domingo, 5 de junho de 2016

Tempo de "avanços" - Sacco e Vanzetti, de 1920, explica 2016


http://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2016/06/1778333-tempo-de-avancos.shtml



Folha.com, 05/06/16



Tempo de avanços

 
 
Por Janio de Freitas



Michel Temer só anda em marcha a ré, nos recuos diários, mas outros avançam por ele. Avançam nos direitos alheios, avançam contra princípios e leis, avançam nos truques, malandragens e golpinhos em benefício próprio ou do seu grupo.

As notícias de que a dúvida assedia senadores pró-impeachment alarmaram parte da imprensa, que voltou ao ataque a Dilma, e levaram à criação de novos golpinhos pelos governistas. Encurtar o prazo do processo no Senado, como pretendido por Michel Temer, é um casuísmo indecente. E indicativo de que o governo prevê estar incapaz, em setembro, de se aguentar.
 
Na mesma linha é a atitude do relator Antonio Anastasia, comandado de Aécio Neves (PSDB-MG), que rejeitou a inclusão, nos elementos de defesa, das gravações e delação de Sérgio Machado. Seriam "estranhas ao objeto deste processo", diz ele. Trata-se de processo de impeachment e as falas gravadas tratam, em grande parte, do impeachment. Há toda a pertinência em figurarem na acusação ou na defesa. A recusa de Antonio Anastasia é uma arbitrariedade, pessoal e processual, e restringe o direito de defesa. Em linguagem mais à altura anã da atitude, é um golpe baixo.

"Eu acho" é o verbo e o tempo verbal mais apreciados pelos brasileiros. Serve para muito mais do que expor opinião. "Eu acho que tem que ser assim" é definitivo, não opina. E assim aparece em muitas das frases de Romero Jucá (PMDB-RR) que propõem "um pacto" para "delimitar" a Lava Jato "até aqui", e sustar no ponto em que está "a sangria" do meio político.

No Senado articula-se, porém, a limitação de "achar" ao sentido de opinião, para derrubar o pedido de Conselho de Ética para Jucá. Ambos também do PMDB, o presidente do Conselho, João Alberto Souza (MA), e Renan Calheiros (AL) são os patronos da nova lexicologia. Por "achar" que Nestor Cerveró devia fugir, uma fuga que não resultaria em "delimitação" da Lava Jato, Delcídio do Amaral foi cassado pela unanimidade do Conselho de Ética.

A propósito de Romero Jucá, a Lava Jato, rápida na prisão de Delcídio, não se distingue muito do Senado. Mas tem novidades próprias, em uma de suas especialidades. Condicionar o acordo de delação premiada de Marcelo Odebrecht à disposição do seu pai de "também falar" é uma forma brutal de coerção. O envolvimento de familiares é um método muito ao gosto das ditaduras, e foi prática comum na ditadura militar. Não é necessário invocar a Alemanha nazista, portanto, para atestar a indignidade desse método.
 
Por sua recusa, até há pouco, a admitir a delação premiada, Marcelo Odebrecht é mantido preso há um ano. Pode-se compreender que a Lava Jato queira ouvir também o ex-presidente Emílio, responsável pelos maiores saltos de crescimento e capacitação do grupo empresarial, hoje operando em muitos países. Mas, para ouvi-lo, pôr em suas mãos a liberdade ou a prisão do próprio filho, é moralmente inadmissível.

A outra novidade não está no método, já conhecido. Está em sua persistência, já com mais de dois anos. O possível acordo de delação premiada do presidente da OAS foi suspenso porque Léo Pinheiro nega qualquer papel de Lula na reforma do apartamento e nas obras do sítio. Estas, pedidas por Paulo Okamotto, e aquela decidida pela empreiteira, sem que houvesse venda. Ou Léo Pinheiro diz o esperado pelos interrogadores ou não haverá delação premiada, porque a Lava Jato não crê no que está dito. Se, contudo, há descrença, é uma razão a mais para investigar –o que a Lava Jato pouco faz ou nem faz– e não para coerção.
 
Como complemento desse ambiente que começa no Congresso e termina na arbitrariedade ou na cadeia, o ministro da Transparência, Torquato Jardim, diz esperar dos funcionários que não apoiem o governo de Temer "a dignidade de pedir suas exonerações". O ministro talvez não saiba que os servidores públicos federais são da União, não dos governos. Alheios à versão Temer: ame-o ou deixe o emprego.
O cafezinho, 04/06/2016


Sacco e Vanzetti, de 1920, explica o golpe de 2016



Por Rogerio Dultra dos Santos, colunista do Cafezinho.



Estreou no Rio nova temporada da peça Sacco e Vanzetti, uma espécie de “O Processo” de Kafka. Só que o enredo, além de real, descreve a fascistização da sociedade norte-americana e a repressão aos trabalhadores e aos seus direitos nos anos que antecedem a Segunda Guerra Mundial. Assisti a peça ontem, e ela traz um claríssimo paralelo com o golpe que prospera hoje no Brasil.

Logo após uma greve geral histórica, que fez mais de 4 milhões de trabalhadores cruzarem os braços em 1919, dois imigrantes anarquistas vindos da Itália são acusados injuntamente de roubo e assassinato e sofrem um longo processo judicial, com ampla cobertura dos meios de comunicação.

Testemunhas de defesa não foram ouvidas, acusados estavam em lugares diversos na hora do crime e testemunhas de acusação foram induzidas a dizer o que não viram. Em 1925 um homem assumiu ser o verdadeiro autor dos assassinatos, em vão. O julgamento, dada a manipulação da mídia, transformou-se num circo.

O processo de Sacco e Vanzetti ficou famoso no mundo todo pelo tamanho da mobilização dos trabalhadores, que tomou conta de vários países, numa onda de protestos que sensibilizou a comunidade internacional.

Nesta semana, quando o Senado Federal resolve passar por cima de procedimentos para acelerar o impeachment de Dilma Rousseff, não por acaso o Ex-Ministro  José Eduardo Cardozo resolveu citar a ignominiosa condenação dos operários italianos, como um exemplo do descalabro jurídico em curso.

A ele foram dados dez minutos “o dobro do tempo dos senadores”, fez questão de afirmar o Presidente da Comissão, o Senador Raimundo Lira (PMDB-PB), para que respondesse em bloco uma peça com 86 (oitenta e seis) questionamentos acerca de provas, apresentado pelo relator Antonio Anastasia (PSDB-MG).

Recusando-se a participar do que claramente virou um arremedo de julgamento, o Ex-Ministro da Justiça e advogado da Presidenta afastada levantou-se e foi embora, seguido pelos Senadores que fazem oposição ao que já é mundialmente reconhecido como golpe de Estado.

Se sabe que a estratégia dos golpistas é acelerar ao máximo o processamento do impeachment, adiantar a votação no Senado e “estancar a sangria” não somente da “Operação lava-jato”, mas do desastroso governo ilegítimo e interino de Michel Temer.

Com a provável queda do seu desastrado AGU, e com a também possível não indicação da Secretária de Políticas para as Mulheres por envolvimento em “articulação criminosa”, Temer já pode pedir música no Fantástico. Em três semanas, serão três ou quatro ministros depostos, sumidades que velozmente entrarão no esquecimento público.

A situação do governo interino e golpista agrava-se com uma inesperada e consistente mobilização popular, em todo o país e em vários lugares do mundo, exigindo o respeito às regras da democracia e a saída do Presidente de fachada.

Dada a atual conjuntura, assistir à peça Sacco e Vanzetti  é quase um soco no estômago.

O cenário que envolve a platéia a coloca praticamente dentro dos acontecimentos. A iluminação lúgubre, o ambiente esfumaçado, o figurino de época – que reproduz as vestes do operariado dos anos 1920 – e, principalmente, a dinâmica regular de troca de móveis, vão trazendo aos poucos a sensação da fatalidade burocrática do arremedo de justiça que passa diante dos olhos.

O tom de tragédia anunciada, o caráter explicitamente político de algo que deveria ser jurídico e técnico, a pressão da imprensa, o “clamor” da “opinião pública” exigindo mais punição, tudo lembra o que estamos vivenciando hoje.

Sacco e Vanzetti foram eletrocutados sete anos depois de iniciado o processo. Em 23 de agosto de 1927. Desde então, sua história rendeu livros, documentários, filmes e um pedido formal e tardio de desculpas do Governador de Massachusets, em 1977.

Sacco e Vanzetti, fica claro, foram mortos não pelos crimes que não cometeram, mas pelas suas convicções libertárias, por serem imigrantes, “aliens”, como até hoje somos chamados nos EUA. O conflito capital/trabalho ficou escancarado. O anticomunismo e o medo da revolução popular impulsionaram a quebra das regras do jogo pelo judiciário. Serem ambos, Sacco e Vanzetti, declaradamente  “anarquistas” foi o que bastou para a sua condenação.

Como a sentença dos italianos eletrocutados, o script para o impeachment de Dilma Rousseff no Senado Federal também já está escrito. Texto manietadamente fluido, onde regras novas são a todo momento sacadas da cartola – como a redução do prazo de defesa de 15 para 5 dias – a fim de evitar que Senadores indecisos mudem de posição e votem a favor da Presidenta.

O setor nuclear do Poder Judiciário, o STF, tem apoiado os procedimentos golpistas e dele não se espera muito, como não se esperava do juiz do caso Sacco e Vanzetti, desejoso da indicação para as Cortes Superiores. O STF fecha os olhos para a Justiça e reproduz a sua covardia histórica como no caso de Olga Benário e na chancela do Golpe de 1964.

Hoje, a face mais venal e partidarizada do Judiciário brasileiro não é nem o Juiz de Curitiba - o que quer prender Lula de qualquer jeito -, mas Gilmar Mendes, o Ministro que almoça, janta e se encontra nos fins de semana com possíveis réus de seus processos.


* A peça, que reestreou ontem no Armazém da Utopia, baseia-se no texto do argentino Mauricio Kartum, tem a direção de Luiz Fernando Lobo e é encenada pela Companhia Ensaio Aberto.

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