terça-feira, 1 de novembro de 2011

O câncer de Lula e o preconceito

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1 de novembro de 2011

O câncer de Lula e o preconceito


Por Elizângela Araújo

Muitos conhecidos e até amigos meus têm compartilhado o que parece ser uma campanha cômica – porém sem graça – pelo tratamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Sistema Único de Sáude (SUS). Obviamente, têm sido contra-atacados por aqueles que têm grande apreço e identificação ideológica ou partidária com o ex-presidente. Como a maioria dos brasileiros já deve saber, Lula teve câncer na laringe diagnosticado no último sábado (29/10) e começou nesta segunda-feira (31/10) seu tratamento quimioterápico no hospital Sírio-Libanês, em São Paulo-SP. A brincadeira tem um quê de estupidez e oportunismo e acirra novamente os ânimos do que parece ser dois grupos distintos de pessoas: os pró-Lula e os anti-Lula.
Eu, que até o momento me coloco fora desse terreno de paixões exacerbadas, de repente me vi tendo que pensar algo a respeito da cizânia. A primeira conjectura que me surgiu foi sobre o José Alencar, ex-vice-presidente morto em razão de um câncer no dia 29 de março deste ano, depois de lutar por mais de dez anos contra a doença, não ter sido alvo de uma “campanha” semelhante. Ou foi?
De acordo com a agência de notícias IDGNow, especializada em tecnologia, houve 120 mil compartilhamentos da foto do ex-presidente com a mensagem “Lula, faça o tramento pelo SUS”, no Facebook, desde sábado à tarde até esta segunda. Ainda não há números sobre a repercussão no Twitter. Se o número é pequeno diante do total de usuários – 31 milhões de brasileiros utilizam o Facebook, segundo pesquisa do Ibope realizada em agosto – não deixa de assustar pelo nível dos comentários.
Outros políticos brasileiros enfrentaram a mesma doença – alguns morreram e outros a superaram – sem que houvesse semelhante “campanha”. A presidenta Dilma Rousseff, por exemplo, também tratou-se no Sírio-Libanês. Mário Covas, morto em 2001 depois de perder a luta contra um câncer na bexiga, também não foi alvo de semelhante galhofa. Roseana Sarney, cujo sobrenome dispensa maiores apresentações, também foi vítima de câncer em 1998 (pulmão) e em 2002 (mamas), assim como seu pai, que enfrentou a doença, localizada na próstata, entre 1985 e 1990.
Paulo Maluf, que também dispensa mais detalhes de sua biografia, também foi acometido pela doença em 1997, quando era governador de São Paulo e candidato à Presidência da República. Enfim, há outros inúmeros casos de políticos menos ilustres que tiveram câncer e comoveram mais ou menos brasileiros. No entanto, em nenhum desses casos houve tamanha falta de sensibilidade e oportunismo como no caso do ex-presidente-metalúrgico.
E fico me perguntando por quais razões as pessoas acham jocoso ou mesmo inteligente montar uma “campanha” fajuta a essa altura do campeonato, depois de terem se comovido tanto com a morte do empresário Steve Jobs, morto no dia 5 de outubro também vítima de câncer. Não tenho nenhuma intenção de comparar biografias, malfeitos ou benfeitos de todos que citei aqui, mas convocá-los para expôr minha curiosidade sobre a brincadeira de mau gosto que pede ao ex-presidente que se trate no SUS, porque como dizem seus admiradores, não se trata de uma campanha pelo fortalecimento do sistema, mas de uma campanha anti-Lula. E se tantas pessoas passam a reproduzir uma brincadeira inconsequente como essa sem se importar de tripudiar de uma pessoa que acaba de receber um diagnóstico inquietante como esse, seja quem for, é sinal de que estamos consolidando uma sociedade com valores bem equivocados.
Andaram relembrando, por exemplo, que o Lula declarou, ainda em 2006, que o SUS estaria à beira da perfeição. Assim como ele, porém, todos os governantes deixam o poder público gabando-se de terem deixado evoluções nos serviços públicos. Cá com meus botões, acho que a declaração foi, certamente, infeliz, mas nem por isso vou fazer coro com os que agora tentam achincalhar o ex-presidente num momento em que ser humano nenhum merece tal tratamento.
No fim das contas, acho que todos devem ter o direito de dizer o que querem, desde que também aceitem a contrapartida de ouvir o que não querem. E acho que, no fim, toda essa bobagem evidencia dois grandes grupos que se negam ao amadurecimento político. Os que utilizam a paixão por Lula para desqualificar a indignação do demais pelo sucateamento do SUS, e os que se valem da mesma moeda para tripudiar de uma pessoa acometida com câncer.
Se queremos mesmo a melhoria do nosso sistema público de saúde, por favor, iniciemos uma campanha séria e apartidária pelo fim da corrupção em todos os níveis do poder público, contra a terceirização de serviços essenciais – por meio dos quais muitas secretarias municipais de saúde desviam dinheiro junto com médicos e empresários inescrupulosos do ramo, e pela fiscalização rigorosa da aplicação dos recursos públicos destinados ao setor. Sem esquecer, obviamente, que como população que mais consome agrotóxicos no planeta estamos cada vez mais sujeitos a contrair câncer e outras doenças somente por ingerir alimentos contaminados (embora tenha lido jornalista experiente dizer que Lula contraiu câncer por causa “do fumo e da cachaça”).
Não deixemos que o pior câncer de todos, o do preconceito e da falta de informação, corroa nosso humanismo.

Elizângela Araújo é jornalista.

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