CartaCapital, 01/07/16
Editorial
“Bando de corja”
A volta ao País é cada vez mais dolorosa após viajar ao exterior, no meu caso duas semanas de férias na Itália, como sempre em busca das raízes. A Península, eixo da civilização mediterrânea, como dizia Braudel, vive a crise mundial precipitada pelo neoliberalismo, mas conserva intacta e respeitada a sua impecável Constituição faz quase 70 anos. Deste gênero de situação, o Brasil está longe, muito mais, infinitamente mais, dos 10 mil quilômetros que o separam da Itália.
Haverá quem diga, como ouvi inúmeras vezes: pois retorne já à sua terra. Agora é tarde, ed è subito sera, como versejou Salvatore Quasimodo. E logo anoitece. Para mim e para o País, a noite mais funda, de uma escuridão de 500 anos. Percebo-me na aturdida plateia da tragédia do ridículo, imponente e desvairada, mesmo Shakespeare não seria capaz de contá-la.
Inédita a seu modo, no paroxismo do paradoxo, alimentada pela prepotência e pela insensatez, pela arrogância e pela ignorância, pela incompetência e pela velhacaria. Ao cabo, para confirmar de forma jamais tão solar, a incompatibilidade crônica entre Brasil e democracia.
O lance que perdi por estar ausente e agora vivo no regresso relata que Dilma Rousseff foi isentada de todas as acusações apresentadas para justificar o impeachment. E há a mais tênue esperança de que o poder lhe seja devolvido?
Para fazer a vontade da casa-grande, atira-se a Constituição ao lixo e afirma-se a primazia das pesquisas em relação ao voto, graças ao conluio entre Justiça, polícia, Congresso, empresariado, com o febril endosso da mídia nativa. E com um adendo esclarecedor: pesquisa de opinião, sim, desde que não envolva o atual presidente interino, quem sabe até mais repudiado que a presidenta afastada.
Hoje me inclino às citações, e evocarei então uma definição do pai de meu caro amigo Políbio Alves Vieira, camponês na região de Vitória da Conquista. Dizia ele para identificar a quadrilha mais nefanda, o pior dos piores: bando de corja.
Pois é do conhecimento até do mundo mineral que Dilma Rousseff está a ser julgada por um bando de corja, uma turma da pesadíssima que se atribui o direito de decidir o destino do Brasil.
O Direito, o assunto vem a calhar. Que vale observar a respeito de quem haveria de aplicar a lei e defender a Constituição? A impávida aquiescência da Suprema Corte diante de tais e tantas ofensas praticadas contra o bom exercício do Direito, inclusive por Sergio Moro e cia. Em país nenhum que se suponha civilizado e democrático algo similar acontece, mesmo palidamente aparentado.
O Brasil é único na sua desgraça e no seu descalabro, como se não bastassem os dados da calamidade endêmica: mais de 60 mil homicídios por ano, pouco menos de 50% do território desservido de saneamento básico, 92% da população incapacitada ao uso correto do vernáculo.
Tudo aquilo que os senhores da casa-grande conseguiram foi criar um país exportador de commodities. Nossos supostos capitalistas jamais se habilitaram a entender que o bem-estar do povo é o fato determinante do seu próprio êxito como empresários. É exatamente aquilo que um ex-metalúrgico entendeu ao promover o consumo, encarado como saída para a terra humilhada por quem manda.
Não são novas tais considerações diante do espetáculo desolador oferecido aos nossos olhos, a se acrescentar o esforço despendido pelo governo interino no sentido de aumentar o sofrimento de um povo espezinhado desde sempre.
Aposta-se na sua resignação, como se a prepotência do senhor correspondesse à determinação dos fados. Neste meu retorno, cresce a minha convicção de que o golpe de 2016 é mais terrificante do que o de 1964, aquele desfechado contra a marcha da subversão até hoje retida na ameaça dos mentirosos e dos hipócritas.
A ditadura teve o peculiar condão de me conduzir à melhor compreensão da serventia do jornalismo e de me estimular à esperança.
Vivo agora a desesperança mais pungente. Os ralos resultados até agora atingidos para colocar o País na rota certa foram inúteis. Em 64 a casa-grande não mostrou a cara e chamou os gendarmes para executar o serviço sujo. Acaba de tirar a máscara e faz, simplesmente, o que bem entende, conforme o figurino do barão medieval.
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