11 de setembro de 2015
A intolerância disfarçada de liberdade de religião
Por Marcos Rezende*
Deus! Ó Deus! Onde estás que não respondes!
Em que mundo, em qu´estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos Te mandei meu grito,
Que embalde, desde então, corre o infinito...
Onde estás, senhor Deus?”
Castro Alves
Ao escrever tais versos, o baiano Castro Alves lembrava os horrores da escravidão durante a travessia do oceano Atlântico. Saberia ele sobre o candomblé? Creio que não, mas se vivo estivesse e caminhasse pelas ruas da Bahia ou adentrasse a Câmara Municipal de Salvador certamente se assustaria com certos projetos de lei, como por exemplo o Projeto de Lei da vereadora Cátia Rodrigues (PROS) que propôs a colocação de uma bíblia em meio aos Orixás do Dique.
Quem conhece a Bahia sabe que o Dique foi construído entre o final do século XVII e início do século XVIII para defesa da cidade de Salvador e que é de uma beleza descomunal. No final do século XIX as perseguições religiosas fizeram com que terreiros de candomblé se instalassem nas proximidades do Dique e os religiosos de matrizes africanas da Bahia começaram a fazer diversos rituais na região e o dedicaram a Oxum, divindade das águas doces e responsável pela gestação.
Com o passar do tempo, lá pelos idos da década de 80 do século passado, como o local já estivesse consolidado como um espaço público utilizado pelos religiosos de matrizes africanas, imagens dos Orixás produzidas pelo artista plástico Tati Moreno foram utilizadas para a ornamentação do Dique, que ganhou ainda mais prestígio e passou a figurar como uma das maiores atrações turísticas da Bahia.
Todas as divindades do Panteão Afro-Brasileiro se encontram no Dique do Tororó, alguns estão incrustados na água, outros ao redor do Dique.
No entanto, o projeto da vereadora do PROS visa colocar um monumento com a Bíblia no meio do Dique.
Consta que a Bíblia deveria ser construída em dimensões análogas aos monumentos já existentes.
Qual o objetivo de uma Bíblia em meio aos orixás eu não sei.
Seria uma ato de conversão religiosa? Ou para ilustrar a diversidade religiosa do nosso país? Não consigo fechar a equação.
A bancada evangélica de Salvador se posicionou a favor do projeto utilizando o argumento da tolerância religiosa.
Desatentos que são, não se aperceberam que tolerância religiosa é o que não falta a todos os que não são cristãos nesse país, pois, ao longo da nossa História normatizou-se uma série de símbolos e feriados religiosos tendo como base o Cristianismo.
Mais do que isso, os religiosos de matrizes africanas sequer observam essas honrarias com maus olhos.
Ao contrário, com ou sem críticas, ao longo da História ajudaram a construir algumas dessas tradições.
Já imaginou se não tivéssemos as baianas de acarajé na tradicional lavagem da escadaria da Igreja do Senhor do Bonfim, essa bela procissão de 8 quilômetros que acontece no mês de janeiro em Salvador e que arrebata milhares de fiéis de religiões distintas, além de todos os políticos baianos ?
E o dia de Santa Bárbara, com as milhares de pessoas que figuram no campo sincrético entre o Candomblé e o Catolicismo vestidas de vermelho assistindo missa campal no meio do Pelourinho bem em frente à Casa de Jorge Amado, aos gritos de Eparrey Oyá e Viva Santa Bárbara?
Ou como enjeitar a missa da Igreja do Rosário dos Pretos, igreja construída pelos negros que não podiam adentrar na catedral da Praça da Sé e se organizaram para construir uma igreja com ritmos diferenciados do tradicional e estreita ligação com os terreiros de candomblé da Bahia ?
Basta ir lá dia de terça-feira às 18h e assistir a missa para entender o que estou escrevendo.
Por fim, como esquecer a Irmandade da Boa Morte formada por mulheres negras e do candomblé da cidade de Cachoeira e adjacências e que remonta a uma procissão religiosa e com pontos de intersecção entre a Igreja e o Candomblé?
A Bahia tem dessas coisas, e Salvador não é diferente, cidade com religiosidade latente e autos de fé em cada viela.
A cidade possui monumentos diversos que evocam isso, a exemplo do Cristo da Barra (um pouco menor que o Cristo Redentor do Rio de Janeiro, mas é bem verdade que Deus não se apraz de gente arrogante).
Já na Praça da Sé tem o monumento da Cruz Caída em referência à maior Catedral da América do Sul que foi demolida para a construção da Avenida 7 de setembro em valorização das ideias positivistas de saneamento e de higienização da cidade de Salvador, além do advento do bonde.
Já no Largo de Roma temos o monumento a Irmã Dulce, freira católica que foi beatificada tem pouco tempo pelo Vaticano.
Além disso são muitos nomes de ruas, escolas, bairros, dentre outros, mesmo porque até o nome da cidade do São Salvador e da Bahia de Todos os Santos já demonstram como essa relação de religiosidade é cotidiana.
Mas, infelizmente, a tolerância religiosa nem sempre.
Creio que ao alegar a importância da tolerância religiosa para justificar a colocação da imagem de uma Bíblia no Dique onde estão os Orixás, os neopetencostais se esquecem de salientar o quanto já se há de tolerância e respeito com as diversas concessões públicas de rádio e televisão que permeia o cotidiano de informações e evangelização em nosso país.
Inclusive é importante lembrar que toda e qualquer sessão da Câmara de Vereadores e até mesmo do Congresso Nacional se inicia em nome de Deus.
Também os juramentos do Judiciário ou os crucifixos em repartições públicas dos três poderes constroem e compartilham do mesmo imaginário cristão.
Ironicamente e de forma intolerante, algumas denominações neopentecostais tentaram até transformar o tradicional acarajé em bolinho de Jesus, mas nessa acabaram perdendo a peleja para Yansã.
Também, quem pode com o próprio vento?
O fato é que os religiosos de matrizes africanas pregam o respeito à liberdade religiosa, e isso difere muito de tolerância e de proselitismo tanto no campo religioso como político.
Quem já viu alguma pessoa do candomblé distribuindo papel no meio da rua querendo converter os outros?
Aliás, a crença do candomblé é que as boas energias compartilhadas são boas para a Humanidade.
Jesus, Maomé. Maomé, Jesus, Tupã, Jeová, Oxalá e tantos mais sons diferentes, sim, para sonhos iguais. Isso não difere das nossas crenças.
Temos visto conflitos perpetuarem-se no mundo em nome de “Deus” e isso acontece entre várias religiões ao longo de milênios e segue na atualidade, mas não acontece com o candomblé.
Ao contrário, aqui no Brasil essa religião soube juntar divindades que no continente africano ocupavam espaços, cidades e importância diferentes e, sem distinção, com muita responsabilidade e zelo foram reconstruídos os elos e ressignificados os códigos entre as divindades, valorando-se a fraternidade, a irmandade, a solidariedade e o compartilhamento.
O Terreiro de Candomblé remonta o amor filial e fraternal.
Para os religiosos de matrizes africanas, independente de como se deseje chamar essa Força, essa Energia Vital, esse Ser Supremo, não podemos esquecer da verdadeira mensagem de amor e o legado que nos foi deixado.
Seja na Tradição Oral do candomblé e indígena, seja na Bíblia dos cristãos, no Alcorão dos muçulmanos, no Tripitaka dos budistas, no Torá dos judeus, nos cinco livros sagrados do Espiritismo, o maior legado deixado foi uma verdadeira mensagem de amor, doação, irmandade e boas ações.
Para aqueles que não tem religião ou não crêem em Ser Supremo, a própria consciência é a referência de humanidade ou melhor, de humanização e construção coletiva de um mundo melhor.
Daí um breve lembrete para a nobre edil: por favor, menos proselitismo e mais trabalho, porque Salvador (seja Deus ou a cidade) precisa - e muito.
Aleluia, irmã ! Ou aceitaria o meu Axé?
* Ogan do Ilê Axé Oxumarê, historiador e mestrando em Gestão e Desenvolvimento Social pela UFBA
Nenhum comentário:
Postar um comentário