sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Galinha que acompanha pato acaba morrendo afogada


http://www.maurosantayana.com/2015/09/o-pato-e-galinha.html




Blog do Santayana, 3 de setembro de 2015


O pato e a galinha


Por Mauro Santayana




Embora não o admita - principalmente os países que participaram diretamente dessa sangrenta imbecilidade - a Europa de hoje, nunca antes sitiada por tantos estrangeiros, desde pelo menos os tempos da queda de Roma e das invasões bárbaras, não está colhendo mais do que plantou, ao secundar a política norte-americana de intervenção, no Oriente Médio e no Norte da África.

Não tivesse ajudado a invadir, destruir, vilipendiar, países como o Iraque, a Líbia, e a Síria; não tivesse equipado, com armas e veículos, por meio de suas agências de espionagem, os terroristas que deram origem ao Estado Islâmico, para que estes combatessem Kadafi e Bashar Al Assad, não tivesse ajudado a criar o gigantesco engodo da Primavera Árabe, prometendo paz, liberdade e prosperidade, a quem depois só se deu fome, destruição e guerra, estupros, doenças e morte, nas areias do deserto, entre as pedras das montanhas, no profundo e escuro túmulo das águas do Mediterrâneo, a Europa não estaria, agora, às voltas com a maior crise humanitária deste século, só comparável, na história recente, aos grandes deslocamentos humanos que ocorreram no fim da Segunda Guerra Mundial.

Lépidos e fagueiros, os Estados Unidos, os maiores responsáveis pela situação, sequer cogitam receber - e nisso deveriam estar sendo cobrados pelos europeus - parte das centenas de milhares de refugiados que criaram, com sua desastrada e estúpida doutrina de "guerra ao terror", de substituir, paradoxalmente, governos estáveis por terroristas, inaugurada pelo "pequeno" Bush, depois do controvertido atentado às Torres Gêmeas.

Depois que os imigrantes forem distribuídos, e se incrustarem, em guetos, ou forem - ao menos parte deles - integrados, em longo e doloroso processo, que deverá durar décadas, aos países que os acolherem, a Europa nunca mais será a mesma.

Por enquanto, continuarão chegando à suas fronteiras, desembarcando em suas praias, invadindo seus trens, escalando suas montanhas, todas as semanas, milhares de pessoas, que, cavando buracos, e enfrentando jatos de água, cassetetes e gás lacrimogêneo, não tendo mais bagagem que o seu sangue e o seu futuro, reunidos nos corpos de seus filhos, irão cobrar seu quinhão de esperança e de destino, e a sua parte da primavera, de um continente privilegiado, que para chegar aonde chegou, fartou-se de explorar as mais variadas regiões do mundo.

É cedo para dizer quais serão as consequências do Grande Êxodo. Pessoalmente, vemos toda miscigenação como bem-vinda, uma injeção de sangue novo em um continente conservador, demograficamente moribundo, e envelhecido.

Mas é difícil acreditar que uma nova Europa homogênea, solidária, universal e próspera, emergirá no futuro de tudo isso, quando os novos imigrantes chegam em momento de grande ascensão da extrema-direita e do fascismo, e neonazistas cercam e incendeiam, latindo urros hitleristas, abrigos com mulheres e crianças.

Se, no lugar de seguir os EUA, em sua política imperial em países agora devastados, como a Líbia e a Síria, ou sob disfarçadas ditaduras, como o Egito, a Europa tivesse aplicado o que gastou em armas no Norte da África e em lugares como o Afeganistão, investindo em fábricas nesses mesmos países ou em linhas de crédito que pudessem gerar empregos para os africanos antes que eles precisassem se lançar, desesperadamente, à travessia do Mediterrâneo, apostando na paz e não na guerra, o velho continente não estaria enfrentando os problemas que encara agora, o mar que o banha ao sul não estaria coalhado de cadáveres, e não existiria o Estado Islâmico.

Que isso sirva de lição a uma União Europeia que insiste, por meio da OTAN e nos foros multilaterais, em continuar sendo tropa auxiliar dos EUA na guerra e na diplomacia, para que os mesmos erros que se cometeram ao sul, não se repitam ao Leste, com o estímulo a um conflito com a Rússia pela Ucrânia, que pode provocar um novo êxodo maciço em uma segunda frente migratória, que irá multiplicar os problemas, o caos e os desafios que está enfrentando agora.

As desventuras das autoridades europeias, e o caos humanitário que se instala em suas cidades, em lugares como a Estação Keleti Pu, em Budapeste, e a entrada do Eurotúnel, na França, mostram que a História não tolera equívocos, principalmente quando estes se baseiam no preconceito e na arrogância, cobrando rapidamente a fatura daqueles que os cometeram.

Galinha que acompanha pato acaba morrendo afogada.

É isso que Bruxelas e a UE precisam aprender com relação a Washington e aos EUA.

 




Folha.com,​ 04/09/2015


Uma crise forjada a ferro e fogo

 
Por Vladimir Safatle


​Cada um tem a crise que merece. Ao que parece, a Europa estaria passando, neste exato momento, por uma "crise de imigração".
Em nome desta "crise", o continente que mais se beneficiou da imigração durante décadas desde o século 19, mandando contingentes enormes de trabalhadores pobres para a América, além de população para suas antigas colônias, tem ultimamente recebido imigrantes com bombas e internamento em campos.

Com lágrimas de silicone abaixo dos olhos, seus dirigentes agem como se seguissem esta frase primorosa de um antigo ministro francês, Michel Rocard: "Não podemos acolher toda a miséria do mundo".
Segundo tal raciocínio, infelizmente, os países de origem desses imigrantes, com suas elites dirigentes corruptas e seus arcaísmos, teriam produzido uma situação da qual a Europa não é nem responsável nem beneficiária.

Logo, não haveria muito o que se fazer a não ser deplorar o estado atual do curso do mundo.

Mas vejam que coisa interessante. Boa parte destes que batem à porta da Europa não são imigrantes, mas refugiados que fogem de situações de guerra ou da simples desagregação de seus países, como é o caso da Síria e da Líbia.
 
Essa desagregação é fruto direto, entre outras coisas, das intervenções desastrosas que EUA e Europa fizeram em países como Iraque, Afeganistão, Líbia, Mali. Talvez você se lembre como, em nome de supostas "armas de destruição em massa" que colocariam em risco o Ocidente, EUA e Inglaterra invadiram o Iraque, criando um espaço de anomia, caos e ressentimento que gerou monstruosidades como o Estado Islâmico.

O mesmo EI que atualmente amedronta os sírios à procura de refúgio em todas as partes do mundo (inclusive no Brasil), que recruta entre líbios cidadãos de um país que simplesmente não existe mais e foi objeto de intervenções militares ocidentais.
 
Seria interessante aos europeus começarem por se perguntar quanto lhes cabe na produção da dita miséria do mundo e o quanto tais levas de refugiados são sintoma de seus arroubos militaristas desastrados.

Mas há ainda um ponto fundamental. Os imigrantes atualmente são os verdadeiros proletários do capitalismo global. Sem garantias trabalhistas e sem defesa, cada vez mais espoliados de direitos, obrigados a viver em situações de trabalho degradado e brutalmente precário, são o exército de mão de obra barata que faz o resto de economia produtiva nesses países funcionar. São aqueles que não têm nada, que sequer são defendidos por sindicatos, que devem permanecer invisíveis.

De nada adianta a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) lembrar que a imigração tem impacto fiscal positivo nos países receptores ou, como disse seu secretário-geral, Ángel Gurría: "Os imigrantes são recurso, não problema" (embora tratar sujeitos como "recurso" já diga muita coisa).
 
Quanto mais os imigrantes sentirem-se amedrontados, mais fácil espoliá-los e jogá-los contra os trabalhadores nativos que ainda têm alguma garantia. Quanto mais eles servirem de bode expiatório da crise econômica, mais os verdadeiros responsáveis, ou seja, os banqueiros de olhos azuis da City, de Paris e de Frankfurt continuarão em paz.

No entanto, não seria incorreto dizer que o projeto capitalista atual é transformar todos nós em imigrantes, ou seja, em trabalhadores precários amedrontados, invisíveis e facilmente descartáveis.

Por isto, nossa sobrevivência passa pela defesa incondicional dos direitos destes que hoje são desprovidos de todo direito.

Diga-se de passagem, não é necessário ir muito longe. Se quisermos ter uma ideia desse processo, basta lembrarmos das levas de bolivianos trabalhando em condição sub-humana nas confecções de São Paulo. Pergunte-se o quanto setores do empresariado nacional se beneficiam da imigração precária e ilegal. Pergunte-se também sobre como tratamos os haitianos que procuram sobreviver fugindo de seu país em ruínas.

Há pouco vimos casos de haitianos vítimas de insultos racistas e violência na Baixada do Glicério, isso em nome de pretensamente "roubarem nossos empregos".
 
Aos que realmente se preocupam com "nossos empregos", melhor pararem de atirar em haitianos e se voltarem para quem realmente ganha, e muito, com a crise que destrói nossos empregos.

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