Jogo de Xadrez, Filosofia, Arte e
História
Por Fernando Moura Peixoto
Tênue rei, oblíquo
bispo, encarniçada
rainha, torre direita e
peão ladino
sobre o negro e branco
do caminho
buscam e livram sua
batalha armada.
Não sabem que a mão
assinalada
do jogador governa seu
destino,
não sabem que um rigor
adamantino
sujeita seu alvedrio e
sua jornada.
Jorge
Luis Borges (1899 – 1986)
O Xadrez,
“jogo sobre um tabuleiro de 64 casas, alternativamente brancas e pretas”, em
que cada participante dispõe de 16 peças, é um dos mais antigos jogos da
Humanidade. A enorme atração que ele exerce sobre a inteligência das pessoas
faz com que milhões de aficionados o pratiquem no mundo inteiro.
Considerado
o mais cerebral dos esportes, o xadrez tem a sua origem controvertida. Muitos o
atribuem a Salomão, Rei da Judeia,
no século 10 a.C.. Outros, aos mandarins da época de Confúcio, filósofo que viveu de 551 a 479 a.C., na China. Mas, certamente,
foi através da Pérsia e da Arábia que chegou à Espanha, alcançando as nações
europeias na Idade Média.
A palavra ‘xadrez’
vem do árabe ‘as-sitrang’,
derivado do persa ‘sitrang’ (‘satrang’), o qual remonta ao sânscrito ‘catur-anga’:
“que se compõe de quatro membros”. O primitivo xadrez da Índia
constituía-se de quatro tipos de peças: carros, cavaleiros, peões e elefantes,
de acordo com a formação do exército indiano. A expressão ‘xeque-mate’
(‘xaque-maate’) provém do persa ‘assah mat’, e quer dizer “o rei (‘sah’, xá) morreu”.
“A captura do Rei
adversário é o último e não o primeiro objetivo do jogo.”
Wilhelm Steinïtz (1836 – 1900)
A variante Lüneburg
O escritor
italiano Paolo
Maurensig (1943 -), no romance de suspense ‘A Variante Lüneburg’ (1993) conta uma lenda do xadrez: “(...) quando o jogo foi apresentado
pela primeira vez à corte, o sultão quis premiar o obscuro inventor
realizando-lhe um desejo. Este pediu uma recompensa aparentemente modesta:
receber todo cereal que pudesse resultar de uma conta simples: um grão na
primeira das 64 casas, dois grãos na segunda, quatro na terceira e assim
sucessivamente”.
“Quando o sultão deu-se
conta de que não existiria cereal suficiente em todo o seu reino, talvez nem no
mundo inteiro, considerou oportuno, para livrar-se do embaraço, mandar
cortar-lhe a cabeça...”
Porém,
continua Maurensig: “A
lenda silencia o fato de que o soberano teve que pagar a seguir um preço
bem mais alto: apaixonou-se pelo novo jogo até perder a razão...”.
“Tudo o que eu quero
fazer, sempre, é jogar xadrez”.
Bobby
Fischer (1943 – 2008)
O escritor Stefan Sweig (1881 – 1942)
e o “Xadrez”
Segundo Ingrid
Schwamborn (1940 -), doutora em Letras Romanas pela Universidade de
Bonn, na Alemanha – e Cidadã Honorária
de Fortaleza, CE – “a importância do
jogo de xadrez para Stefan Sweig é revelada em uma conferência proferida por
ele em Nova York, em 1938, com o título
‘O segredo da criação artística’”.
“O jogo de xadrez,
milenar, trazido à Terra por um deus ‘a fim de matar o tempo’, o jogo mais
concreto e ao mesmo tempo mais espiritual, ‘uma matemática que não calcula
nada’, ‘uma arquitetura sem substância porém mais duradoura que todas as obras
ou livros’ (...) era para Zweig uma metáfora, um
símbolo da arte, da possibilidade de criar, dentro dos limites de um espaço
definido, um número infinito de combinações, ou obras artísticas”.
“Dessa perspectiva, [o livro] ‘Schachnovelle’
ou ‘Xadrez’,
mostra-se a obra mais íntima de Sweig, o retrato do artista confinado num
espaço mínimo, sem comunicação com o mundo exterior, no ‘xadrez’, ou
prisão, jogando com palavras um jogo de criação que no começo da carreira era
divertido e mais tarde transformou-se em paixão”.
“A ameaça é mais forte
do que a execução.”
Aaron
Nimzowitsch (1886 – 1935)
Enxadrismo no Brasil
Presume-se
que os primeiros enxadristas teriam chegado ao Brasil em 1500, com as naus do
descobrimento e o escrivão Pero Vaz de
Caminha (1450 – 1500) seria um deles. E, provavelmente, Pedro Álvares Cabral (1467 – 1520), outro. Mas,
oficialmente, o xadrez desenvolveu-se entre nós a partir de 1808, quando Dom João VI (1767 – 1826) ofertou à Biblioteca Nacional, no Rio
de Janeiro, um livro do espanhol Luis
Ramírez de Lucena (1465 – 1530), ‘Repeticion de
Amores y Arte de Ajedrez’, a
única obra impressa então, sobre o assunto.
O primeiro torneio oficial de xadrez
em nosso país viria a ocorrer em 1880, no bairro de Botafogo, zona sul carioca,
vencido pelo pianista, compositor e escritor Arthur
Napoleão dos Santos (1843 – 1925), português da cidade do Porto, radicado no Rio de
Janeiro, capital única do Brasil de 1765 até 1961. Competiram também Joaquim Maria Machado de Assis (1839 – 1908), literato; Vitoriano José Mariano Palhares (1840 –
1890), poeta; João Caldas Vianna
Neto (1862 – 1931), advogado, Charles Pradez (s/d), enxadrista, e Joaquim Navarro (s/d).
Mas somente em 1957, em São Paulo, se
realizaria o Campeonato Brasileiro Feminino, com a paulista Dora de Castro Rúbio (s/d) alcançando a
primeira colocação, e Noemi de Oliveira (1914 – 2014), sergipana de
Maruim, residente no Rio, o segundo lugar.
Foram somente quatro as participantes, pela dificuldade de se encontrar
enxadristas mulheres à época.
Peça tocada,
peça mexida:
um movimento
altera toda
a breve história
breve e única
enquanto é.
Posições trocamos,
colocamo-nos
Em xeque,
Evitamos
e ansiamos
o lance final.
Que peça tem
o movimento
que preciso?
Jussara
Neves Rezende (1964 -), ‘Xadrez’, in ‘Minas de mim’:
Machado, MG: FM, 2001.
Em 1960, na capital de São Paulo, o
xadrez chegou a ser oficializado como ensino, no curso municipal, através de um decreto que instituía
as séries funcionais de administrador, instrutor e secretário bilíngue.
Acreditando
firmemente no progresso científico voltado para o homem e fazendo parte da
cultura nacional, os enxadristas
brasileiros rateados internacionalmente em 2012 somavam 1.885, representando
apenas 1,4% do total do planeta, mas num crescimento de 81%. Apesar
da falta de estímulo e programas de incentivo, somos o quarto país onde mais
sobe o número de praticantes. No mundo, a quantidade de jogadores listados pela
FIDE, Federação Internacional de Xadrez, pulou de 87.741 (2008) para 133.549,
numa expansão de 52%.
"Após 1.Peão-4Rei,
o jogo das Brancas está nos seus estertores.”
Gyula
Breyer (1893 – 1921)
A opinião de um campeão
Prematuramente
falecido aos 44 anos, o enxadrista José
Soares Másculo (1959 – 2003) era
carioca, nascido e criado em Copacabana, e formado em Direito. Bicampeão brasileiro juvenil de xadrez,
duas vezes vice-campeão pan-americano (1978/79), aos
17 anos figurou entre os dezesseis melhores do mundo.
Másculo representou o nosso país em diversas
competições internacionais. Para ele o xadrez não se constituía apenas em um
jogo, mas também em arte e ciência. Arte, porque através dele o homem extravasa
a sua capacidade criadora, e ciência, porque o seu caráter lógico-matemático
dela o aproxima. Por isso mesmo, é o xadrez adotado em escolas como um recurso
auxiliar na educação juvenil. São, aliás, os jovens, os que mais podem se
beneficiar com a sua prática. A idade
inicial para se iniciar uma criança no enxadrismo varia entre sete e doze anos.
Na opinião
do saudoso José Másculo, a grande
importância do enxadrismo está no fato de que ele inevitavelmente conduz o seu
praticante ao hábito da análise e da reflexão, tendo que avaliar as consequências
de ações próprias e alheias – ele foi o responsável por uma pioneira
escolinha de xadrez para crianças, em 1986, no Clube de Regatas do Flamengo.
Em um
sistema educacional como o nosso, onde o ensino da filosofia foi abandonado e o
aprendizado muitas vezes se resume em decorar fórmulas, o xadrez vem a fazer um
bem. A importância do hábito de pensar é
tão grande que a poderosa empresa de tecnologia da informação, a IBM, tinha a palavra “Think” (Pense) como lema – criado em
dezembro de 1911 por seu fundador Thomas John Watson (1874 – 1956).
Ninguém precisa possuir um QI
altíssimo para jogar xadrez, que, no entender do geminiano Másculo,
é um jogo até fácil. Basta um pouco de prática para qualquer um poder se
beneficiar desta verdadeira ginástica intelectual e curtir horas agradáveis de
lazer.
"Assim
que o jogo acaba, o Rei e o Peão voltam à mesma caixa."
Provérbio italiano
Moção da câmara a José Másculo
No Plenário
Teotônio Villela, em 20 de abril de 1990, o vereador Túlio Simões (1957 -), então líder do antigo PFL, na forma
regimental, fez constar nos Anais da Câmara Municipal, “um voto de congratulações com o enxadrista carioca José Soares Másculo pelo trabalho que vem
desenvolvendo em prol da divulgação do xadrez no Rio de Janeiro, com o objetivo
de conquistar um espaço para esta importante modalidade de esporte” (...).
“Como Parlamentar, como desportista
amador, e principalmente como cidadão carioca, faço lavrar para sempre, nos
Anais desta Egrégia Casa Legislativa, o nome de José
Soares Másculo, fazendo deste registro, o símbolo da admiração de todos
os Cariocas, que nesta Colenda Câmara tenho a honra de representar”.
.
Gens uma sumus
“Somos Uma Família” (lema dos enxadristas)
“O xadrez é um jogo de
habilidade. O enxadrista mais hábil derrotará sempre o menos hábil. Esta
habilidade, que é o segredo do jogo, se desenvolve com a prática e o estudo.
Não há casos de habilidade alcançada somente com a prática ou apenas com o
estudo. Neste peculiar o xadrez iguala-se a qualquer arte e ciência.”
“A habilidade
individual, o poder de concentração, a capacidade de antecipação, a
experiência, as manobras táticas, a estratégia e, sobretudo, a paciência e a
tranquilidade influirão decisivamente no resultado final da partida.”
Registro póstumo em chessgames.com
JOSE
SOARES MASCULO - “(Born Jun-02-1959, died Jul-15-2003, 44 years old), Brazil”.
KIBITZER’S CORNER –
Chessgames.com reader commentary
“From Rio de
Janeiro (* 2-vi-1959 - + 15-vii-2003 )
Two times brazilian Junior champion, played in two World Junior Ch 1977 and 1978, and some Opens and IT in Europe and USA. Not a
pro full time, but his activities as trainer, teacher and player were remarkable
- notably in the Flamengo Club from his native city. Always had a fragile health.”
Este trabalho é dedicado ao grande
amigo José Soares Másculo – meu extrovertido parceiro de frescobol e paqueras
nas praias de Ipanema e Copacabana – que se foi muito antes de sua hora. Não
conseguiu evitar o xeque-mate que lhe impôs o mais temido, perigoso e traiçoeiro
adversário que enfrentou: a Morte.
Teu roque, esse sarcófago vazio,
de vencidos peões vermiculares,
exposto ao mal de um xeque doentio,
espalha incenso triste pelos ares.
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