sexta-feira, 25 de novembro de 2011

O ditador e sua perversão





Montbläat 412 
Rio de Janeiro, 25 de novembro de 2011

A ditadura do “deus” Mercado

Fritz Utzeri

A crise econômica atual, uma recidiva da crise de 2008, vem
evidenciando, de maneira cada vez mais clara, práticas e realidades que ferem frontalmente a democracia. Na verdade hoje os países e seus
povos vivem sujeitos a regras ditadas pelo “deus” Mercado e seus
sacerdotes, os organismos internacionais como o FMI, a serviço dos investidores (leia-se em grande parte especuladores). Essas entidades adquiriram características quase divinas e que determinam o destino de todos nós e sobre as quais pouco ou nada podemos dizer ou influir.
A crise norte americana de 2008, motivada pela irresponsabilidade dos bancos, que causou a explosão de uma gigantesca bolha imobiliária levou – mais um a vez – o governo a socializar os prejuízos do setor financeiro e entregar a conta àqueles que perderam casa e emprego e viram reduzidas suas parcas conquistas sociais.
Mais uma vez prevaleceu o consenso de Washington, apesar do fracasso retumbante de suas práticas que rezam que o “deus” mercado tudo resolverá desde que os governos se apequenem cada vez mais e deixem os investidores soltos e em paz, quando tudo será melhor.
Com a
mediocridade dos políticos atuais e a esquerda inteiramente sem rumo esse pensamento não teve muita dificuldade para impor-se.
O governo Obama – uma esperança de renovação e inovação cristalizada no “Yes we can” (sim, nos podemos) – não teve a coragem de enquadrar banqueiros e especuladores e nem sequer de regulamentar a operação dessas instituições. Cevados pelo Erário, os bancos norte-americanos se salvaram e nada foi feito no sentido de policiar suas práticas. Hoje, a farra continua e suas consequências no segmento mais desfavorecido da sociedade começam a ser contestadas por movimentos como Ocupemos Wall Street, na onda de várias outras manifestações no mundo, como os indignados espanhóis, gregos,  portugueses e italianos e até a chamada “primavera árabe”.
Tais movimentos expressam o inconformismo com a situação e um desencanto crescente com as praticas políticas, mas a mera indignação sem por sua vez uma direção e alternativa políticas (ou com alternativas ocultas como o islamismo militante nos países árabes) não aponta para uma saída e o clima, pelo menos hoje na Europa, é muito semelhante ao verificado no século passado, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, quando havia igualmente um descredito crescente com a democracia levando ao estabelecimento do extremismo da direita ao nazi-fascismo e ao conflito.
Isso não significa que estejamos às vésperas de uma guerra, mas a acentuação do recuo da democracia deveria preocupar e as práticas adotadas pela Comunidade Europeia podem levar à sua destruição e à
morte do euro.
Os eleitores, incapazes de distinguir os partidos por suas práticas, com socialistas adotando políticas de imposição do pensamento único e destruição progressiva do estado de bem estar social, tem optado, como acabamos de ver na Espanha, por sufragar a direita, mesmo sabendo que isso representará apenas no aprofundamento das políticas de exclusão e favorecimento do status quo.
Mas pelo menos nessas eleições os eleitores resolveram comprar um produto que não mente na etiqueta. O mesmo poderá acontecer nos EUA, onde a reeleição de Obama está longe de garantida e certamente sua derrota aconteceria facilmente, não fosse a extrema fraqueza e extremismo dos postulantes republicanos.
Voltando à Europa a expansão acelerada da comunidade e a adoção do euro pôs num mesmo balaio economias extremamente dispares e tirou dos países, principalmente os da periferia, um elemento fundamental de soberania que é a emissão e controle da própria moeda.
Para esses países a
princípio pareceu que chovia maná e a Irlanda e Espanha deram um salto na modernidade, para não falar de Portugal e Grécia e todos se viram subitamente na ilusão de que a bonança havia chegado para ficar. E a irresponsabilidade imperou, bolhas imobiliárias voltaram a estourar na Irlanda e Espanha, as contas públicas foram para o brejo e até falsificação de dados disfarçando as contas públicas foi feita, como ocorreu na Grécia,
A Grécia gastou bem mais do que podia na última década, pedindo empréstimos pesados e deixando sua economia refém da crescente dívida e maquilando o descalabro com a supervisão criminosa da Goldman Sachs, um dos grandes causadores (e beneficiários) da crise. O país tem hoje uma dívida equivalente a 142% do seu Produto Interno Bruto (PIB), a maior relação entre os países da zona do euro. O volume de dívida supera, em muito, o limite de 60% do PIB estabelecido pelo pacto de estabilidade assinado pelo país para fazer parte do euro.
O desemprego, principalmente dos jovens cresceu em todo o continente. Na Espanha metade deles não encontra trabalho e as políticas recessivas se impõem até a economias mais fortes, como a italiana (a França está na alça de mira) resultando num afastamento maior da democracia. A solução dos emissários do “deus” são governos liderados por tecnocratas como Mario Monti, na Itália e Lucas Papademos, na Grécia, governos que não nasceram da vontade popular.
Na Grécia o ex-primeiro ministro, George Papandreu foi defenestrado quando teve a imprudência de sugerir um referendo para que o povo decidisse o que fazer. Papandreu acreditava ser possível a aprovação das medidas de austeridade, mas pesquisas apontavam que 60% dos gregos se opunham a isso.
Na Itália, pela primeira vez desde o final da Segunda Guerra um primeiro ministro foi imposto sem eleições, para tomar decisões que afetarão profundamente a vida dos italianos. O mais preocupante é que esses tecnocratas se originam dos setores que desencadearam e que lucram com a crise.
O princípio democrático foi invertido até em países onde houve eleições já que os novos governos assumem amordaçados e amarrados por planos já prontos, definidos. Boa parte da Europa não tem mais governos, mas verdadeiros gaulaiters (os governadores dos territórios ocupados pelos nazistas) a serviço dos desígnios franco alemães (cada vez mais alemães diga-se).
O temor dos bancos e do “deus” mercado é uma sucessão de calotes (não custa lembrar que Argentina e Rússia já o deram e o mundo não acabou) que desestabilizaria o euro (para alegria dos norte-americanos) e hoje já se fala em dividir a Europa em duas categorias ou divisões como nos campeonatos de futebol e em retirada de alguns países da zona do Euro.
Esse descompasso entre democracia e economia é geral, aqui mesmo no Brasil a política enfrenta uma descrença geral e se transformou em assunto que em grande parte deveria ser publicado nas paginas policiais dos jornais.
Votamos para eleger deputados, senadores, governadores, prefeitos e presidente, mas quando se trata de tomar decisões que afetam muito mais a nossa vida de que 90% das coisas que são discutidas em palácios e assembleias, o povo não é consultado e muito menos informado de coisas que deveriam interessá-lo e muito. A economia parece ser algo muito complexo e difícil para ser entendida e avaliada. Quem controla ou regula o sistema?

A Grande Perversão


Por Leonardo Boff


Para resolver a crise econômico-financeira da Grécia e da Itália foi constituído, por exigência do Banco Central Europeu, um governo só de técnicos sem a presença de qualquer político. Partiu-se da ilusão de que se trata de um problema econômico que deve ser resolvido economicamente.
Quem só entende de economia acaba não entendendo sequer a economia. A crise não é de economia mal gerida, mas de ética e de humanidade. Estas têm a ver com a política. Por isso a primeira lição de um marxismo raso é entender que a economia não é parte da matemática e da estatística, mas um capítulo da política. Grande parte da obra de Marx é dedicada à desmontagem da economia política do capital.
Quando na Inglaterra
ocorreu uma crise semelhante à atual e se criou um governo de técnicos Marx fez com ironia e deboche duras criticas, pois previa um total fracasso como efetivamente ocorreu. Não se pode usar o veneno que criou a crise como remédio para curar a crise. Chamaram para chefiar os respectivos governos da Grécia e da Itália gente que pertencia aos altos escalões dos bancos. Foram os bancos e as bolsas que provocaram a presente crise que quase afundou todo o sistema econômico. Esses senhores são como talibãs fundamentalistas: acreditam de boa fé nos dogmas do mercado livre e no jogo das bolsas. Em que lugar do universo se proclama o ideal do greed is good, em português, a cobiça é coisa boa? Como fazer de um vício (e digamos logo, de um pecado) uma
virtude?

Estes estão sentados em Wall Street de Nova York e na City de Londres. Não são raposas que guardam as galinhas, mas as devoram. Com suas manipulações transferiram grande fortunas para poucas mãos. E quando estourou a crise foram socorridos com bilhões de dólares tirados dos trabalhadores e dos pensionistas. Barack Obama se mostrou fraco, inclinando-se mais a eles que à sociedade civil. Com os dinheiros recebidos continuaram a farra já que a prometida regulação dos mercados ficou letra morta. Milhões de pessoas vivem no desemprego e na precarização, especialmente jovens que estão enchendo as praças, indignados, contra a cobiça, a desigualdade social e a crueldade do capital.
Gente que tem a cabeça formada pelo catecismo do pensamento único neoliberal vai tirar a Grécia e a Itália do atoleiro? O que está ocorrendo é a sacrificação de toda uma sociedade no altar dos bancos e do sistema financeiro. Já que a maioria dos economistas do establishment não pensa (nem precisam) vamos tentar entender a crise à luz de dois pensadores que no mesmo ano, 1944, nos EUA nos deram uma chave esclarecedora. O primeiro foi um filósofo e economista húngaro-canadense Karl Polanyi com sua clássica obra A Grande Transformação. Em que consiste? Consiste na ditadura da economia. Após a Segunda Guerra Mundial que ajudou a superar a grande Depressão de 1929, o capitalismo deu um golpe de mestre: anulou a política, mandou ao exílio a ética e impôs a ditadura da economia.
A partir de agora não teremos como sempre houve uma sociedade com mercado, mas uma sociedade somente de mercado. O econômico estrutura tudo e faz de tudo mercadoria sob a regência de uma cruel concorrência e de uma deslavada ganância. Esta transformação dilacerou os laços sociais e aprofundou o fosso entre ricos e pobres dentro de cada pais e no nível
internacional.
O outro nome é de um filósofo da escola de Frankfurt, exilado nos EUA, Max Horkheimer que escreveu A Eclipse da Razão (por português de 1976). Ai se dão as razões para a Grande Transformação de Polanyi que consistem fundamentalmente nisso: a razão já não se orienta mais pela busca da verdade e pelo sentido das coisas, mas foi sequestrada pelo processo produtivo e rebaixada a uma função instrumental “transformada num simples mecanismo enfadonho de registrar fatos”. Lamenta que “justiça, igualdade, felicidade, tolerância, por séculos julgadas inerentes à razão, perderam as suas raízes intelectuais”.
Quando a sociedade eclipsa a razão, fica cega, perde o sentido de estar juntos e se vê atolada no pântano dos interesses individuais ou corporativos. É o que temos visto na atual crise. Os prêmios Nobel de
economia, mas humanistas, Paul Krugman e Joseph Stiglitz repetidamente escreveram que os players de Wall Street deveriam estar na cadeia como ladrões e bandidos.
Agora na Grécia e na Itália a Grande Transformação ganhou outro nome: se chama a Grande Perversão
.

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