Carta Maior, 29/09/2015
Racial profiling e direitos do cidadão: as contradições de uma política de segurança pública racista
Por Cleber Lázaro Julião Costae João Feres Júnior
Por Cleber Lázaro Julião Costae João Feres Júnior
Os últimos dias de inverno no Rio de Janeiro de 2015 foram marcados por notícias veiculadas nos principais meios de comunicação a respeito de arrastões acontecidos nas praias da zona Sul da cidade. Neste sentido, alguns canais midiáticos associaram o acontecimento a uma decisão prolatada pelo Judiciário a pedido da Defensoria Pública, proibindo a Polícia Militar de promover ações em ônibus públicos vindos de comunidades da cidade, apreendendo jovens que se dirigissem às praias.
A ação da polícia compreendia em apreender jovens provenientes de bairros como Jacarezinho, Manguinhos, entre outras comunidades pobres da cidade ou da Baixada Fluminense como forma de prevenção. A polícia classificou que jovens pretos e pardos, sem documentos, sem dinheiro, vindos de favelas e com menos de 18 anos deveriam se enquadrar na condição de criminosos em potencial e, assim, serem custodiadas pelo Estado.
Este ato ilegal, pois as Polícias Militar e Judiciária só podem prender alguém em delito flagrante ou com autorização judicial com fundamentação específica do tipo penal, foi defendido pelo secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro que afirmou a potencialidade de delito quando jovens saem para as praias sem documento e sem dinheiro, trajando apenas uma bermuda. Para ele
“Não se trata de racismo, mas sim de vulnerabilidade. Como é que um jovem sai de Nova Iguaçu, a 30 km de distância da praia, sem dinheiro para comer, para beber, para pagar passagem, só com uma bermuda? Como ele vai ficar o domingo todo embaixo de um sol de 40 graus?”
A justificativa do secretário de segurança pública merece uma provocação: a estratégia usada pela polícia do Rio de Janeiro é mais uma demonstração do uso do critério racial em sua atuação cotidiana? A resposta óbvia é sim.
A eleição de critério racial para classificar delinquentes em potencial pela polícia tem sido demonstrada e denunciada em diversos estudos. As próprias estatísticas de órgãos de segurança no país têm mostrado o número desproporcional de jovens negros assassinados pela polícia ou em chacinas, muitos deles sob justificativas de auto de resistências, como o caso de Wallace de Almeida que tramitou pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Fica evidente um direcionamento da polícia em dirigir ofensiva contra um segmento da população cujas características são jovens negros da periferia.
Os últimos dias de inverno no Rio de Janeiro de 2015 foram marcados por notícias veiculadas nos principais meios de comunicação a respeito de arrastões acontecidos nas praias da zona Sul da cidade. Neste sentido, alguns canais midiáticos associaram o acontecimento a uma decisão prolatada pelo Judiciário a pedido da Defensoria Pública, proibindo a Polícia Militar de promover ações em ônibus públicos vindos de comunidades da cidade, apreendendo jovens que se dirigissem às praias.
A ação da polícia compreendia em apreender jovens provenientes de bairros como Jacarezinho, Manguinhos, entre outras comunidades pobres da cidade ou da Baixada Fluminense como forma de prevenção. A polícia classificou que jovens pretos e pardos, sem documentos, sem dinheiro, vindos de favelas e com menos de 18 anos deveriam se enquadrar na condição de criminosos em potencial e, assim, serem custodiadas pelo Estado.
Este ato ilegal, pois as Polícias Militar e Judiciária só podem prender alguém em delito flagrante ou com autorização judicial com fundamentação específica do tipo penal, foi defendido pelo secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro que afirmou a potencialidade de delito quando jovens saem para as praias sem documento e sem dinheiro, trajando apenas uma bermuda. Para ele
“Não se trata de racismo, mas sim de vulnerabilidade. Como é que um jovem sai de Nova Iguaçu, a 30 km de distância da praia, sem dinheiro para comer, para beber, para pagar passagem, só com uma bermuda? Como ele vai ficar o domingo todo embaixo de um sol de 40 graus?”
A justificativa do secretário de segurança pública merece uma provocação: a estratégia usada pela polícia do Rio de Janeiro é mais uma demonstração do uso do critério racial em sua atuação cotidiana? A resposta óbvia é sim.
A eleição de critério racial para classificar delinquentes em potencial pela polícia tem sido demonstrada e denunciada em diversos estudos. As próprias estatísticas de órgãos de segurança no país têm mostrado o número desproporcional de jovens negros assassinados pela polícia ou em chacinas, muitos deles sob justificativas de auto de resistências, como o caso de Wallace de Almeida que tramitou pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Fica evidente um direcionamento da polícia em dirigir ofensiva contra um segmento da população cujas características são jovens negros da periferia.
A expressão racial profiling ou perfilhamento racial tem sido usada para explicar qualquer ação policial que seja empreendida com base na raça, a etnia, cor da pele de um indivíduo em lugar de sustentar-se exclusivamente em seu comportamento, ou seja, na ação típica penal prevista em um determinado ordenamento jurídico. Isto significa que o Estado justifica ação policial contra certos grupos sustentando que eles podem cometer mais delitos do que outros. É o chamado delinquente em potencial.
O ordenamento jurídico brasileiro não prevê que o critério socioeconômico, tampouco racial seja eleito para indicar um suspeito. Na constituição do Código Penal, apenas o critério do comportamento descrito através dos tipos penais confere autorização estatal para enquadrar alguém como delinquente. Todos os tipos penais são compostos de um verbo de ação, como “matar alguém”, homicídio; “subtrair para si ou para outrem, coisa alheia móvel”, furto. A proposição positivista liderada por intelectuais como Nina Rodrigues de que alguns grupos raciais eram potencialmente delinquentes por limitações intelectuais foi superada e sequer incluída naquele documento de 1940. Hoje, este tipo de pensamento é considerado como evidente argumento racista, passível de processamento penal à luz do que estabelece a Constituição e legislação específica.
O direito internacional entende que o racial profiling ou perfilhamento racial é uma manifestação eminentemente discriminatória. Assim, o sistema de direitos humanos rechaça completamente a discriminação baseada em raça, cor, e origem étnico nacional. Neste sentido é possível ver um amplo refutamento do critério do racial profiling na Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial (sigla em inglês ICERD) em seu art.1. Outrossim, o próprio Comitê para Eliminação de Discriminação Racial (CERD) declara que o racial profiling ou perfilhamento racial constitui uma discriminação proibida pelo ICERD. O Brasil é país integrante dos estados partes que ratificaram a convenção, o que quer dizer que ela faz parte do nosso ordenamento jurídico brasileiro com status impositivo, exigindo que pessoas, entes públicas e privadas a cumpram.
A denúncia do uso do racial profiling ou perfilhamento racial pelo sistema de segurança do Brasil foi reconhecido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, inclusive ilustrando o caso de Wallace de Almeida como uma situação em que as condições de moradia e a raça determinaram a sua morte. Este caso é apenas uma das poucas situações em que a política de segurança pública perpetrada pelo Estado brasileiro ganhou os holofotes internacionais, mas sequer foi veiculado pelos meios de comunicação tradicional.
No Brasil, essa realidade se repete. A praia é um dos poucos espaços públicos disponíveis para os pobres do Rio de Janeiro. O seu uso prescinde necessidade de dinheiro. Mas aos pobres do subúrbio, das favelas e da Baixada Fluminense foi estabelecida uma condição, o que é abertamente um ato discriminatório perpetrado pelo Estado, incentivado pela mídia e aplaudido por parte da população, que reside nesses bairros da zona Sul, esperançosa que sejam criados impeditivos e constrangimentos para que a invasão negra seja controlada, e ela tenha de volta a sua ilha de tranquilidade, branca e sem as ameaças que acredita vir das favelas e periferia, embora com as pessoas desses lugares ela conviva quando se prestam para trabalhar nos empregos domésticos, nos serviços de zeladoria e de limpeza.
No país onde se reverencia a mistura entre os povos e se auto determina como uma democracia racial, os conflitos emergiram refutando esta ideia mitológica à medida que a população negra buscou espaço na sociedade em vários espaços. A primeira década do século XXI foi testemunha de um amplo debate sobre a legitimidade e constitucionalidade de ações afirmativas que implementassem cotas em universidades públicas do país, bem como em empregos públicos.
A possibilidade de dividir espaços historicamente exclusivos a uma elite branca, suscitou reações de vários graus, seja justificando a criação de privilégio para os negros, seja destilando objetivamente o sentimento de ódio. A solução trazida pelo Judiciário foi de associar a política pública que beneficia a população negra à condição socioeconômica, fazendo acreditar que a pobreza abarcaria todos os necessitados da política especial, como se fosse possível suplantar uma ação histórica da sociedade e do Estado que deliberadamente, sob as trevas da democracia racial, deixaram alijada a população negra do acesso à educação, saneamento básico, bons empregos e participação ativa no gerenciamento do país.
A situação dos jovens que se dirigem às praias da zona Sul carioca é mais um exemplo da forma como Estado dirige sua ação em momentos de integração entre negros e brancos, pobres e ricos. É sabidamente conhecido a história de falta de recursos e oportunidades em bairros periféricos e nas cidades da Baixada Fluminense e de São Gonçalo no estado do Rio de Janeiro. Áreas esquecidas pelo poder público, que se omitiu, relegando a própria sorte os moradores dessas regiões cuja condição racial é afro ascendência. Por outro lado, regiões da zona Sul são criteriosamente bem cuidadas, além de disporem da mais importante praça de lazer pública que deveria ser acessível a todos, com dinheiro ou não. Porém, no momento da interação, os “visitantes” são considerados potenciais criminosos e impedidos de participar.
Justificar que jovens sem dinheiro são potenciais criminosos e, por isso, retê-los é uma evidente violação do direito de ir vir desses cidadãos, bem como uma ação discriminatória em razão de sua cor e sua origem social. Quanto aos procedimentos tomados pela polícia antes da proibição é preciso saber o que foi feito com as crianças apreendidas. Da mesma forma nada foi dito com relação ao encaminhamento para as suas casas. Com relação aos delitos: a polícia utilizou seus departamentos de inteligência nessas comunidades onde se entendem que há indivíduos suspeitos? Pelas notícias e imagens veiculadas nesta última semana de inverno, parece que a única ação usada pela polícia foi a adoção do racial profiling ou perfilhamento racial como critério de segurança.
As ações proibidas pelo judiciário foram realizadas sem qualquer articulação com os órgãos de serviço social e das lideranças comunitárias dos bairros de onde essas crianças partiram. Até o momento de proibição, os órgãos de segurança pública não acusaram qualquer omissão a partir de uma convocação para formarem uma força tarefa visando organizar o grande fluxo de cidadãos em uma área pública. Optaram pelo racial profiling, por considerar caso de polícia, atuando de forma ilegal ao apreenderem jovens sob a justificativa de potenciais criminosos.
A adoção do racial profiling ou perfilhamento racial pelo sistema de segurança e punitivo do Brasil é uma realidade de muitos anos. A democracia racial sustentou-se em uma disposição em que aos negros foram dados os papeis subalternos, bem como com menos capacidade de exercício da cidadania plena. Este modelo perverso tem sido combatido à medida que a democracia real se consolida e com ela a sociedade civil que luta por mais igualdade e a quebra de padrões discriminatórios considerados normais contra a população negra. O racial profiling é um desses padrões institucionais que precisam ser repudiados pela sociedade e pela mídia de modo que o poder público possa construir mecanismos mais inteligentes, sensíveis às necessidades sociais como forma de inclusão e fortalecimento da busca por uma sociedade mais justa.
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