Viomundo, 20 de fevereiro de 2015
Política não é coisa para especialistas
Por Maria Luíza Tonelli
Para os gregos atenienses da antiguidade, que inventaram a Filosofia e a Democracia, a política não era e nem podia ser coisa para especialistas.
Qualquer cidadão podia participar das decisões da polis (exceto as mulheres, os estrangeiros e os escravos). O que mais distingue a democracia antiga da democracia moderna é o fato de que naquela a democracia era direta, ou seja, não havia eleição para representantes do povo, mas um sorteio. Os sorteados eram os que decidiam diretamente os assuntos relacionados à cidade. Apenas os magistrados eram eleitos e a estes era proibido participar da política propriamente dita.
A democracia moderna, ao contrário, é representativa. Isso significa que na democracia moderna o poder não é exercido diretamente pelo povo, mas por representantes eleitos. A soberania popular significa que o poder soberano pertence ao povo, não aos representantes escolhidos pelo voto. Todavia, o que se preserva na democracia é o direito igual de todos os cidadãos de participarem da vida política. O direito político de votar e ser votado e o direito de fazer uso da palavra. Daí que a democracia é o regime da palavra (parlamento, parlamentar).
A liberdade de expressão e o direito de manifestação da opinião sobre os assuntos da política dizem respeito a um direito de todos exatamente porque a política é de interesse de todos, independente de conhecimentos técnicos. Desde a antiguidade grega, a democracia não pode ser coisa de especialistas.
O perigo da judicialização da política é a despolitização da própria política, transformando-a em coisa para especialistas. Especialistas na área jurídica. Tudo passa a ser relacionado ao Direito. Pior: ao direito penal. Tudo passa a ser abordado pela ótica do Direito, tudo é avaliado pela perspectiva jurídica, não pelo julgamento político.
Trata-se, além de uma grave ameaça à democracia, de uma forma de excluir os cidadãos leigos do debate verdadeiramente político. Ora, o Direito é uma ciência (jurídica) e, como tal, exige conhecimento, que os gregos chamavam de epistéme. O conhecimento está relacionado à verdade, não à opinião. Operadores do direito não opinam; interpretam as leis. São especialistas. A política, em se tratando de democracia, diz respeito à opinião. Como não se trata de ciência, não há opinião verdadeira ou falsa. Opinião não é verdade válida para todos, é a verdade de cada um. Os gregos já distinguiam a verdade (alethea) da opinião (doxa).
Diante desse galopante processo de judicialização da política, um fenômeno mundial, que faz parte do projeto neoliberal de deslegitimar a política e promover a hegemonia do poder judiciário (e a consequente mitigação da soberania popular, tendo em vista que juízes não são representantes eleitos pelo povo) ressurge com força total o discurso da moral para tudo avaliar em termos de política. Um discurso que muitas vezes nada tem a ver com a ética.
Assim, num contexto em que o jurídico domina a cena política, muita gente que não tem conhecimento jurídico, ao opinar sobre o que desconhece legalmente acaba por fazer um julgamento moral, ou seja, nem político, nem jurídico. Só para citar um exemplo: quem critica o direito dos advogados procurarem o ministro da Justiça desconhece que tal prática é legal e legítima. Esse tipo de crítica, na verdade, nada tem a ver com a defesa da moralidade ou da ética na política nem do direito, pois a política e o direito não se confundem com a moral.
Democracia tem a tem a ver com direitos e Direito tem a ver com as leis feitas pelos homens da política, que representam o povo soberano.
O perigo maior da judicialização da política, que não é um problema jurídico, mas essencialmente político, é desapossar o povo de seu lugar soberano e transformar a democracia numa juristocracia. Nada mais totalitário.
Maria Luíza Tonelli é advogada, mestre e doutora em Filosofia pela USP, com tese sobre a judicialização da política e a soberania popular
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