Blog do Santayana, 12/12/2014
O México e a América do Sul
Por Mauro Santayana
Incendiado pelos
protestos contra o desaparecimento, tortura e assassinato de 43 estudantes
de esquerda por um prefeito direitista e corrupto do estado de Guerrero,
aliado a narcotraficantes, o México encerrou, esta semana, na cidade portuária
de Veracruz, a XXIV Cúpula Ibero-americana, que foi, como as edições
anteriores desse evento criado por mexicanos e espanhóis na década de 90, para
tentar ampliar sua influência na América Latina, um rotundo fracasso, marcado
pela ausência de numerosos chefes de estado, entre eles os da Argentina,
Brasil, Bolívia, Cuba, Nicarágua e Venezuela, por parte da América do Sul.
Conquistado e
colonizado pelos espanhóis, o país dos Aztecas foi o primeiro da América Latina
a sofrer a influência direta da ascensão anglo-saxã no Novo Mundo, depois da
chegada dos ingleses ao norte de suas fronteiras, e pagou caro por isso,
perdendo a metade do seu território para os EUA, e assumindo o triste
destino de servir de barreira para a expansão dos gringos rumo ao sul, em um
contexto que encontrou sua melhor tradução na famosa frase que uns atribuem ao
revolucionário Lázaro Cárdenas, e outros, ao ditador, também mexicano, Porfírio
Diaz:
“Pobre México! Tão
longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos."
Essa constatação se
traduziu, ao longo do tempo, para a população mexicana, em uma contradição
permanente.
Por um lado, um povo
valoroso e sofrido, e em sua maioria, miserável. Por outro, uma elite rica e
irresponsável que sempre explorou o país de forma cruel e desumana, em
subalterno conluio e a serviço dos interesses do poderoso vizinho do Norte.
Há hoje dois tipos de
mexicanos:
Aqueles que suam,
trabalhando horas a fio em pé, no campo e nas linhas de montagem das
“maquiadoras” que retocam produtos vindos de fora com destino aos EUA, e que
muitas vezes se insurgem contra a injustiça e a entrega do país, e os que
oxigenam o cabelo e compram lentes de contato para clarear-lhes a íris, com a
“naturalidade” dos “bonecos” e das “bonecas” que se veem nas novelas mexicanas.
Enquanto os primeiros
são assassinados, como o foram os 43 estudantes de Iguala, os segundos
gostariam que o México fosse absorvido de uma vez por todas pelos EUA, para que
pudessem viajar entre Cancún e Miami sem precisar apresentar passaporte, desde
que permanecessem de pé, ao longo dos 3.000 quilômetros de fronteira entre os
dois países, os muros e as cercas que evitam a entrada de emigrantes pobres em
território norte-americano. Os mesmos muros e cercas que separam,
metaforicamente, mansões de 6 milhões de dólares, como a que foi comprada pela
primeira-dama mexicana, Angelica Rivera, e os barracões de madeira e papelão em
que vivem jovens operárias como as que são estupradas, assassinadas e
“desovadas”, nos subúrbios de cidades como Juarez.
E há, também, dois
tipos de México.
A nação rebelde da
Revolução de 1910, que se recusou a romper relações com Cuba na Guerra Fria, e
acolheu, nas décadas de 1960 e 1970, exilados de países sul-americanos; e o México abjeto e
neoliberal do NAFTA, da Aliança do Pacífico e da cúpula “ibero-americana” desta
semana.
A defesa do NAFTA,
das vantagens do “livre comércio” e do “ibero-americanismo”, são caminhos
complementares que obedecem, para a “elite” mexicana, aos seguintes objetivos:
- Romper o isolamento
– principalmente com relação à América do Sul – a que o México se condenou, ao
agregar-se, política e economicamente, à América do Norte, em 1994.
- Diminuir a
crescente perda de influência do México no mundo, consolidando, com relação à
América Latina, uma aliança com a Espanha, país que está sofrendo processo
equivalente e tão acelerado quanto, de insignificância geopolítica e
institucional.
- Nesse contexto, não
apenas em proveito “próprio”, mas também dos EUA e de Madrid, combater, no
âmbito político e no ideológico, a crescente influência do Brasil na América do
Sul e na América Latina.
- Tentar romper, ao
menos marginalmente, a excessiva dependência dos Estados Unidos, atraindo
outros países da região para tratados de “livre-comércio” para aumentar as
exportações dos produtos que “maquia”, contribuindo para ajudar a destruir,
nesse processo, a indústria de nações concorrentes, como é o caso do Brasil,
que possuem, industrialmente, uma taxa de conteúdo local muito mais elevada.
DE PORCOS E DE
GALINHAS.
A “elite” neoliberal
mexicana, e sobretudo, a “latina”, como se denominam os chicanos e
outros imigrantes latino-americanos menos “votados”, que resolveram abdicar de
sua nacionalidade para fixar-se nos Estados Unidos, acredita que, por uma
questão demográfica, a população “hispânica” acabará, mais cedo ou mais tarde,
talvez em 5 ou 6 décadas, tomando o poder nos EUA e promovendo uma espécie de
“vitória” mexicana ao contrário, com uma conquista dos EUA de “dentro” para fora,
assim como a ocupação militar de metade do México pelas tropas dos Estados
Unidos se deu de “fora” para dentro, na guerra entre os dois países, travada
entre 1846 e 1848.
Pode até ser – se a
crescente imigração chinesa para a América do Norte o permitir – que isso venha
a acontecer um dia.
A questão é que, como
costuma ocorrer com os novos ricos, ou melhor, com os metidos a besta, os
descendentes de mexicanos que se inseriram no establishment dos EUA,
nutrem profundo desprezo pelos que tentam seguir seus passos, assim como o faz
a corja neoliberal “hispânica” que, de suas redações em Wall Street e Miami ou
dos estúdios da CNN em Atlanta, insiste em nos impingir “lições” econômicas e
políticas, que, como podemos ver pelos resultados colhidos pelo México nos
últimos anos, são tão hipócritas como “furadas”.
Foi essa “elite”,
apátrida e irresponsável, que praticamente impôs, com a mesma conversa
fiada, à população mexicana, a assinatura de um acordo, nos anos 90, que
equivaleria, para o México, a fechar com os EUA e o Canadá um tratado que
lembra a famosa joint-venture estabelecida pelos porcos com as galinhas
para vender ovos com bacon.
No momento em que
muitos advogam que o Brasil siga o mesmo caminho, negociando entendimentos
semelhantes com os EUA e a União Europeia, vale a pena analisar o que
ocorreu com os mexicanos, nos últimos 20 anos, desde a sua entrada no NAFTA – o
Tratado de Livre Comércio da América do Norte:
CENTENAS DE BILHÕES
DE DÓLARES DE DEFICIT COMERCIAL E DE CONTA-CORRENTE.
Apesar de gabar-se –
graças aos seus baixíssimos salários e à sua localização ao lado do maior
mercado do mundo - de exportar mais que o Brasil e que os outros países da
América Latina, com a entrada no NAFTA, o México fez, quanto ao comércio
exterior, um péssimo negócio.
Nos últimos 20 anos,
as exportações mexicanas aumentaram, mas as importações também o fizeram em
um ritmo muito maior, devido à compra de peças e componentes de alto
valor agregado de países como a China, Taiwan e a Coréia do Sul. Em 2011, o México
importou mais de 350 bilhões de dólares, e em 2013, seu déficit com Pequim
foi de mais de U$ 50 bilhões de dólares. Nos primeiros dez anos do
NAFTA, o México teve quase 50 bilhões de dólares de déficit comercial e um
gigantesco déficit em conta corrente (para o tamanho de sua economia) de quase
130 bilhões de dólares. Uma situação que seria ainda pior, muito pior, se
não tivesse exportado cerca de 1.300.000 barris por dia de petróleo para os
EUA, no período, vendas que aumentaram apenas em 7.3% desde 1994, e cujo valor
tende a cair com a queda do preço do óleo nos mercados internacionais.
O Investimento
Estrangeiro Direto também não aumentou significativamente. Teve uma média de 15
bilhões de dólares por ano, depois da assinatura do tratado, enquanto no Brasil,
nos últimos anos, incluindo 2014, ele foi mais de 4 vezes maior, da ordem de 65
bilhões de dólares.
OS SALÁRIOS MAIS
BAIXOS DO CONTINENTE.
Os salários mexicanos
são os mais baixos da América Latina. O seu valor, em dólar, evoluiu apenas
2,7% nos últimos 20 anos. Apesar do aumento das exportações de
“manufaturados” de terceiros países “maquiados” localmente, um trabalhador
da indústria automobilística mexicana ganha, em dólares, cerca de um terço do
que recebe um trabalhador brasileiro, e o salário mínimo em 2014, foi de menos
de 11 reais por dia. A imprensa mexicana saúda os baixos salários locais
como fator de “competitividade” frente à evolução dos salários em outros
países, cuja economia cresce para melhorar as condições de vida da população e
fomentar o mercado interno, como a China, mas não diz que mais de 7 em cada 10
automóveis fabricados no México tem que ser exportados, porque os cidadãos
mexicanos que os fabricam não possuem renda ou fontes de financiamento para
comprá-los.
AS PIORES CONDIÇÕES
DE TRABALHO DA AMÉRICA LATINA.
Vinte anos depois da
entrada para o NAFTA, seguida da assinatura “do maior número de tratados de
livre comércio” da América Latina, 6 de cada 10 trabalhadores mexicanos não
têm carteira assinada, o desemprego formal praticamente dobrou com relação a
1994, não existe seguro-desemprego, nem aposentadoria pública como direito
assegurado, por exemplo, a agricultores e donas de casa. A taxa de pobreza da
população mexicana, que era de 52,4% em 1994, evoluiu em apenas 0,1%, para
52,3%, em 2014, contra uma diminuição, no mesmo período, de mais de 40% na
América Latina. Hoje há, no México, para pouco mais de 100 milhões de
habitantes, 70 milhões de pobres.
UMA DAS MENORES TAXAS
DE CRESCIMENTO ECONÔMICO DA AMÉRICA LATINA.
Nos últimos 20 anos,
o México ficou em antepenúltimo lugar em crescimento econômico per capita entre
os países da América Latina. A renda per capita em dólares do país símbolo da
Aliança do Pacífico, cresceu, nesse período, apenas 18,6%, metade do que
cresceu a do Brasil, e a metade da média latino-americana.
Para se ter uma ideia
dos resultados da “receita” da tortilla neoliberal mexicana dos
últimos 12 anos, o PIB nominal do México cresceu apenas 85%, em dólares, nos
últimos 12 anos, menos de um quinto do que cresceu o PIB do Brasil no mesmo
período, que aumentou mais de 400%, passando de 600 bilhões de dólares em
2002 para 2.4 trilhões de dólares em 2014.
DESAGREGAÇÃO E
DESNACIONALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO DE ALIMENTOS.
O “livre-comércio” e
o NAFTA representaram, nos últimos 20 anos, um verdadeiro desastre para a
agricultura mexicana. Em 2012, estudos da UNAM, a maior universidade do México, mostravam
que naquele ano 72% dos agricultores estavam em quebra; mais de 29 milhões de
camponeses não tinham acesso sequer a uma cesta básica, e só 3.9 milhões podiam
adquirir algum produto que a compõe. Entre 2006 e 2011, houve perda de 44%
no poder aquisitivo da população rural, o rebanho de matrizes bovinas mexicano
é, hoje, 30% menor do que era há 20 anos, e 322 mil fazendas dedicadas à
pecuária desapareceram. Com a agricultura e a produção avícola e de ovos,
também não foi diferente. A importação de carne de frango, peru e de ovos,
cresceu duas vezes mais rápido que a produção interna no período. A produção de
milho e de feijão, elementos básicos da cesta básica mexicana, não consegue
abastecer o mercado interno, e a importação de grãos provenientes dos Estados
Unidos se multiplicou por 15 em duas décadas. Para registro, cada agricultor
norte-americano recebe, em média, em ajuda direta e indireta, do governo, cerca
de 26.000 dólares por ano. E um agricultor mexicano que esteja produzindo, uma
média de 700 dólares.
A falta de apoio do
governo à agricultura, à pecuária, aos pequenos agricultores familiares, fez
com que 2 milhões de camponeses abandonassem suas terras, aumentando o
êxodo rural, também para os EUA (o número de emigrantes aumentou em 80% nos
primeiros seis anos do acordo, cerca de 10 milhões de mexicanos deixaram o seu
país nos últimos 20 anos e apesar da repressão na fronteira, 12% da população
nascida no México vive hoje, ilegalmente, em sua maioria, nos Estados Unidos) e
fez crescer a produção de drogas no campo.
Dois dos quatro
membros da Aliança do Pacífico são o primeiro e o segundo maiores produtores
de cocaína do mundo, e, em outro deles, justamente o México, a produção e venda
desse tipo de substâncias cresceu a ponto de vastas áreas do território
mexicano estarem, como demonstra também o caso dos mortos de Iguala, sob o
controle de narcotraficantes.
DESTRUIÇÃO DO SISTEMA
PRODUTIVO E FINANCEIRO MEXICANO
Como consequência da
assinatura do NAFTA, obrigando-se a “competir” com um país com uma economia 15
vezes maior que a mexicana, os EUA, e outro com o dobro da economia mexicana, o
Canadá, milhões de micro e pequenas empresas quebraram, o varejo foi
dominado por grandes cadeias norte-americanas, como a Wal Mart, e os bancos
locais desapareceram. Hoje, enquanto os bancos privados e públicos de capital
brasileiro, como o Banco do Brasil, o Itaú, o Bradesco e a Caixa Econômica
Federal ocupam os 4 primeiros lugares do ranking latino-americano, e o BNDES
está entre os maiores bancos de fomento do mundo, o México não possui
mais bancos de capital nacional (eles foram vendidos a grupos espanhóis
e norte-americanos, como o Santander, o BBVA e o Citibank) e muito menos
um grande banco de fomento que possa apoiá-lo no financiamento de projetos de
infraestrutura, indústria e desenvolvimento.
A ELIMINAÇÃO DO
CONTEÚDO LOCAL NA PRODUÇÃO INDUSTRIAL E NAS EXPORTAÇÕES.
A imensa maioria dos
componentes que compõem as exportações mexicanas é importada. Na média anual,
até 2011, as “maquiadoras” mexicanas compravam, no mercado mexicano, apenas 2.97% dos
insumos usados em seus produtos, trazendo de outros países, 97%. Essa foi uma das
razões que levaram o Brasil a colocar cotas à entrada de carros mexicanos, já
que, na verdade, o que eles têm de “mexicanos” são, na maioria das vezes,
alguns parafusos e a mão de obra. Entre 1983 e 1996 o conteúdo local
da indústria não maquiadora, dedicada a abastecer o mercado interno, caiu de 91
para 37%, e esse processo, que se acelerou com o tempo, causou profunda
desagregação da indústria local, quebrando milhares de empresas e desempregando
milhões de trabalhadores, que para sobreviver tiveram de emigrar para outros
países. Em 2013, por exemplo, o México liderou a “exportação” mundial de
televisores de tela plana, no valor de mais de 15 bilhões de dólares, mas 94% dos componentes
utilizados para montá-los foi importado de outros países.
Em aberto contraste
com o fracasso da cúpula “ibero-americana” de Veracruz, a UNASUL inaugurou,
na semana anterior, com a presença de 11 dos 12 chefes de estado sul-americanos
(o Presidente da Guiana não pode comparecer por questões de política interna)
em Quito, no Equador, a sede da Secretaria Geral da organização, um majestoso
edifício que custou quase 50 milhões de dólares, integralmente aportados pelo
governo equatoriano.
Nos anos 1970, como
lembrou, a propósito deste mesmo tema, o antropólogo chileno Gonzalo García, no
Portal El Dínamo, o economista brasileiro Celso Furtado já lembrava que,
na definição das estratégias nacionais dos países do (então) Terceiro Mundo os
acordos regionais iriam adquirir cada vez mais peso. Mas que essas agrupações
seriam, essencialmente, um meio instrumentalizado de ampliação das opções dos
centros de decisão, com relação (vis a vis) aos centros de influência mundial,
e que as agrupações ou alianças regionais que favorecessem a dominação dos
países mais ricos atuariam contra o desenvolvimento de seus próprios países.
O NAFTA, a Aliança do Pacífico, e o “ibero-americanismo”
são, assim como o Acordo Transpacífico, alianças que favorecem a dominação de
centros de decisão de fora, sobre a América Latina. O Mercosul, e, principalmente, a UNASUL, e, em
menor grau, a CELAC, atuam em sentido contrário, o de fortalecer os interesses
de nossas nações e da nossa região, com relação a outras nações e regiões do
mundo.
Como Agátocles ao desembarcar nas praias de Cartago, o
México queimou, historicamente, seus navios, ao aceitar entrar para o NAFTA,
acreditando que a isso estava obrigado pelas circunstâncias geográficas e
econômicas que acabaram transformando-o, de fato, em um apêndice da economia
norte-americana.
Outro é o caso do
Brasil e do restante da América do Sul.
Felizmente, não nascemos "colados" aos EUA, não temos – pelo menos os que temos decência e
patriotismo – intenção de nos transformar em norte-americanos, nossa pauta de comércio exterior é
diversificada a ponto de nosso maior
sócio comercial estar situado do outro lado do mundo, e, como mostra a
inauguração da nova sede da Secretaria Geral da União das Nações da América do
Sul (foto), estamos cada vez mais unidos na defesa dos interesses do nosso
continente e da melhora das condições de vida da nossa gente.
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