26 de fevereiro de 2015
O Porsche e a nossa liberdade
Por Paulo Moreira Leite
Alguma coisa só pode estar muito errada numa sociedade na qual o uso indevido de um Porsche causa maior escândalo do que erros flagrantes na proteção da liberdade de homens e mulheres.
O juiz Flavio Roberto de Souza caiu em merecido ridículo depois que assumiu o volante de um carro de meio milhão de reais, propriedade do ex-queridinho de altos negócios Eike Batista. Sua Excelência extrapolou na desculpa, ao dizer que haveria “risco de danos” caso um automóvel tão valioso não ficasse guardado na garagem do edifício onde mora.
O curioso é que isso ocorreu dias depois que uma reportagem de Monica Bergamo demonstrou as deprimentes condições em que são mantidos empresários e executivos acusados na Operação Lava Jato, na carceragem da Polícia Federal em Curitiba.
Não vou rememorar os detalhes, aqui. Mas lembro o escândalo essencial: estão presos sem prova, há meses, dias após dia — e não pode haver afronta maior aos valores democráticos, nada mais humilhante e vergonhoso. Isso é muito pior do que comer carne com as mãos, fazer cocô na frente de estranhos, chorar descontroladamente.
Seus advogados apresentam habeas-corpus, alguns chegaram ao Supremo Tribunal Federal, aquela corte que é um dos três poderes da República — e, deixando de fora um único caso, nada aconteceu. Apoiados em formalidades que foram solenemente ignoradas quando Gilmar Mendes teve diante de si as prisões da Operação Satiagraha, e mandou soltar os principais réus em poucas horas, duas vezes consecutivas, nossos ministros evitam examinar o caso, pedem que sejam reexaminados por instancias inferiores que, sabem todos, nunca farão isso.
O objetivo do juiz Sérgio Moro, que atua como policial, como promotor e também como magistrado, num acúmulo de funções estranha à divisão de trabalho do Estado Democrático de Direito, é destruir a auto-estima dos prisioneiros, seu orgulho, suas referências, para que confessem aquilo que quer ouvir.
Assim como a tortura de prisioneiros políticos do passado estava codificada e explicada nos manuais de guerra contra-revolucionária, elaborada pelo Exército Francês na Indochina e na Argélia, depois importados pelos países da América do Sul, a delação premiada foi estudada e examinada em textos sobre o Dilema do Prisioneiro, disponíveis na internet, em português.
O inquérito da Lava Jato tem um rumo político definido, óbvio. Como se fosse uma guerra contra revolucionária, o alvo é político: chegar a cabeça de quem Sua Excelência enxerga como inimigo e considera-se no direito de tratar como tal. Conforme relatos que saem da carceragem, prisioneiros são chamados a fazer uma delação de qualquer maneira. Nada interessa além disso.
No passado do regime militar, os presos eram torturados no pau de arara, com choques elétricos Na inquisição medieval, infiéis ardiam em fogueiras para confessar suas blasfêmias e heresias. A confissão era a prova de culpa — com o fogo ardendo na pele. Eram perdoados — pelo Senhor, com maiúsculas — porque admitiam seus pecados. Entendeu, certo?
No Brasil de 2015, tentam nos fazer acreditar que a prisão sem provas, durante meses, não é uma forma de violência nem pode ser tratada como tortura — afinal, um crime inafiançável. Imagine os valores autoritários, absurdos, que estão embutidos na visão de quem não enxerga a destituição de direitos e a negação da liberdade, a manipulação das celas de uma prisão conforme objetivos políticos, como um ataque supremo a condição humana e até aos direitos dos animais, inclusive selvagens — como se aprende com a inesquecível Pantera, de Rilke. É isso. Temos homens que hoje são menos do que animais, como dizia Sobral Pinto, referindo-se a ditadura do Estado Novo.
Num país com políticos desmoralizados por campanhas malignas, seletivas, sucessivas — o eufemismo é dizer que foram deslegitimados — e uma mídia curvada, ajoelhada, ocupada em ideologias pequenas e interesses próprios, a caçada ao Porsche é o falso escândalo que convém.
Porsche aos porcos, diria Oswald.
Em outubro de 2012, quando o julgamento da AP 470 se aproximava do final, escrevi aqui, neste espaço, um artigo chamado “STF e o Thermidor de Lula.” Expliquei:
“Thermidor foi aquele período conservador da revolução francesa, quando os ricos recuperam privilégios, a democracia foi enfraquecida e, pouco a pouco, o poder político transformou-se numa ditadura. No fim, restaurou-se o império. A aristocracia recuperou direitos e conseguiu impedir o avanço de mudanças, ao se reconciliar com a burguesia, contra o povo. As eleições se tornaram duas vezes indiretas. O direito de voto retornou aos muito ricos. No caminho de Thermidor, encontrou-se Robespierre e o Terror. Foi uma fase de tal violência política que fez França de 1792-1794 ficar parecida com o Camboja após a vitória de Pol-Pot, quase 200 anos depois. A taxa demográfica do país que havia criado o iluminismo e os direitos do homem chegou a ficar negativa por causa de execuções e mortes sumárias, todas por motivação política, sem direito a um julgamento. E tudo isso em nome do…combate a corrupção.”
Três anos depois, a Lava Jato é uma linha em continuidade da AP 470, na mesma estrada que ameaça levar as conquistas recentes do país, que não pertencem a um governo nem a um partido, mas a toda nação, a seu Thermidor. O que se quer é o retrocesso, num movimento que se reproduz, se perpetua. Na terça-feira passada, condenado a 6 anos e quatro meses na AP 470, o ex-deputado João Paulo Cunha conseguiu uma progressão de regime e passará a cumprir sua pena em regime aberto. Pode sair da cadeia para trabalhar, sendo obrigado a se recolher em casa, à noite. Não pode sair aos domingos e pode receber a visita de um agente penitenciário a qualquer momento. Como vários outros condenados, João Paulo foi obrigado a pagar uma multa de R$ 536 000 para exercer um direito que a lei lhe assegurava. Ele entrou com recursos contra a exigência, pois vivemos num país onde ninguém pode ser preso por dívida — salvo quem deixa de pagar pensões alimentares aos filhos. Perdeu. Só poderá sair da cadeia porque fez um empréstimo.
O Porsche da questão é que João Paulo tem um ponto importante contra sua condenação, uma prova de inocência espetacular, de mudar filme americano na cena final. Ele foi condenado no STF por corrupção e peculato mas sempre contestou a decisão dos ministros. Quando aguardava a decisão da Câmara sobre seu mandato, foi a tribuna e desafio Joaquim Barbosa a explicar o crime pelo qual era acusado. A resposta foi o silêncio, aquele tratamento dispensado às não-pessoas de regimes onde o autoritarismo busca a perfeição. Ocorre que João Paulo é capaz de explicar, nota por nota, recibo por recibo, cada um dos reais que foi acusado de desviar. Os documentos estão lá, até hoje, nos autos da AP 470. Mostram que, como presidente da Câmara de Deputados, ordenou despesas de vulto em campanhas publicitárias divulgadas pelos grandes meios de comunicação: TV Globo, Editora Globo, Abril, Folha, Estado de S. Paulo, Istoé, outras mais. Está tudo lá, arrumado, ordenado, num serviço profissional. Nenhum veículo contestou os pagamentos, nem poderia. As despesas foram confirmados pela investigação do delegado Luis Flávio Zampronha. Isso quer dizer que os recursos foram pagos e devidamente depositados.
João Paulo fez empréstimo para pagar os R$ 536 000 mas jornais e revistas não tiveram de ressarcir um único real. Nem se escandalizaram com uma denúncia que sabiam — por experiência própria — ser apoiada numa acusação sem prova. O surrealismo é este: ele foi condenado por um crime que, do ponto de vista do beneficiário, foi visto como inteiramente lícito. Cadê o desvio? A propina?
Agora, uma coincidência matemática. Acrescentando despesas de frete, quem sabe um seguro pelo farol de milha ou pelas rodas de magnésio, veja que horror: o valor da liberdade de João Paulo equivale ao Porcshe do juiz Flávio Roberto de Souza.
Que bela porcaria de automóvel, não é mesmo?
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