Conjur, 17 de julho de 2016
Entrevista Eugênio Aragão,Ministro da Justiça da presidenta Dilma Rousseff
Entrevista Eugênio Aragão,Ministro da Justiça da presidenta Dilma Rousseff
Por Sérgio Rodas
Em entrevista à ConJur, Eugênio Aragão – que voltou ao MPF e está atuando junto à 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em questões de falência e Direito de Família – também criticou o rebaixamento do direito de defesa, previu que a glorificação do juiz federal Sergio Moro será efêmera e analisou que o Judiciário brasileiro ainda não pode ser considerado democrático.
Leia a entrevista:
ConJur – Como o senhor avalia o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff? As garantias do contraditório e da ampla defesa estão sendo respeitadas?
Eugênio Aragão – Não. O pedido de impeachment foi promovido pelo PSDB, isso é evidente. E quem está hoje como relator é do PSDB, que não tem nenhuma isenção só está ali para garantir um resultado. Aliás, a própria senadora Rose de Freitas (PMDB-ES) disse isso com todas as letras lá dentro ao dispensar testemunhas porque os senadores já tinham seu ponto de vista firmado, portanto essa coisa de instrução era perda de tempo. Quer dizer, o devido processo legal já há muito tempo que foi para o espaço, e o Supremo Tribunal Federal se recusa a interferir sob a alegação de que o processo é político. Veja bem, o processo do impeachment só é político na sua admissibilidade, e mesmo assim ele tem que passar por alguns obstáculos de natureza jurídica. Por exemplo, a demonstração no mínimo clara de que houve um crime de responsabilidade, algo que não foi feito até hoje. Em segundo lugar é preciso haver um juízo minimamente isento, com pessoas que estejam conscientes do que estão fazendo. A gente vê pelas declarações dadas naquela fatídica noite de abril [dia 17, quando a Câmara dos Deputados aprovou o prosseguimento do processo de impeachment] que a maioria dos deputados não estava nem sabendo do que se tratava. Estavam ali simplesmente votando pelo afastamento dela. E nós sabemos também que o impulso inicial do processo foi dado por revanchismo do presidente da Câmara [Eduardo Cunha (PMDB-RJ)], que já tinha ameaçado outras vezes que faria isso. Que tipo de processo é esse? Mesmo que haja a constatação de crime de responsabilidade, eventualmente pode-se politicamente pensar em não afastar o presidente. Mas não se constatando esse aspecto, não há como afastá-lo. Se não há crime de responsabilidade, a consequência óbvia é sua absolvição, até porque existe um negócio chamado presunção de inocência, que só pode ser quebrado com provas muito robustas. Como dizem os americanos, beyond any reasonable doubt, ou seja, além de qualquer dúvida razoável. Esse é muito mais um simulacro de um processo com o objetivo claro de se afastar a presidente da República por razões estritamente políticas, especialmente a insatisfação dos perdedores da eleição presidencial com o resultado das urnas.
ConJur – O STF está tendo se omitindo na manutenção dessas garantias no processo do impeachment?
Eugênio Aragão – Sim, nas diversas vezes que foi provocado, o Supremo foi extremamente omisso para enfrentar as questões que realmente deveriam ser enfrentadas. Mas quem foi mais omisso que o Supremo até agora é o procurador-geral da República. A Constituição lhe atribui a condição de defensor da democracia. E cadê o PGR, que não toma nenhuma iniciativa de proteger a democracia? Ele tem toda legitimidade de fazê-lo, e poderia intervir via mandado de segurança, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, Ação Direta de Inconstitucionalidade. Ele tem vários mecanismos nas mãos, e poderia ser um protagonista nesse processo. Mas ele está de braços cruzados, assistindo ao circo pegando fogo. Parece que a agenda dele é muito próxima à agenda do impedimento da presidente, porque ele resolveu pedir um inquérito contra Dilma na véspera da votação no Senado. Será que esse inquérito não poderia ter sido pedido uma semana depois, pelo menos para não interferir no juízo do Senado? Então, não se pode deixar de considerar que ali também há certa politização.
ConJur – A Lei dos Crimes de Responsabilidade (Lei 1.079/1950) tem 66 anos, e é bem genérica. A Constituição de 1988 também não se estende muito quanto a esses delitos. O senhor acredita que seria preciso fazer uma nova lei do impeachment? Se sim, o que deveria ser incluído nessa norma?
Eugênio Aragão – O processo de impeachment, do jeito que é previsto na lei e na jurisprudência, está ultrapassado. Mais adequado seria que se reservasse às duas casas o juízo da admissibilidade apenas. O julgamento feito no Senado não é uma garantia de isenção, de imparcialidade. O que deveria se fazer era um julgamento presidido pelo presidente do Supremo com base num júri convocado por esta corte. Ou seja, o STF faria a instrução, sortearia cidadãos idôneos para fazer essa análise. O resultado do júri deveria ser homologado por uma decisão de dois terços do Senado. Seria muito mais consistente juridicamente do que esse simulacro que se faz no Senado.
ConJur – Quanto ao rol dos crimes de responsabilidade, seria melhor manter tipos abertos, como é hoje em dia, ou estabelecer tipos fechados, que deem menos margem a interpretações?
Eugênio Aragão – É claro que o corolário de uma judicialização desse processo são tipos penais mais fechados. Não se pode trabalhar com tipos penais políticos, como os da Lei dos Crimes de Responsabilidade, dentro de uma judicialização, porque o júri fatalmente vai ter que responder a quesitos dentro da tipificação de cada um dos atos. Então, seria necessário fazer uma nova lei.
ConJur – Há quem afirme que a “lava jato” virou a única entidade intocável do país. Daí viriam abusos, como a crucificação de qualquer um que criticar a operação. Um exemplo disso estaria nas conversas que o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado gravou com os peemedebistas José Sarney, Renan Calheiros e Romero Jucá. Nesses diálogos, Machado induz seus interlocutores a criticar a “lava jato”. Por causa dessas críticas à operação, o procurador-geral da República pediu a prisão preventiva deles, e o Machado conseguiu a sua delação premiada. O que o senhor pensa disso? A “lava jato” realmente virou o maior poder o país? E quais são as consequências disso?
Eugênio Aragão – Não acho que a “lava jato” é o maior poder do país. Vamos ser sinceros, a “lava jato” trouxe informações importantes. Nós sabemos graças à operação qual é a cultura no nosso sistema político: um toma lá, dá cá que se universalizou dentro da política e à custa de empresas que pertencem à sociedade brasileira. Então tem essa importância. Mas essa não é a virtude da “lava jato”. Isso é a consequência normal de um processo que se iniciou no governo Lula e prosseguiu no governo Dilma de endurecimento do combate à corrupção, às organizações criminosas e à lavagem de dinheiro. Por outro lado, a “lava jato” se fragiliza no momento em que passa batido em cima de princípios civilizatórios do processo penal, como a presunção de inocência, o princípio de que a prova deverá ser obtida de boa fé – ou seja, você não pode forçar ninguém a dizer o que não quer dizer –, o princípio de que a Justiça agirá com comedimento e descrição. Afinal de contas, a Justiça não uma novela mexicana para oferecer a cada semana um novo capítulo. Tudo isso depõe contra o Ministério Público. Eu chamaria isso até de falta de profissionalismo, esses vazamentos direcionados em momentos críticos para a política nacional. E isso com a desculpa de que está tudo podre, de que tudo que ser trocado. Amigo, como é que se pretende trocar isso de uma hora para a outra? Afunda-se o país numa crise que é, sobretudo, econômica, e que vai tirar os empregos principalmente daqueles mais necessitados. Durante todo esse processo, empresas vão quebrar, investimentos deixarão de ser feitos. Isso supera em muito qualquer ganho que a “lava jato” pode ter trazido. O discurso é, sobretudo, populista e moralista. Nós precisamos realmente tomar providências, mas isso não pode ser feito a qualquer preço. Você não pode jogar bebê fora junto com a água suja do banho.
ConJur – Mas o que o senhor pensa dessa crucificação de qualquer um que critique a “lava jato”?
Eugênio Aragão – Há um certo fascismo por trás dessas atitudes, como também há por trás das medidas que o Ministério Público anda propondo. A parte boa dessas medidas já foi proposta pelo pacote anticorrupção do governo Dilma. E a outra parte contém medidas absolutamente inaceitáveis em um Estado de Direito, como a validação de flagrante preparado, a prova ilícita poder ser considerada interessante para o processo. O processo penal não pode ser transformado em um vale tudo. Com essas 10 medidas, o MP não está mostrando a sua melhor face – está mostrando-se fascista. E angariar apoio popular para as 10 medidas é uma medida populista, afinal, o MP é um órgão de Estado, e um órgão de Estado não precisa ser pivô de uma iniciativa popular. Bastaria sugerir essas alterações ao governo.
ConJur – Nesse sentido, recentemente o PGR pediu a prisão preventiva de Renan Calheiros, Romero Jucá, e Eduardo Cunha. Mas o artigo 53, parágrafo 2º, da Constituição, estabelece que os membros do Congresso só podem ser presos em flagrante de crime inafiançável. Esse pedido foi uma ação populista?
Eugênio Aragão – O problema aí é a discussão sobre a permanência do estado de flagrante, aberta pelo caso do Delcídio [do Amaral, ex-senador do PT-MS] – que, aliás, não foi um bom precedente. O STF criou um precedente extremamente perigoso para a garantia da independência dos Poderes. Eu não participei do caso, mas, falando agora como professor universitário, e não como procurador da República, as gravações do Sérgio Machado, por si sós, evidentemente não dão em nada. Ali há somente a fase de cogitação do crime, sem nenhum ato preparatório. Os interlocutores estão cogitando como se poderia devolver ao país a governabilidade que estava sendo colocada em cheque pela “lava jato”. E ficam somente, discutindo ideias. Isso não é crime. Se o que eles estão propondo é inaceitável para a sociedade, que eles não sejam reeleitos nas próximas eleições. Querer incriminar a troca de opiniões em ambiente fechado é querer incriminar o debate legislativo. Como eu conheço a turma da PGR responsável pela “lava jato”, pensei que o pedido não seria só baseado nessas gravações. “Eles devem ter um às na manga”, pensei. Assustei-me muito quando li a petição depois que ela se tornou pública e vi que não tinha nada nem na quinta gravação. Um aluno meu provavelmente estaria melhor orientado a não fazer uma coisa dessas. Somente seria possível pedir a prisão preventiva de um parlamentar se fosse demonstrado que eles estavam em situação de flagrância permanente. Mas não era esse o caso. Aquilo foram gravações instantâneas, não havia nenhum indício de permanência de um estado de flagrância, como também não havia no caso do Delcídio.
ConJur – O senhor acredita que a advocacia brasileira estava preparada para a guinada legal e judicial que redundou no recente rebaixamento no direito de defesa?
Eugênio Aragão – A questão é saber se o STF consagra esse tipo de restrição às garantias fundamentais, como vem consagrando. A advocacia faz o que tem que ser feito: atender seus clientes. É claro que os seus meios vão ficando mais restritos na medida que muito é permitido ao MP, e pouco para a defesa. Há uma assimetria que vai se acentuando, e isso não é bom. As garantias fundamentais existem como contrapeso ao monopólio de violência que o Estado detém. Por isso, achei hilário a advogada que assinou a petição do impeachment [Janaína Paschoal] dizer que ali havia um cerceamento de acusação. Isso é uma piada. Cerceamento é sempre de defesa, porque a defesa está normalmente em déficit de capacidade de atuação diante da acusação. Isso porque a acusação é o Estado, que detém inúmeros instrumentos para chegar ao culpado, para coagir, para exercer coerção, enquanto a defesa tem que correr atrás de provas para invalidar as provas que esse Estado Leviatã apresenta. É por isso que existem garantias processuais, elas são o contraponto ao poder enorme que a acusação tem. Há, sim, um desequilíbrio na defesa, e isso não é bom para o país. O MP já tem uma função imperial demais. Por exemplo, o fato de o MP ter assento permanente ao lado dos presidentes dos tribunais é uma assimetria desnecessária. Seria muito mais razoável que o MP ficasse no mesmo plano dos advogados.
ConJur – Como que o senhor avalia o MP atualmente?
Eugênio Aragão – O MP desviou-se muito daquilo que se pensou que ele fosse na Constituição de 1988 – o MP cidadão, que realmente atuaria com transparência e parceria com a governabilidade para transformar o país. O órgão se ideologizou, se apaixonou pelo fetiche criminalista, e relegou muitas de suas funções mais preciosas em nome de um fortalecimento da perseguição penal. Com isso, ele deu uma guinada para a direita – hoje, o MP é profundamente conservador. Não foi bem isso que a gente pensava quando brigou na Assembleia Constituinte pelo fortalecimento do MP.
ConJur – O MP é um órgão transparente?
Eugênio Aragão – Não é. Apesar de suas decisões serem tornadas públicas, apesar de ter no site seus pareceres e tudo o mais, os debates ainda são muito feitos entre quatro paredes. Principalmente os debates estratégicos. A gente não sabe claramente para onde a “lava jato” vai. A sociedade quer saber, mas só fica sabendo do aspecto espetacular dela, e não da estratégia que está por trás disso – se é que existe alguma.
ConJur – Mas seria possível divulgar essas estratégias sem comprometer as investigações?
Eugênio Aragão – Não, mas pelo menos desenhar mais claramente para onde se quer ir. Isso não compromete as investigações. Hoje, isso não está muito claro isso não para a população – só se sabe que eles querem aniquilar a classe política. E tem outro problema: o MP tornou-se muito endógeno e com muita aporia. Ou seja, por se achar moralmente superior, não se mistura ao resto. E olha muito para o seu umbigo: o MP ficou extremamente corporativista. Ele sempre tem razão. Você não pode nem criticar um colega, porque estará errado. Não há um debate realmente democrático dentro do MP. Hoje os órgãos de decisão institucional agem pelo viés corporativo, que é aquele viés de legitimar o risco criado pelo colega, porque isso, no final de contas, fortalece a corporação. Esta se torna mais temerosa, e com isso, acaba conseguindo se impor na hora de negociar o seu quinhão no orçamento. Essa lógica não vai durar muito tempo. Depois da “lava jato”, o debate a respeito dos limites do MP e do corporativismo se tornará urgente. Eu mesmo não acredito na legitimidade da eleição do procurador-geral pela categoria. Qual é a legitimidade que eu detenho enquanto integrante do MP? É a qualidade do meu trabalho, eu me legitimo pela qualidade do me trabalho; pela minha isenção, pela minha capacidade de discutir seriamente um caso. Isso me habilita, mas eu não gozo de legitimidade política, eu não sou eleito. Minha legitimidade é meramente burocrática, no sentido weberiano. Não é uma legitimidade política. E o procurador-geral pode interferir muito gravemente no sistema político, como nós estamos vendo agora. Por que esses colegas burocratas seriam os únicos legitimados a dizer quem vai ser o próximo procurador geral da república? Qual é o distintivo que essa categoria tem em termos de moral para eleger um fator de risco para a governabilidade para o sistema político? A Constituição foi muito sábia ao afirmar claramente que o PGR é escolhido entre funcionários da carreira, mas que essa pessoa vai ser submetida ao escrutínio do Senado e depois nomeado por um mandato de dois anos. Isso já é o suficiente para lhe dar independência. E o Senado que exerça seu papel de escrutinador, algo que até hoje não fez de forma séria. Todo escrutínio feito pelo Senado é o escrutínio político. Se é uma pessoa é querida, é só confete, se é uma pessoa não é querida, dai é cotovelada para tudo que é canto, é pergunta de chicana. Mas ninguém escrutina de forma séria a vida pregressa daquela pessoa, não escrutina seu conhecimento técnico para ser procurador-geral. Nos EUA, por exemplo, o Senado submete o indicado à Suprema Corte a professores universitários, que vão indagar e fazer um laudo pericial sobre aquele candidato. O sistema político brasileiro falha nessa aprovação. Então, limitar a escolha do procurador-geral ao MP é um sequestro corporativo da soberania popular. Porque isso pertence ao presidente da República e ao Senado, que têm voto, que têm legitimidade política. Nós não temos legitimidade política.
ConJur – O levantamento "Ministério Público – Um Retrato", divulgado pelo Conselho Nacional do Ministério Público em junho, aponta que, em 2015, o MP no Brasil inteiro instaurou 24,6 mil investigações criminais, mas destas, só fez 3,6 mil denúncias. O que explica esse baixo "aproveitamento"?
Eugênio Aragão – Minha preocupação não é com o que vira denúncia, minha preocupação é com aquilo que não vira denúncia. Por que tantos arquivamentos? Isso tudo não está esclarecido para a sociedade. O MP é mais efetivo na investigação do que a polícia? Acredito que a polícia deve ser mais eficiente, porque é controlada. O MP, pelo fato de ter uma independência funcional, não obedece nenhum princípio de hierarquia. Eu prefiro ser investigado por alguém a quem se possa puxar a orelha se ele fizer coisa errada. Investigar é um papel da polícia. O MP deve zelar pela qualidade da investigação feita pela polícia. Essa separação é fundamental. Investigação não é vocação do MP, é preciso dominar certas técnicas para isso. O MP, como disse o STF, pode, em casos excepcionais, investigar. Mas essa exceção deve ser motivada, e submetida a controle judicial. Não pode ser uma solução caseira, pois o MP não tem nenhum tipo de accountability.
ConJur – Muitos dizem que a autonomia do MP, obtida na Constituição de 1988, conferiu demasiado poder ao órgão, dando margem a excessos punitivos. O que o senhor pensa dessa crítica?
Eugênio Aragão – Não sei se é a autonomia. A autonomia foi bem desenhada, porque ela presume que haja uma unidade e uma indivisibilidade de atuação. Quando a Constituição, no artigo 127, afirma que o Ministério Público será regido pelos princípios institucionais da unidade, indivisibilidade e independência funcional, ela não está dizendo que os procuradores e promotores são metralhadoras giratórias, que atiram para tudo que é canto sem qualquer tipo de organização. O princípio da independência funcional de um procurador é muito diferente do princípio de independência de um juiz. O juiz é independente dentro dos limites da causa, da tese do autor e da tese do réu. Ele não pode ir além disso, não pode ir ultra petita nem citra petita. O MP não, porque ele é quem constrói a lide, ele não julga a lide já construída por outros. Então essa independência funcional dele, se for vista como absoluta, ela é um perigo, porque ela é a própria falta de accountability. Então como a Constituição resolveu isso? Ela articulou a independência funcional com o princípio da unidade na indivisibilidade. Isso significa que eu, como membro do MP, vou ser independente funcionalmente na medida em que em não posso ser seviciado na minha posição. Ou seja, se eu discordar de algo que a casa deliberou coletivamente, depois de muito debate de seus órgãos internos, eu posso simplesmente recusar um processo. Eu atuo porque minha posição é diferente, peço para redistribuir para alguém que queria atuar de acordo com essa tese da casa. Mas eu não posso ir na contramão dos outros, porque tem um princípio de unidade e indivisibilidade. O que acontece hoje é que as pessoas pensam da independência funcional como se fosse uma prerrogativa pessoal, e não um princípio institucional, e esquecem o princípio da unidade e indivisibilidade. Não é assim. Nós temos que articular os três aspectos. Se nós tivéssemos um controle externo para valer, essa autonomia estaria devidamente balizada. O problema é que o controle externo do MP pelo CNMP, até certa medida, é corporativo também, porque as pessoas ali são eleitas pelo próprio MP, fora os representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, do Senado e da Câmara dos Deputados. Enquanto o MP enxergar o diabo encarnado nos malfeitores de fora, os seus malfeitores serão sempre santos, sempre anjos, serão absolvidos na maioria das vezes. É raríssimo alguém do MP sofrer consequências. Quando isso ocorre, é por não ter apoio suficiente na coletividade. Estou muito preocupado com essa tendência. Hoje você vê vários casos sendo levados para o CNMP de colegas que se manifestaram contra o impeachment. Agora, não acontece nada contra aqueles que se manifestam a favor, aqueles que ficam nas redes sociais fazendo apologia da restrição das liberdades individuais.
ConJur – A autodenominada força-tarefa da “lava jato” tem cobrado de 10% a 20% das multas aplicadas em acordos de leniência para os órgãos que participam da investigação, como o MPF e a PF e a polícia federal. Essa cobrança é legal ou atende apenas aos interesses dessas corporações?
Eugênio Aragão – Eu tenho medo de distorções nessa cobrança. Se a cobrança a ajudar o aparelhamento institucional, que é um desejo legítimo de todos os procuradores, há uma tendência de se estipular multas que visem a aumentar esse quinhão do MP. E eu não acho que há uma isenção nisso. É mais ou menos a mesma coisa que terceirizar a aplicação de multas de trânsito. Você uma empresa terceirizada para instalar os pardais e determina que ela se remunere pelo número de multas que colher. É claro que ela vai ter interesse em aumentar ao máximo possível o número de multas. A empresa vai fazer todo tipo de pressão sobre o Congresso Nacional e os parlamentos estaduais para criar leis de trânsito mais rígidas, de forma que ela possa ganhar mais dinheiro. É o que acontece nos Estados Unidos com a privatização das penitenciárias. Aquele cartel industrial-militar que administra essas penitenciárias privadas americanas domina a mídia e a usa para criar um consenso na sociedade, através de reality shows e séries, de que cadeia é necessário pelo grande risco que a sociedade corre ao deixar criminosos à solta. Eles trabalham com o medo da sociedade para que haja mais pessoas dentro da cadeia, porque com mais gente dentro das cadeias, os contratos serão mais polpudos para eles. A situação do MPF é muito parecida: você não pode fazer com que o agente persecutório se beneficie diretamente dessa multa. Parte dessa multa deveria ir para um órgão coletivo de combate à corrupção que também tivesse representantes da sociedade civil. O resto deveria ser divido entre órgãos como polícia, Conselho de Controle de Atividades Financeiras, Tribunal de Contas da União, Controladoria-Geral da União e MP, mas não ficar limitado apenas a este.
ConJur – Há um debate sobre que entidades poderiam firmar acordos de leniência no âmbito da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013). Que órgão deveria centralizar esses acordos? A CGU? O MP?
Eugênio Aragão – Esse assunto deveria ser tratado na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla) [rede de órgãos coordenada pelo Ministério da Justiça]. Talvez valeria a pena criar um órgão próprio para isso, poderia ser tanto no MP quanto na CGU ou no Coaf. Mas eu tenho certo receio sobre dar ao MP esse poder, porque o viés é muito acusatório. O MP, quando se mete em políticas públicas, muitas vezes não tem a capacidade de ver a solução do problema, ele está mais preocupado em encontrar o culpado pelo problema. Então não sei se é o melhor órgão para fazer leniências.
ConJur – Recentemente, integrantes do PT passaram a defender a ideia de a legenda firmar um acordo de leniência, para assumir seus erros e “virar a página”. Na sua visão, partidos políticos podem firmar acordo de leniência?
Eugênio Aragão – O acordo de leniência tem uma finalidade em relação a empresas de salvar um ativo que tenha relevância social. Você faz um acordo de leniência para garantir empregos e investimentos, e para não prejudicar a macroeconomia com investidas judiciais. Em um partido, esses pressupostos não existem. E o partido pode ser multifacetado, ele pode ter diversas orientações dentro dele, e só uma ou duas delas que se envolvem nos ilícitos. Os outros, que não têm nada a ver com isso, vão ter que aceitar a leniência? Um partido não é que nem uma empresa, que atua dentro da sua finalidade de gerar lucro e de uma forma unificada. Um partido é uma entidade plural. Admitir a leniência de um partido é admitir uma culpa coletiva. Isso não vai bem com a democracia. Um dos princípios básicos do nosso Direito Penal é da culpa subjetiva – cada um só paga pelas suas próprias ações, e não pelas dos outros. A pena nunca vai além da pessoa do culpado. Se você admite uma culpa que é plural, que tem pessoas que não tem nada a ver com isso, essas pessoas, com razão, vão ficar revoltadas. Isso é uma presunção de culpa coletiva incompatível com o Estado Democrático de Direito, e coisa realmente de nazista. No regime nazista, havia culpa coletiva – usaram os judeus como uma categoria de criminosos, os ciganos, os homossexuais.
ConJur – O Judiciário está buscando um protagonismo excessivo nos últimos tempos?
Eugênio Aragão – Está e não está. Quando a gente espera um protagonismo maior do Judiciário, ele se omite, como no caso do impeachment. Em outros casos que a gente acha que o Judiciário deveria exercer maior comedimento, tem ministros dando entrevistas sobre tudo e todos. Existe, na verdade, uma “despadronização” da atuação. O Judiciário também está sofrendo gravemente por falta de accountability. Ou seja, os magistrados não são chamados para as suas responsabilidades.
ConJur – Nos últimos tempos, magistrados como Joaquim Barbosa e o Sergio Moro viraram heróis nacionais. O que o senhor pensa dessa glorificação de magistrados?
Eugênio Aragão – Isso é produção de mídia, né? Eles são fabricados. O Fernando Collor de Mello também foi um herói nacional, como “caçador de marajás”, na época que foi eleito. Ele foi construído, mas esses personagens são construídos e desconstruídos. Na hora que interessar à mídia desconstruir Sergio Moro e Joaquim Barbosa, eles vão experimentar o inferno. Isso é muito artificial.
ConJur – Mas que efeitos a glorificação desses magistrados tem para a Justiça brasileira?
Eugênio Aragão – Estamos em um momento muito perdido da nossa história. As pessoas estão muito sem rumo. Então, quem toma atitudes que parecem moralizadoras imediatamente recebe aplausos de uma grande parte da sociedade. As pessoas estão bombardeadas de informações, mas não sabem onde acessá-las. Tudo acaba virando cacofonia, porque quem tem informações demais e não sabe processá-las, as transforma em barulho. Como essas pessoas [como Barbosa e Moro] falam mais forte, e como elas têm visibilidade, a imprensa facilita. Mas elas não são diferentes de outros. Nossos juízes e membros do MP são profundamente conservadores. Isso mudou muito em função do “concurseirismo”. É o perfil do concurseiro, aquele que quer entrar em uma carreira porque quer lucrar com ela. Ele investe fortemente três anos para prestar um concurso. Na hora que passa, ele quer os frutos do seu investimento. Isso é um conservadorismo, é um toma lá, dá cá. Eles não prestam concurso pela vocação, mas pelo que a carreira pública pode oferecer. E qualquer tipo de insatisfação, por menor que seja, gera uma bronca tão grande que fica até difícil administrar essas pessoas.
ConJur – O Judiciário brasileiro é democrático?
Eugênio Aragão – Não, não é democrático, porque ele é burocrático. O juiz alemão inicia sua sentença com a frase "em nome do povo"; o brasileiro inicia sua sentença dizendo “vistos etc”. O Judiciário democrático é aquele que se autorrestringe, porque sabe que o seu papel na sociedade é limitado. E o brasileiro não chegou a isso. O brasileiro está na fase intermediária, de um Judiciário burocrático. Que tem seu valor também. Nós estamos em uma situação em que o presidente da República não manda no Judiciário. A prova mais clara disso é o Supremo. Oito de seus ministros foram nomeados pelos governos do PT, e o governo do PT não tem o mínimo controle sobre a corte.
ConJur – O Judiciário brasileiro é transparente?
Eugênio Aragão – Busca ser, mas não sei dizer se esse esforço é mais real do que discursivo. Mas há um esforço nisso, porque a transparência passou a ser um bem que a sociedade demanda. Agora, o Judiciário brasileiro é bem mais transparente do que em vários países. Por exemplo, existem países que os debates judiciais são feitos a portas fechadas, e que só se proclama o resultado para as partes. No Brasil, o arranca-rabo é feito na frente do público. Nos tribunais, os juízes batem boca na frente do público. Isso é, sem dúvida, um grau de transparência. Se isso é bom para solidificar o sistema jurídico, é outra questão, mas de certa forma existe esse tipo de transparência. Agora, o Judiciário não é transparente no que diz respeito às suas estratégias, à sua filosofia. Não é à toa que existem as redes internas, que são indevassáveis para quem está de fora. E ali o debate é bem diferente daquilo que é dito para o público externo.
ConJur – Como o senhor vê a publicidade opressiva sob os tribunais decorrente dos vazamentos de diálogos ou de pequenos trechos de delações, sem qualquer valor judicial?
Eugênio Aragão – Às vezes, o próprio juiz pode facilitar esse vazamento, né? Mas não sei se isso é necessariamente uma pressão sob o Judiciário. O fato é que, nos EUA, na Inglaterra, prova vazada é prova nula. E isso gera uma disciplina dos órgãos jurisdicionais. Quem é apanhado vazando pode ser responsabilizado. Se fosse assim, um advogado jamais vazaria informações, porque ele prejudicaria gravemente o seu cliente. E muito menos o MP, que invalidaria a sua prova. O juiz também não faria isso, porque sofreria consequências políticas muito graves. No Brasil não acontece nada, vaza-se e fica por isso mesmo.
ConJur – Mas essa sede por punições que está em voga na sociedade não acaba exercendo pressão para o Judiciário condenar sempre?
Eugênio Aragão – Condenar, eu não sei, por que isso ainda não foi mostrado claramente, a não ser com o Sergio Moro lá na primeira instância. No entanto, os tribunais têm mostrado uma retração fora do comum em querer enfrentar questões controversas dessa atuação. O que isso significa? Se é cuidado, se é medo, cada um interpreta do seu jeito, mas há claramente essa contração.
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