Jornal GGN, 03/06/16
Xadrez do desmanche nacional
Por Luis Nassif
Se
algum historiador ou cientista político quiser um estudo de caso porque
países seguidamente perdem as janelas de oportunidade abertas pela
história, debruce-se sobre o Brasil.
Durante
um breve período de tempo o país conquistou avanços inéditos. Avançou
nas formas de participação popular nas políticas públicas, definiu uma
nova estratégia diplomática, inovou em políticas sociais, industriais,
na diplomacia comercial.
No
período Dilma foram abandonadas várias dessas iniciativas. Faltava à
presidente dimensão política para entender o alcance tanto da diplomacia
quanto das formas de participação.
Deixou de lado, mas não desmontou as políticas recebidas. Esta é a diferença central em relação ao interino Michel Temer.
Mesmo sendo interino, o governo Temer está promovendo o maior desmanche de políticas públicas da história. É
uma nuvem de gafanhotos avançando sobre qualquer grama à vista, em uma
demonstração tão ostensiva de despreparo e prepotência que lembra as
mais atrasadas republiquetas latino-americanas.
A
montagem de políticas públicas é trabalho de ourivesaria. Envolve
segmentos sociais e econômicos, definição de práticas, consolidação de
valores, de conceitos, abertura de canais de participação. Foi graças a
esse trabalho pertinaz que o país manteve a continuidade nas políticas
de saúde, com a apropriação da pasta por sanitaristas a partir da
Constituinte; que avançou na educação, na diplomacia, graças à
continuidade de sucessivos governos.
De repente, entra um novo governo que se aboleta no poder e não dispõe de quadros minimamente preparados sequer para entender os pontos centrais de cada área.
Nem o Ministério do governo Sarney conseguiu acumular tal dose de ignorância bruta. Ministros
da Educação sem um pingo de conhecimento sobre a área; chanceler
totalmente jejuno em questões diplomáticas; Ministro da Casa Civil
empenhado em destruir qualquer organização que tenha o cheiro do governo
anterior.
Desmanche na Educação
O Fórum Nacional de Educação (FNE) foi um enorme avanço em políticas públicas.
Junta representantes de todos os setores, de sindicatos de professores a
ONGs do setor privado. Logrou uma mobilização ampla na Conferência
Nacional de Educação de 2010, mais de 800 mil pessoas definindo um
conjunto de metas em todas as áreas da educação.
Mal chegou ao cargo, o novo Ministro da Educação Mendonça Filho
mandou demitir todos os funcionários da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) e oito da
Secretaria Executiva.
Nem se preocupou em saber para quê servia a Secretaria, qual a relevância do FNE. De uma penada, desmontou uma estrutura central para os avanços da educação brasileira.
Fez mais. Hoje em dia há
um trabalho grandioso de educação inclusiva, que colocou na rede
pública cerca de 800 mil alunos com alguma forma de deficiência. Mendonça acaba de demitir todo o departamento que cuidava disso e anunciar a volta das crianças para o redil das APAEs (Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais),
cuja Federação se transformou em um enorme sorvedouro de dinheiro
público e cuja pedagogia (com exceção de poucas APAEs, como a de São
Paulo) foi condenada nos principais fóruns pedagógicos internacionais.
Na reunião com Eduardo Barboza, o líder da Federação, Mendonça assegurou que "agora o MEC voltará a ser de vocês". Ao longo da última década, a
Federação das APAES tornou-se o maior sorvedouro de verbas públicas não
fiscalizadas, praticando a antipedagógico do confinamento de crianças
com deficiência.
Desmanche na diplomacia
Levou
anos para que a diplomacia brasileira assumisse um protagonismo maior
no cenário global. Foram décadas de trabalho profícuo, de montagem de
alianças no cipoal sutil e sofisticado da diplomacia internacional, onde
entram as ligações com os países vizinhos, as relações com os Estados
Unidos, as estratégias para consolidar o papel do Brasil no mundo, nas
instituições multilaterais, e a maneira a aproveitar da melhor forma
possível esses avanços diplomáticos.
Nos
últimos anos, o país logrou colocar um representante na OMC
(Organização Mundial do Comércio), outro na UNCTAD, na crise de 2008
liderou blocos relevantes, o G20, os países exportadores agrícolas, os
BRICs. Enfim, ganhou uma dimensão e um protagonismo que não se via desde
a Operação Panamericana, no governo JK.
Aí José Serra
assume a chancelaria. Criticava-se muito em Dilma o voluntarismo, a
maneira de interferir e travar temas sobre os quais não tinha nenhum
conhecimento mais aprofundado. Perto de Serra, Dilma é um poço de racionalidade e flexibilidade.
Para se mostrar decidido, Serra toma qualquer decisão que passe à sua frente, mesmo sem ter a menor ideia sobre as consequências. Faltam-lhe conhecimentos básicos sobre diplomacia e, menos ainda, sobre estratégias diplomáticas.
Passou
a tocar diplomacia de ouvido, repetindo bordões sobre acordos
bilaterais, sem entender que a própria posição do país nos organismos
multilaterais fortaleceria sua posição nas negociações bilaterais.
Bastou o diretor-geral da OMC, Roberto Azevedo,
chamar sua atenção para a possibilidade de atuar nas duas frentes, para
Serra pegar a borduna e bater na mesa, como um punk de periferia. Na
mini reunião ministerial da OMC, acusou a instituição de enfrentar o
imobilismo, falhar em derrubar os subsídios e barreiras sanitárias e
fitossanitárias. E sinalizou que o Brasil poderia “tomar outros
caminhos”.
Serra
regurgitava impropérios contra a OMC e os jornais divulgavam o fato da
China ter-se transformado no maior comprador de carne bovina brasileira.
Motivo, o extenso trabalho de derrubada das barreiras fitossanitárias
empreendido pelo governo Dilma, através da Ministra da Agricultura Kátia
Abreu. E não apenas na China, mas em todo o mundo.
Enquanto Serra
submetia os demais ministros presentes ao encontro a um esforço ingente
para disfarçar o choque com tal demonstração de ignorância, nos
bastidores seus assessores diziam para os jornalistas não levar a sério a
bazófia: não haveria hipótese de desligamento da OMC. Vai discutir
subsídio agrícola onde? Na Mooca? No Ceasa?
Não apenas isso. Não
conseguiu entender a importância da África para o país, o espaço que se
abre para o agronegócio e para as construtoras brasileiras.
Desmanche na EBC
A maneira como o Ministro-Chefe da Casa Civil Eliseu Padilha investiu contra a EBC é a demonstração cabal de que a lei... ora a lei.
Graças ao Ministro Dias Toffoli, a lei foi restabelecida. E é surpreendente a maneira como foi recebido o voto de Toffoli. Em qualquer circunstância, seria mais do que óbvio, visto que o interino recorreu a uma Medida Provisória para intervir em uma fundação cuja autonomia é garantida por lei.
Mas os tempos são tão bicudos, é tão precário o conceito de segurança jurídica, que a decisão de Toffoli configurou-se um ato de coragem e a primeira prova da independência do Supremo em relação ao governo interino.
No
final do dia, corriam os boatos que, em represália, Padilha faria Temer
encaminhar um projeto de lei propondo a extinção da EBC.
A segurança jurídica
A desenvoltura com que o governo interino se lançou na missão de destruir tudo o que lembrasse o governo de fato é a demonstração mais cabal da insegurança jurídica do país e da anomia absoluta do Supremo.
O novo normal jurídico criou um arremedo de civilização, um retrocesso como não se imaginaria alguns anos atrás.
1. Tira-se uma presidente da República por questões orçamentárias, atropelando tudo o que é previsto na Constituição.
2. Um
interino assume e desmonta toda uma estrutura pública sem ao menos se
ter a certeza de que permanecerá além dos 180 dias do interinato.
3. Procuradores
e delegados transformam os inquéritos em julgamentos políticos,
selecionando as vítimas e vazando informações antes mesmo que a defesa
dos acusados seja comunicada.
4. Um
Ministro do Supremo – Gilmar Mendes – manifesta diuturnamente suas
preferências políticas, decide de acordo com suas convicções políticas,
sem ao menos manter a congruência de seus próprios votos, e nada ocorre.
Não é declarado suspeito.
Não tem como evitar um profundo sentimento de vergonha quando se observa a que foram reduzidas as instituições brasileiras.
Elites brasileiras exploram crise para impor algo que não conseguiriam com uma democracia real
Por Naomi Klein
O livro 'A Doutrina do Choque', publicado em 2007, marcou uma geração ao apresentar como, ao contrário do que se afirmava, a implementação do neoliberalismo tinha poucas relações com o avanço da democracia liberal pelo mundo. A jornalista canadense Naomi Klein, autora da obra, afirmava:
as visões da Escola de Chicago foram primeiramente postas em prática em
regimes autoritários, justamente porque contrariam as necessidades da
maior parte da população.
As ideias neoliberais, para Klein, se aproveitariam de momentos de crise para avançar. Ela concedeu uma entrevista exclusiva para o Brasil de Fato na qual analisou o momento vivido por nosso país à luz dos debates de seu livro.
Segundo ela, o
programa defendido pelo governo interino de Michel Temer teria poucas
condições políticas de ser implementado através de eleições. “Não há
dúvida de que a democracia brasileira está sob ataque. É um tipo diferente de golpe”, afirma. “Eles
estão explorando uma situação de caos, uma falta de democracia, para
impor algo que eles não conseguiriam sem crise e com uma democracia real”, completa.
Confira a entrevista a seguir.
Brasil
de Fato - Em seu livro, você denuncia o que considera a falsa relação
entre neoliberalismo e democracia política. As ditaduras militares
latino-americanas ocupam um papel importante no seu argumento. Você
poderia explicar isso para nós?
Naomi Klein - O argumento que eu desenvolvo neste livro é o de que nos contaram um conto de fadas sobre como esta forma extrema do capitalismo colonizou o mundo. Essa versão fantasiosa é a de que ela se espalhou pacificamente através das democracias, que a teriam escolhido. Entretanto, se olharmos para a história dos primeiros lugares onde o neoliberalismo foi imposto, ele foi imposto exatamente no oposto [do que nos é dito]: foi necessária uma derrubada da democracia para que ele se desenvolvesse.
As raízes do pensamento neoliberal estão na Universidade de Chicago,
que recebeu muito apoio dos industriais norte-americanos, que estavam
bastante preocupados com uma virada à esquerda nos EUA. Ela recebeu
apoio, por exemplo, do presidente do Citibank. Havia muita preocupação
de que, nos anos 1960, o espectro ideológico estivesse se movendo muito à
esquerda.
O
que é muito interessante é que quando houve um presidente
[norte-americano] de direita no final dos anos 1960 e início dos 1970, Richard Nixon, apesar de ele ter contratado conselheiros que vieram da Universidade de Chicago, eles
não conseguiram impor essas mesmas ideias neoliberais extremas em uma
democracia, porque essas ideias eram muito impopulares. É famoso o fato de que Nixon foi contra os conselhos dados pelos economistas da Escola de Chicago, como Milton Friedman.
Ele introduziu uma série de regulações ambientais e medidas de controle
de salários e preços, porque a inflação estava muito alta. Friedman disse que "Richard Nixon foi o presidente mais socialista dos EUA" [risos]. O que é importante é que enquanto este projeto falhou nos EUA naquele momento, esses mesmos economistas introduziram as ideias neoliberais na América Latina durante a década de 1970, mas apenas após a realização de golpes de Estado.
O exemplo mais famoso é o Chile: após a queda do [presidente Salvador] Allende, quando os militares fizeram uma parceria com os economistas da Escola de Chicago, tornando o país um laboratório para essas ideias. Friedman sempre afirmou que a implementação dessas ideias através da brutalidade não tinha relação com as ideias em si, mas pessoas como Orlando Letelier [diplomata chileno durante o governo Allende] diziam que eram dois lados da mesma moeda: nunca é possível introduzir, através da democracia, esse tipo de ideias em países com uma grande população pobre que se beneficia de políticas redistributivas.
O exemplo mais famoso é o Chile: após a queda do [presidente Salvador] Allende, quando os militares fizeram uma parceria com os economistas da Escola de Chicago, tornando o país um laboratório para essas ideias. Friedman sempre afirmou que a implementação dessas ideias através da brutalidade não tinha relação com as ideias em si, mas pessoas como Orlando Letelier [diplomata chileno durante o governo Allende] diziam que eram dois lados da mesma moeda: nunca é possível introduzir, através da democracia, esse tipo de ideias em países com uma grande população pobre que se beneficia de políticas redistributivas.
Você
demonstrava esperança sobre a resistência aos "choques", já que as
pessoas teriam aprendido com experiências anteriores. Como você vê, por
exemplo, o que aconteceu na Europa após 2008, quando a crise financeira
internacional estourou e políticas de austeridade foram implementadas
nos países do sul daquele continente?
Esta é
uma pergunta muita boa. Eu publiquei 'A Doutrina do Choque' em 2007,
pouco antes do colapso financeiro. Honestamente, eu diria que quando escrevi, eu era ingênua. No meu entendimento de como resistir a esta tática, eu acreditava que se as pessoas realmente entendessem a
tática – as crises e o caos sendo aproveitados pelas elites para
defender políticas inaceitáveis que as enriquecem e empobrecem a maioria
– e dissessem "não", a resistência funcionaria. Mas eu acho que o que
nós vemos com a experiência do que ocorreu na Grécia e na Espanha, e, na
verdade, em todo o sul da Europa, é que resistir somente dizendo "não" – "não queremos a austeridade" – é apenas o primeiro passo, não é suficiente.
O caso do Syriza
é exemplar: mesmo quando governos antineoliberais ganham, há maneiras
de cercá-los. É necessário haver um "não" forte à "doutrina do choque", mas, especialmente em momento de grandes crises econômicas, também deve haver um "sim" no qual acreditar: deve haver uma articulação simultânea das alternativas à "doutrina do choque", que devem ir além do status quo. Esses momentos de crises demandam uma reposta. As crises dizem que alguma coisa está errada com o sistema. Nós sabemos que a direita tem a tática do choque, mas também deve haver o que eu chamo de "choque popular": uma forma alternativa de responder às crises.
Essa é a razão pela qual eu escrevi 'This Changes Everything' ['Isto Muda Tudo', em tradução livre, sem edição em português], porque vivemos em um tempo de múltiplas crises, nas quais o sistema está falhando em várias dimensões. Está falhando economicamente, mas também ecologicamente. O
que eu acredito é que nós precisamos responder a essas múltiplas crises
desenvolvendo uma visão corajosa sobre como a próxima economia deva
ser, que possa nos tirar dessa situação de crises em série.
A
falha da centro-esquerda, em geral, foi a de não conseguir articular
uma alternativa audaciosa o suficiente não só ao neoliberalismo, mas à
economia extrativista de forma ampla.
Como
você analisa o impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff? Alguns
analistas brasileiros utilizam suas ideias para explicar o que está
ocorrendo. Você concorda com eles?
Eu
vi essas análises aplicando a doutrina do choque ao que está
acontecendo neste momento no Brasil, e eu penso que elas são
convincentes. O fato de que ela [Dilma] foi reeleita certamente frustou
as elites brasileiras. Também está
claro que há temores [dos políticos] em serem investigados nos
escândalos [de corrupção], o que também impulsionou este desejo [de ver
Dilma fora do governo]. Eu não sei qual é a grande motivação, mas há diversas coisas acontecendo: o desejo de se livrar das acusações de corrupção e o oportunismo de "nunca desperdiçar uma crise". Esta é uma frase de Rahm Emanuel, prefeito de Chicago. Ele
impôs uma série de políticas neoliberais que foram incrivelmente
destrutivas, particularmente para a educação e para a habitação.
O
PT, sob nenhum aspecto, foi perfeito. Entretanto, a redistribuição
levou a uma redução da desigualdade e se combateu a pobreza extrema.
Isso é significativo e criou as condições para a reeleição.
Eu
realmente não sei qual foi a força motriz, mas a reeleição de Dilma
certamente desmoralizou as elites brasileiras e as fez entender que não
tinham as condições [políticas] de impôr essas políticas lucrativas para
elas.
Responder a crises não é algo novo. O que eu argumento no livro "A Doutrina do Choque" é que o neoliberalismo
foi uma maneira oportunista de fazer isso, não para resolver as causas
das crises, mas apenas para impor políticas que enriquecem as elites e
causam mais crises. É isso que estamos vendo no Brasil.
O FMI [Fundo Monetário Internacional] acabou de publicar um relatório há alguns dias no qual diz que o neoliberalismo falhou completamente: não produziu crescimento, produziu desigualdade massiva e instabilidade. E
essas são precisamente as políticas que estão sendo impostas no Brasil
como uma suposta solução à crise econômica, ainda que saibamos que não
funciona. Isso não ocorre porque as elites brasileiras não leram o relatório do FMI, mas sim porque são políticas incrivelmente lucrativas para uma minoria da população. Eles
estão explorando uma situação de caos, uma falta de democracia, para
impor algo que eles não conseguiriam sem crise e com uma democracia
real.
Você concorda com a ideia de que se trata de um golpe?
Não há dúvida de que a democracia brasileira está sob ataque. O combate à corrupção foi apenas um pretexto para se livrar da presidenta eleita democraticamente. É um tipo diferente de golpe. Não se trata de um golpe militar, com tanques nas ruas – e nós não devemos dizer que são a mesma coisa –, mas, efetivamente, há um profundo ataque à democracia acontecendo.
A “história oficial” do neoliberalismo aponta os governos Reagan [EUA] e Thatcher
[Reino Unido], em países tidos como democráticos, como a origem dessas
políticas. Em seu livro, porém, você cita como Thatcher combateu
os sindicatos. Até mesmo em democracias, o neoliberalismo é autoritário?
Devemos esperar a mesma situação no Brasil?
O
que eu argumento em "A Doutrina do Choque" é que Thatcher não foi capaz
de impôr a agenda neoliberal no Reino Unido no seu primeiro mandato.
Ela até escreveu uma carta a [Friedrich von] Hayek que eu cito no livro: em uma democracia, é impossível fazer o que foi feito no Chile. O que aconteceu é que a Guerra das Malvinas
[da Inglaterra contra a Argentina] estourou e ela explorou o sentimento
hipernacionalista e se reinventou como a "primeira-ministra para tempos
de guerra", tal como Churchill, e conseguiu ganhar sua reeleição, e então atacou os sindicatos.
Os sindicatos são sempre uma grande barreira à implementação da agenda neoliberal. Eu conto a história do que ocorreu na
Bolívia nos anos 1980, quando líderes sindicais eram sequestrados para
que não pudessem se organizar, enquanto o choque neoliberal era imposto.
Obviamente, haverá algum tipo de estratégia para desmobilizar. Mas eu acredito que, no Brasil, o jogo ainda não terminou. As histórias estão mudando a todo momento,
as pessoas estão fazendo exatamente o que elas deveriam fazer,
resistindo nas ruas. Os vazamentos das conversas revelando a trama antes
do golpe continuam a criar uma crise [política]. Isso precisa ser
divulgado fora do Brasil, colocando pressão sobre governos estrangeiros.
Nós não precisamos aceitar a ideia de que tudo vai continuar como está.
Recentemente, tivemos um grande desastre ambiental no Brasil. Em sua última obra, "This Changes Everything", você coloca que o capitalismo não só aumentou as desigualdades, mas, hoje, também representa um risco para a própria existência da humanidade. Pode nos explicar isso?
O
que sabemos é que se continuarmos fazendo o que estamos fazendo,
alcançaremos um nível de aquecimento insustentável. Estamos em um
momento em que o capitalismo e a busca pelo crescimento perpétuo estão em guerra contra a vida na Terra.
Estamos chegando a um nível em que boa parte do planeta será inabitável
por humanos. Está acontecendo mais rápido do que o imaginado. O
branqueamento dos corais ano passado foi em uma escala sem precedentes. A
Índia e o Paquistão estão passando por ondas de calor de 51º C – algo
que os humanos não conseguem aguentar. E isso representa, na média
global, um aumento de apenas 1º C – e nós estamos caminhando para um
aumento de 6º C, a não ser que ações governamentais diferentes das que
estão sendo implementadas até agora sejam tomadas.
As
crises são sinais nos dizendo que há algo errado na forma como
organizamos nossa sociedade. As crises econômicas apontam para o fato de
que é algo sistêmico.
Quando nós pensamos nas décadas de 1920 e 1930, quando ocorreu a Grande
Depressão, a esquerda respondeu com alternativas muito fortes:
propostas sobre como reinventar aquele sistema. Quando nós enfrentamos
um choque climático – enchentes, incêndios, grandes tempestades – nós
devemos responder tentando mudar o sistema para que nós paremos de
enfrentar esses choques.
O Acordo de Paris [sobre o clima] não está próximo o suficiente das nossas necessidades, ele não tem poder vinculativo – é por isso que Donald Trump disse que cancelaria [a participação dos EUA no acordo].
Isso está ocorrendo porque temos
um sistema que nos encoraja a empreender uma busca pelo crescimento
infinito a qualquer preço. Nós temos economias extrativistas, e vemos
que governos de esquerda também falharam em confrontar essa lógica. Isso é verdade para a Venezuela, o Equador e para o Brasil também.
É por isso que digo que, nesses
momentos de crise, o sistema revela a si mesmo como irrealizável. Nós
devemos dizer "não" à doutrina do choque, mas também devemos ir além,
propor um "sim". Temos que elaborar uma visão
que vá até a raiz, tanto da instabilidade econômica, como da ecológica.
Nesse momento, esse é o verdadeiro desafio para as brasileiras e os
brasileiros. O que nós sabemos de outros países é que o
"não" sozinho não é suficiente, porque em crises econômicas, as pessoas
querem soluções. Elas não querem a doutrina do choque, então a pergunta
é: Qual a solução? Qual o plano?
Essa era minha próxima pergunta…
Eu
não posso responder para o contexto brasileiro, mas eu posso dizer que
no Canadá, onde vivo, estive envolvida em um processo com diversos
movimentos sociais que culminou no Manifesto do Salto [Leap Manifesto]. É uma antevisão da sociedade que queremos: como
passar de uma economia extrativista – que explora sem fim a Terra, os
corpos e a sociedade – para um modelo que respeite o planeta e que
garanta o respeito pelo outro. Nós elaboramos 15 demandas por políticas que nos fariam chegar lá.
Foi um processo maravilhoso de conectar movimentos
– ambientalistas; organizações contra austeridade, contra tratados de
livre comércio como o TTPP e a favor dos direitos indígenas.
Nossa
perspectiva se fundamentou na visão de mundo dos povos originários,
aprendendo com as primeiras nações do nosso país. Defendemos, por
exemplo, o uso de energia 100% renovável, mas queremos
também mudar a forma de propriedade: nem o controle das grandes
corporações, nem do grande poder estatal, queremos controle comunitário. Além disso, os primeiros beneficiários desse novo modelo devem ser as comunidades atingidas pela indústria suja. Assim, [no Canadá], em primeiro lugar os indígenas e, logo em seguida, os latinos e negros.
É o que chamamos de transição justa para a próxima economia. Nós
tentamos elaborar isso, talvez seja útil para as pessoas no Brasil
conhecerem e se inspirarem a realizar um processo semelhante: se juntar e
imaginar o desenho de uma economia pós-extrativista.
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