimento de um motorista da família do ex-Presidente Collor, com provas também de envolvimento direito, é que se seguiu no processo de impeachment. Não bastaram suposições. Não bastaram notícias em jornais; espaço, este sim, onde tudo é possível. Tanto no caso dos Estados Unidos quanto na experiência brasileira, os parlamentares não se deixaram levar pelo que poderia ter sido, porém, pelo que direta e comprovadamente foi.
Vinculados à Constituição e às leis, os parlamentares não têm como fugir de sua aplicação. Desta maneira, é impossível, por exemplo, sustentar que a simples presunção de culpa em crimes de omissão seja elemento jurídico, como apontado pelo Prof. Ives Gandra Martins, autorizador do desencadeamento de processo por crime de responsabilidade da Presidenta. Há induvidosa jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça neste sentido e há muito tempo. Em nome do juízo político da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, “onde tudo fosse possível”, estas Casas poderiam atropelar o entendimento jurisprudencial? Claro que não. As Casas Congressuais, enquanto instâncias julgadoras, sujeitam-se às normas do estado democrático de direito. Não podem fazer o que desejam.
*Doutor em Direito pela Universidade de Frankfurt. Professor Titular da Universidade de Fortaleza. Procurador do Município de Fortaleza.
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