Carta Maior, 27/12/2014
2015, o ano que pode surpreender
Por Saul Leblon
Uma frente de esquerda formada pelos principais movimentos sociais brasileiros, tendo à frente, entre outros, o dirigente do MTST, Guilherme Boulos, está em formação no país.
Não é ainda a alavanca capaz de reverter a ofensiva conservadora em marcha batida na sociedade. Mas tem potência para isso.
Tem, sobretudo, capacidade para sacudir uma correlação de forças na qual as elites mastigam a margem de manobra do segundo governo Dilma entre os dentes da fatalidade econômica e do engessamento político.
A iniciativa dos movimento sociais, apoiada por partidos de esquerda, conta com um incentivo sintomático da gravidade dos dias que correm: o do ex-presidente Lula e, portanto, de uma parte significativa do PT.
Tem, ademais, um precedente revelador.
Ela vem se somar a uma mobilização equivalente, iniciada há cerca de um mês, para reaproximar intelectuais de esquerda e construir um contraponto de ideias progressistas ao agendamento conservador da sociedade, martelado diuturnamente pelo jogral midiático.
Trata-se de uma usina de respostas à espiral regressiva; uma caixa de ressonância de intelectuais cidadãos.
Esse polo de debate e combate foi oficializado no dia 15 de dezembro, em evento em São Paulo, com o nome de Fórum 21.
A primeira assembleia, no Sindicato dos Engenheiros, elegeu como uma de suas vértebras a luta pela democratização dos meios de comunicação.
Presente no lançamento, o secretário de Cultura da Prefeitura de São Paulo, Juca Ferreira, afirmou que os meios de comunicação são o principal obstáculo ao debate crítico dos reais desafios brasileiros.
‘Precisamos iniciar uma reconstrução programática que supere nosso próprio desgaste, mas essa tarefa requer um ambiente midiático oposto ao atual, concentrado e carente de regras democráticas’, disse Ferreira. (leia ‘Para Juca Ferreira, falta de democracia da mídia substituiu censura do regime militar’, nesta pág).
A importância descomunal da imprensa na luta política não é assunto estranho à reflexão intelectual desde que Gramsci (1891-1936) o incorporou a sua obra. Na Itália, a fragilidade das estruturas partidárias, ao lado das dificuldades impostas por uma unificação feita de instituições ralas e abismos sociais e regionais profundos, fez com que os jornais assumissem funções de verdadeiros partidos, ensinou o pensador comunista.
As semelhanças meridionais com o subdesenvolvimento tropical não são negligenciáveis.
Nos anos 90, Celso Furtado costumava explicar pacientemente aos jovens jornalistas – os poucos que ainda procuravam o grande economista brasileiro taxado de jurássico pela emergente agenda tucana— que o ‘populismo’, ao contrário da demonização que lhe atribuíam as elites, refletia o vácuo histórico de uma sociedade pouco sedimentada institucionalmente, capturada pelas mandíbulas de um capitalismo de fronteiras indivisas.
O Estado e os líderes carismáticos compensavam o oco político falando direto às massas. E intervindo na economia para organizar a luta contra o subdesenvolvimento.
A colisão entre esse improviso de poder popular e o diretório midiático gerou entre nós alguns capítulos pedagógicos.
O suicídio de Vargas foi um deles.
O criador da igualmente por isso maldita Petrobras apertou o gatilho para não ceder à pressão insuportável do denuncismo lacerdista, que exigia sua renúncia em emissões sistemáticas através da rádio Globo, dirigida então pelo jovem udenista Roberto Marinho.
O Brasil era descrito como um mar de lama.
É dispensável enfatizar as semelhanças com a pauta e os métodos abraçados agora pelos grandes veículos de mídia em sintonia com a oposição conservadora ao governo Dilma, ao PT e ao ‘lulopopulismo’ econômico.
O Fórum dos intelectuais e a frente de movimentos sociais emergem como o contraponto mais importante a isso, desde a vitória de Dilma em 26 de outubro.
O conservadorismo atordoa o discernimento da sociedade desde então com uma escalada vertiginosa de iniciativas.Habilidosamente, equipara-se combate à corrupção à demonização do polo progressista, no qual se espeta o selo da degeneração política, associada a práticas econômicas ‘intervencionistas’.
A ideia de uma salubridade externa à história, tomada como referência limpa e boa na construção da sociedade, é um daqueles mantras aos quais se agarram os interesses dominantes de todos os tempos.
A depender da conveniência, essa salubridade poderá vestir a toga da judicialização da ‘má política’. Ou a gravata técnica dos centuriões que falam em nome da proficiência dos mercados para dar o rumo ‘correto’ à economia.
Ou ainda encarnar no monopólio de um dispositivo midiático que se avoca a prerrogativa de um Bonaparte, a emitir interditos e sanções em defesa dos interesses particulares apresentados como os de toda a nação.
Hoje, o objetivo desse aluvião é o impeachment de Dilma ou o sangramento irreversível de seu governo, e das forças que o apoiam, bem como das ideias que as expressam. Até o seu sepultamento histórico em 2018.
Semanas após a vitória progressista nas urnas, quando o governo parecia hipnotizado pelo serpentário golpista que havia subestimado, e por isso não se preparado para defender o escrutínio popular, Carta Maior indagava:
‘O que se pergunta ansiosamente é se Lula já conversou sobre isso com Boulos, do MTST; se Boulos já conversou com Luciana Genro; se Luciana Genro já conversou com a CUT ; se a CUT já conversou com Stédile; se todos já se deram conta de que passa da hora de uma conversa limada de sectarismos e protelações, mas encharcada das provid
ê
ncias que a urgência revela quando se pensa grande. Se ainda não se aperceberam da contagem regressiva que ameaça o nascimento de um Brasil emancipado e progressista poderão ser avisados de forma desastrosa quando o tique taque se esgotar’.A boa nova na praça é que a conversa começou.
O desafio de vida ou morte consiste agora em restaurar a transparência dos dois campos em confronto na sociedade.
Na aparente neutralidade de certas iniciativas pulsa, na verdade, a rigidez feroz dos interesses estruturais por elas favorecidos.
O melhor solvente para essa tintura é a ampla participação popular no debate e nas decisões que vão definir a rota do futuro brasileiro.
O país, desde 2003, e com todas as limitações e contradições intrínsecas a um governo de base heterogênea
- tem figurado aos olhos do mundo como uma das estacas da resistência latino-americana à retroescavadeira ortodoxa, que demole e soterra direitos sociais e soberania econômica urbi et orbi.Essa resistência criou um dos maiores mercados de massa do planeta em uma demografia de 202 milhões de habitantes.
O assoalho macroeconômico range e ruge sob o peso da inadequação entre a emergência dessa nova força motriz e as estruturas rigidamente pensadas para exclu
í
-la do mercado e da cidadania.A solução da 'agenda técnica’ é higienizar a sujeira do intervencionismo público em todas as frentes, devolvendo o mando do jogo à faxina autorreguladora dos mercados.
Sobrepor o interesse privado aos da sociedade implica capturar o sistema democrático integralmente para esse fim.
Era esse o objetivo dos candidatos conservadores derrotados em outubro.
Não era apenas uma disputa presidencial. Mas um capítulo do embate inconcluso pelo comando do desenvolvimento brasileiro.
Daí a ilusão de se supor que concessões pontuais vão saciar o agendamento derrotado nas urnas.
Não será a adoção homeopática de sua farmacopeia que o fará recuar.
O discernimento daquilo pelo que se luta, e contra quem se travará a batalha dos próximos dias e noites, é crucial para os interesses populares afrontarem a avalanche em curso.
Essa é uma batalha entre a democracia social e as forças regressivas que se insurgiram contra a sua construção em 32, 54, 64, 2005, 2006, 2010 e 2014.
Tornar esse divisor visível aos olhos da população requer um símbolo de magnetismo equivalente à dimensão das tarefas que essa agenda encerra em termos de organização e repactuação do país com o seu desenvolvimento.
Requer o nascimento de uma frente de esquerda que, à semelhança do ‘Podemos’, na Espanha, guarde incontrastável vinculação com as urgências populares. Mas também encerre um denso discernimento das contingencias globais, que não podem ser abduzidas pelo imediatismo corporativista.
Embora o martelete midiático tenha disseminado a bandeira do antipetismo bélico, a ponto de hoje contagiar setores amplos da classe média, o fato é que esse trunfo conservador ainda não reúne a energia necessária para inaugurar uma nova ordem.
O pântano, por enquanto, o satisfaz.
Ele desarma a sociedade e exaspera a cidadania.
Dissemina um sentimento de impotência diante das urgências de uma transição de ciclo econômico marcada por uma correlação de forças instável, desprovida de aderência institucional , ademais de submetida à determinação de um capitalismo global avesso a qualquer outro ordenamento que não o vale tudo dos mercados.
A força e o consentimento necessários para conduzir esse ciclo em uma chave que não seja a do arrocho requisitam o salto de articulação social que agora se ensaia.
O caminho oposto é o da treva.
A regressividade conservadora predominante na Itália após o ‘Mãos Limpas’, nos anos 90, não é uma miragem; é um risco real em sociedades desprovidas de representação política forte e organização social mobilizada (leia ‘Mãos Limpas; e depois, Berlusconi?’; nesta pág).
Lá como aqui o lubrificante do retrocesso foi a prostração progressista e a incapacidade da esquerda e dos democratas de construir um repto histórico de esperança para engajar a sociedade no comando do seu destino.
A gravidade dos desafios embutidos no calendário de 2015 é de ordem equivalente.
Saber onde estão as respostas e reunir a energia política capaz de validá-las é trunfo valioso.
É esse o significado encorajador da nascente frente de esquerda dos movimentos sociais e da usina de intelectuais cidadãos reunidos no Fórum 21.
São sinais de um aggiornamento em curso na vida política nacional.
Mas que já extrapolam a mera formalidade da travessia gregoriana, para emprestar a 2015 a dimensão e o desassombro de uma verdadeira renovação histórica.
Que assim seja um bom ano novo, são os votos que Carta Maior tem a certeza de compartilhar com seus leitores e com a imensa maioria do povo brasileiro.
CEMA Barão de Itararé, 16/12/2014
FÓRUM 21: DEMOCRATIZAR A MÍDIA É CHAVE PARA DERROTAR O CONSERVADORISMO
Por Felipe Bianchi
Como resposta à onda conservadora na política e na sociedade brasileira, foi lançado nesta segunda-feira (15), em São Paulo, o Fórum 21. A articulação entre intelectuais e lutadores do movimento social fez sua primeira assembleia no Sindicato dos Engenheiros, com a proposta de aglutinar forças da esquerda para discutir o processo brasileiro e aprofundar os avanços sociais no país – tarefa que exige a democratização dos meios de comunicação.
Joaquim Palhares, editor do portal Carta Maior e um dos idealizadores do Fórum 21, apresentou a novidade como uma forma de romper o hiato pós-eleitoral, em defesa do projeto vitorioso nas urnas. Para ele, é preciso “sacudir a coalizão de forças que, atualmente, está pendendo para a direita”.
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A i
deia é unificar a esquerda, pois, separados, seremos liquidados”, alerta Palhares. “Não se trata de uma trincheira contra o governo, mas de um movimento que atue junto e de forma crítica a ele, contra a restauração do neoliberalismo”.
Segundo o prólogo de abertura da atividade, as forças de esquerda no Brasil são como “arquipélagos”, isolados uns dos outros. “Esses atores têm que convergir e conquistar espaços nas tomadas de decisões dos rumos do país”, assinala Palhares. “Precisamos criar uma hegemonia progressista, pois nossas vitórias políticas não se sustentarão sem a disputa de ideias”.
O Fórum 21 planeja uma agenda permanente de atividades para 2015, como debates e aulas públicas mensais que estimulem a reflexão e o diálogo entre os movimentos de esquerda e a população.
Regulação da mídia, uma tarefa inadiável
Enfrentar o tema da regulação da mídia, de acordo com os debatedores e participantes do Fórum 21, é uma missão imprescindível para barrar o avanço da direita e reverter o atrofiamento do processo de transformações que atravessa o país nos últimos 12 anos.
Presente no lançamento, o secretário de Cultura da Prefeitura de São Paulo Juca Ferreira, cotado para assumir o Ministério da Cultura no segundo mandato de Dilma Rousseff, avalia que os meios de comunicação são o principal instrumento do conservadorismo. “Precisamos fazer um balanço crítico e iniciar uma reconstrução programática, que supere nosso próprio desgaste”, defende, apontando que a dura missão é ainda mais espinhosa com o atual cenário midiático, concentrado e carente de regras democráticas.
Para Venício Lima, um dos maiores estudiosos do tema no Brasil, a luta pela regulação da mídia é, acima de tudo, um dever democrático: “Em primeiro lugar, trata-se de regular e cumprir o que já está na Constituição do país há 25 anos”, argumenta. “O que está lá, como por exemplo o direito de resposta, o Conselho de Comunicação Social e o artigo que faz restrições quanto a políticos serem donos de veículos de comunicação, é fruto de um duro processo [Lima foi assessor constituinte]”.
Ele ainda defende que o movimento faça uma dura cobrança ao governo em relação ao campo da mídia pública. “Qual a importância real que o governo dá a esse setor? No debate eleitoral, a TV Brasil foi preterida até mesmo por Dilma, quando na verdade deveria ser prestigiada na cobertura democrática do processo eleitoral”. A situação dos meios comunitários, principalmente as rádios, também foi lembrada pelo estudioso.
Por fim, Venício Lima apontou a questão da distribuição de publicidade oficial como uma “tragédia diária”, já que o governo injeta milhões de reais em meios que atuam como verdadeiros partidos de oposição, ao invés de reparti-los de forma diversificada. “O critério técnico, de distribuir dinheiro de acordo com os índices de audiência, apenas reafirma, na prática, o oligopólio midiático brasileiro”.
A discussão sobre a pauta da comunicação também contou com a participação de Bia Barbosa (Intervozes) e de João Feres Júnior (professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e idealizador do Manchetômetro).
Ao longo do debate, foi reiterada a necessidade de o movimento pressionar o governo para que o tema seja tratado como prioridade. A regulação econômica dos meios foi uma promessa de campanha feita por Dilma Rousseff, mas é considerado pouco por entidades que lutam pela democratização do setor.
Renata Mielli, do Barão de Itararé, destacou que nem toda regulação de conteúdo configura censura, como a direita propagandeia. “Cotas de produções regionais e nacionais, por exemplo, são pontos constitucionais que tratam de conteúdo e ficariam de fora de uma regulação meramente econômica”, salienta.
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