http://www1.folha.uol.com.br/
Folha.com, 08/09/2015
Pelo fim dos privilégios da nobreza
Por Roberto Feith
A recente decisão do Supremo de acabar com a censura às biografias não autorizadas corrigiu distorção gritante e restaurou a liberdade de expressão. Apesar desse avanço, continuamos a ser uma sociedade marcada por leis inexplicáveis, expressões de autoritarismo e atraso.
Uma delas é a instituição da prisão especial, que parece ter sua raiz nos privilégios da nobreza em tempos medievais. Em pleno século 21, somos uma democracia na qual aqueles que completaram curso universitário (assim como o extenso rol de autoridades) têm o direito de, se presos, receberem acomodação especial, separada das celas nas quais estão "cidadãos comuns".
A Constituição afirma que todos são iguais perante a lei. A Declaração dos Direitos do Homem e outros documentos fundacionais da democracia moderna, também. O nosso senso de justiça, idem. Tudo muito bonito e reconfortante.
Mas, na realidade, assim que um indivíduo é preso no Brasil a igualdade é chutada para escanteio. Passa a valer o poder do doutor. A Constituição, tão elevada nos seus preceitos, encontra um poder maior, concreto e pragmático.
Há quem atenue a injustiça e o preconceito inerentes à prisão especial observando que ela só vale até um processo transitar em julgado. É fato. Como também é fato de que mais de 70% dos presos brasileiros ainda não tiveram processos transitados em julgados.
Também é fato que, com os embargos, recursos e incontáveis medidas protelatórias da nossa bizantina sistemática judicial, dificilmente um acusado com um bom advogado estará vivo, para não dizer preso, quando o seu processo transitar na última instância. Ou seja, a prisão especial faz toda a diferença.
Outro argumento usado para tentar justificar melhores condições na prisão para os mais educados é o desconforto e aversão que seriam provocados pela aplicação de um critério estritamente igualitário.
Nestes dias sombrios, em que nas nossas prisões milhares se amontoam sem as mínimas condições de dignidade, há quem pondere que seria inconcebível que pessoas bem educadas, pais de família fossem sujeitas à tamanha iniquidade.
Essa forma de pensar não é apenas imoral. Ela não apenas viola um preceito constitucional. Ela é um dos motivos pelos quais nada, ou muito pouco, é feito para corrigir as condições às quais são submetidos os presos comuns.
Vamos admitir: dificilmente o status quo vigente persistiria se advogados, jornalistas, economistas, psicólogos, empresários, deputados e outros doutores, se presos, fossem abrigados com outras centenas de detentos, amontoados em celas dilapidadas e mal cheirosas.
Os mais de 600 mil presos comuns em nossas prisões, que, citando Caetano Veloso, são na maioria, pobres, pretos e pardos, não têm a capacidade de mobilizar o interesse do ministro da Justiça ou de nossos deputados e senadores.
Estes aprovaram recentemente um aumento salarial de 78% para o Judiciário, mas não demonstram a inclinação de alocar recursos escassos para reformar nossas prisões. Muito menos a intenção de acabar com a prisão especial e eliminar privilégio que marca o país como uma sociedade arcaica e autoritária.
ROBERTO FEITH, 62, jornalista, é vice-presidente do Sindicato Nacional de Editores de Livro. Foi diretor da editora Objetiva
A recente decisão do Supremo de acabar com a censura às biografias não autorizadas corrigiu distorção gritante e restaurou a liberdade de expressão. Apesar desse avanço, continuamos a ser uma sociedade marcada por leis inexplicáveis, expressões de autoritarismo e atraso.
Uma delas é a instituição da prisão especial, que parece ter sua raiz nos privilégios da nobreza em tempos medievais. Em pleno século 21, somos uma democracia na qual aqueles que completaram curso universitário (assim como o extenso rol de autoridades) têm o direito de, se presos, receberem acomodação especial, separada das celas nas quais estão "cidadãos comuns".
A Constituição afirma que todos são iguais perante a lei. A Declaração dos Direitos do Homem e outros documentos fundacionais da democracia moderna, também. O nosso senso de justiça, idem. Tudo muito bonito e reconfortante.
Mas, na realidade, assim que um indivíduo é preso no Brasil a igualdade é chutada para escanteio. Passa a valer o poder do doutor. A Constituição, tão elevada nos seus preceitos, encontra um poder maior, concreto e pragmático.
Há quem atenue a injustiça e o preconceito inerentes à prisão especial observando que ela só vale até um processo transitar em julgado. É fato. Como também é fato de que mais de 70% dos presos brasileiros ainda não tiveram processos transitados em julgados.
Também é fato que, com os embargos, recursos e incontáveis medidas protelatórias da nossa bizantina sistemática judicial, dificilmente um acusado com um bom advogado estará vivo, para não dizer preso, quando o seu processo transitar na última instância. Ou seja, a prisão especial faz toda a diferença.
Outro argumento usado para tentar justificar melhores condições na prisão para os mais educados é o desconforto e aversão que seriam provocados pela aplicação de um critério estritamente igualitário.
Nestes dias sombrios, em que nas nossas prisões milhares se amontoam sem as mínimas condições de dignidade, há quem pondere que seria inconcebível que pessoas bem educadas, pais de família fossem sujeitas à tamanha iniquidade.
Essa forma de pensar não é apenas imoral. Ela não apenas viola um preceito constitucional. Ela é um dos motivos pelos quais nada, ou muito pouco, é feito para corrigir as condições às quais são submetidos os presos comuns.
Vamos admitir: dificilmente o status quo vigente persistiria se advogados, jornalistas, economistas, psicólogos, empresários, deputados e outros doutores, se presos, fossem abrigados com outras centenas de detentos, amontoados em celas dilapidadas e mal cheirosas.
Os mais de 600 mil presos comuns em nossas prisões, que, citando Caetano Veloso, são na maioria, pobres, pretos e pardos, não têm a capacidade de mobilizar o interesse do ministro da Justiça ou de nossos deputados e senadores.
Estes aprovaram recentemente um aumento salarial de 78% para o Judiciário, mas não demonstram a inclinação de alocar recursos escassos para reformar nossas prisões. Muito menos a intenção de acabar com a prisão especial e eliminar privilégio que marca o país como uma sociedade arcaica e autoritária.
ROBERTO FEITH, 62, jornalista, é vice-presidente do Sindicato Nacional de Editores de Livro. Foi diretor da editora Objetiva
Nenhum comentário:
Postar um comentário