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Carta Maior, 09/12/2014
O pescoço do Brasil
Por Saul Leblon
Negros desarmados mortos por policiais brancos compõem um postal da identidade norte-americana.
São standards, como as freeways, a CIA, a coca-cola de uma sociedade plasmada pelo capitalismo mais exitoso do planeta.
Nela, o condutor de um carro velho recebe, por definição, o carimbo de ‘looser’ (perdedor). Pela mesma razão que um negro pobre é suspeito e passível de ação policial, até prova em contrário.
O negro Eric Garner, vendedor ambulante em Nova Iorque, asmático, 43 anos, não teve tempo, nem ar, na semana passada, para provar quem era.
Garner avisou ao policial que comprimia seu pescoço com uma chave de braço, que não estava conseguindo respirar.
Fez isso 11 vezes.
Até morrer.
Negros formam 13% da população norte-americana; representam mais de 40% da massa carcerária; algo como um milhão em um total de 2,5 milhões.
Prisões em massa e mortes, nada disso é novidade para eles nos EUA.
A novidade diante da rotina são os protestos que ela vem provocando exatamente quando a recuperação econômica faz de 2014 ‘o melhor ano em termos de criação de empregos desde 1999’, garante o Wall Street Journal, desta 2ª feira.
Por que raios, então, Garner vendia cigarros ilegalmente nas ruas, como suspeitou a batida policial que o levou à morte?
A resposta desnuda um traço constitutivo do ajuste capitalista conduzido pela lógica dos mercados e emite uma advertência em relação à chave de braço que alguns querem aplicar no pescoço na economia brasileira.
Seis anos após o colapso de 2008, a lucratividade dos bancos norte-americanos registra recordes sobre recordes, trimestre após o outro.
Em contrapartida, a subutilização da força de trabalho –indicador que soma emprego parcial e desistência de buscar vaga, como deve ter sido o caso de Garner - atinge assustadores 13%.
Na maior economia capitalista da terra, metade das vagas criadas no pós-crise é de tempo parcial, com salários depreciados.
Não é um aquecimento de motores.
É o padrão de uma economia desossada em suas vértebras produtivas, por obra da desregulação financeira do ciclo neoliberal iniciado nos anos 80, com Reagan.
A ideia de que um reposicionamento econômico dentro do capitalismo possa ser terceirizado ao mercado, como se fosse um freio de arrumação neutro, faz tanto sentido quanto dar uma chave-de pescoço em um asmático e ficar surpreso com a sua morte.
O fato de os EUA terem um salário mínimo congelado há 15 anos, diz muito sobre a natureza dessa chave de pescoço econômica, que joga milhões de Garners para o submundo dos loosers.
A decepção de Obama ao constatar que a tão aguardada ‘recuperação’ pode acontecer associada a uma maior desigualdade e, portanto, sem revitalizar sua popularidade -como evidenciou a derrota nas eleições legislativas de novembro- ilustra a dificuldade de se atribuir ao mercado aquilo que ele não sabe fazer.
O conjunto sugere que a presidenta Dilma terá que analisar detidamente cada medida de aperto fiscal que lhe for apresentada pela nova equipe econômica.
O risco é o país perder a última linha de resistência diante de um mercado mundial que estrebucha: o dinamismo de sua demanda interna.
Os sinais de alarme desta 2ª feira justificam a prontidão.
As exportações chinesas cresceram a metade do esperado em novembro (4,7% contra 8%); o PIB do Japão caiu mais que previsto no 2º trimestre e a possante máquina germânica rasteja tendo registrado uma expansão de apenas 0,2% em outubro. Tudo isso explica que o barril de petróleo custe hoje 40% menos e que as cotações das commodities agrícolas exportadas pelo Brasil valham, em média, 13% abaixo do patamar de 2013.
A sabedoria dos especialistas é insuficiente para conduzir um país a salvo por esse desfiladeiro emparedado entre a queda das cotações das commodities, de um lado, e a sinalização de alta dos juros, do outro.
Em ciclos anteriores, sempre que essa sobreposição se deu, como em 1810-1930 e 1980, América Latina viveu solavancos políticos fortes.
Foi o que aconteceu no caso do Brasil, com a declaração da Independência, a ascensão de Vargas e a derrubada da ditadura.
O cerco conservador agora reflete o faro da matilha para um novo ciclo de vulnerabilidade da presa.
O caminho das pedras terá que ser modulado e ordenado pela mobilização e o engajamento dos principais interessados na preservação do rumo mais equitativo seguido até aqui: os sindicatos, os movimentos sociais e os partidos do campo progressista.
Em nenhum lugar do mundo há notícia de que a democracia social tenha se consolidado sem um sujeito histórico correspondente.
Obama não conseguiria ser um ‘Roosevelt’ da crise atual, nem que quisesse.
Faltam-lhe as bases organizadas que o sindicalismo combativo dos anos 30/40 propiciou ao democrata que comandou os EUA entre 1933 e 1945.
O Brasil tem forças sociais estruturadas.
Suas centrais sindicais que, finalmente, se reuniram com a Presidenta Dima, nesta 2ª feira, preservam certa capilaridade.
A inteligência progressista dispõem de propostas críveis e sensatas.
Nos últimos doze anos, o país foi dotado de sólidas políticas sociais, ademais de estruturas de Estado para ampliá-las.
O conjunto permite à Presidenta Dilma negociar rumos e metas do desenvolvimento com a sociedade, preservando-se o mercado de massa, mesmo em um intermezzo de reacomodação fiscal.
Há um requisito, porém: o timming das iniciativas de governo – de qualquer governo – faz enorme diferença.
Uma crise tem um tempo certo para ser derrotada, ou derrotará o governo, a produção, o emprego e os atores que vacilarem diante dela.
Nisso, sobretudo nisso, Franklin Roosevelt revelou-se o estadista cuja habilidade ainda tem lições a oferecer aos seus contemporâneos.
Em apenas uma semana após a sua posse, em 1933, ele tomou algumas decisões que não exorcizaram todos os demônios, mas foram afrontá-los em seu próprio campo.
Os tempos são outros; as agendas precisam ser renovadas, mas nada justifica ofuscar o componente de coragem do passado para dissimular a tibieza no presente.
Muitos relativizam o alcance das medidas anti-cíclicas tomadas por Roosevelt nos 11 anos que antecederam o ingresso dos EUA na guerra de 1944, quando seu potencial produtivo, finalmente, foi acionado a plena carga.
Mas poucos se lembram de perguntar o que teria acontecido com o presidente democrata, reeleito quatro vezes (de 1933 a 1945), se a sua autoridade tivesse fraquejada no primeiro mandato, na primeira semana ou no primeiro dia de março.
É sobre isso que os chefes de Estado de hoje deveriam refletir em vez de adiarem decisões à espera de um auto-ajuste dos mercados.
A calibragem fina entre a barbárie e a emancipação de uma sociedade não está prevista nos manuais de economia.
Esse apanágio pertence à democracia.
Se não dilatar o espaço da política na condução da economia no seu segundo mandato, a presidenta Dilma corre o risco de acordar um dia com uma chave de braço atada ao pescoço do país.
E perder o que já tem.
Sem obter o que a ortodoxia lhe promete entregar.
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