Carta Maior, 02/09/2015
Os EUA são o obstáculo para o desenvolvimento mundial
Por Joseph E. Stiglitz*
Recentemente se realizou a Terceira Conferência Internacional sobre o
Financiamento para o Desenvolvimento, na capital da Etiópia, Addis
Abeba. A reunião aconteceu num momento em que os países em
desenvolvimento e os mercados emergentes vem demonstrado sua capacidade
de absorver grandes quantidades de dinheiro de forma produtiva. Aliás,
os esforços que esses países vêm empreendendo – como os investimentos em
infraestrutura (estradas, eletricidade, portos e muito mais), a
construção de cidades que um dia chegarão a ser o lar de bilhões de
pessoas e a mudança, ou as mudanças visando uma economia verde – são
realmente enormes.
Por outro lado, não falta dinheiro esperando encontrar um uso produtivo. Há quatro anos atrás, Ben Bernanke, então presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos, falou que o mundo vivia de um excesso de poupança. Todavia, os projetos de investimento com alta rentabilidade social não avançavam, muitas vezes por falta de fundos. Algo que continua acontecendo hoje em dia. O problema, tanto antes como agora, é que os mercados financeiros globais, em vez de cumprir com seu objetivo de realizar uma intermediação eficiente entre a necessidade de poupar e as oportunidades de investimento, administram mal o capital, o que acaba gerando riscos.
Não é a única ironia. A maioria dos projetos de investimento que o mundo emergente necessita são de longo prazo, assim como grande parte das poupanças disponíveis – ou seja, os bilhões de dólares ou euros que estão em fundos de aposentadorias ou de pensões, ou fundos soberanos. Porém, nossos mercados financeiros, cada vez mais míopes, se interpõem.
Muitas coisas mudaram nos treze anos que se passaram desde a Primeira Conferência Internacional sobre o Financiamento para o Desenvolvimento Internacional – organizada em Monterrey, no México, em 2002. Naquele então, o G-7 dominava a formulação de políticas econômicas no mundo. Hoje em dia, a China é a economia mais pujante do mundo (em termos de paridade do poder aquisitivo), com uma taxa de poupança que supera cerca de 50% o nível dos EUA. No ano de 2002, pensava-se que as instituições financeiras ocidentais eram alquimistas da gestão de risco e da boa administração de capital. Hoje, vemos que são bruxos da manipulação dos mercados e outras práticas enganosas.
Ficaram para trás os apelos para que os países desenvolvidos a cumprissem com seu compromisso de dar ao menos 0,7% do seu produto nacional bruto (PNB) para ajudar no desenvolvimento. Alguns países do norte de Europa – Dinamarca, Luxemburgo, Noruega, Suécia e, surpreendentemente, o Reino Unido – em meio do martírio da austeridade que se auto impuseram, cumprira com suas promessas em 2014. Porém, os Estados Unidos (com 0,19% do seu PNB, no mesmo ano) ficou muito, muito longe.
Atualmente, os países em desenvolvimento e os mercados emergentes dizem aos EUA e demais países: se não vão cumprir suas promessas, ao menos não molestem e nos permitam construir uma arquitetura internacional para uma economia mundial que também traga benefícios aos pobres. Não é surpreendente que as potências hegemônicas existentes, a começar pelos Estados Unidos, estejam fazendo todo o possível para frustrar tais esforços. Quando a China propôs a criação do Banco Asiático de Investimentos em Infraestruturas, para ajudar a redirecionar alguns dos excessos de poupança no mundo em direção a outros lugares, onde o financiamento é muito necessário, Washington tentou torpedear esse esforço. Quando o projeto finalmente deu certo, o governo de Barack Obama sofreu uma dolorosa (e muito vergonhosa) derrota.
Os Estados Unidos também estão bloqueando o caminho para estabelecer um direito internacional voltado às dívidas e às finanças. Para que os mercados de títulos possam funcionar bem, por exemplo, é preciso encontrar uma forma ordenada para resolver os casos de insolvência soberana. Entretanto, não existe essa instância atualmente. A Ucrânia, a Grécia e a Argentina são exemplos do fracasso dos acordos internacionais existentes. A grande maioria dos países pediu a criação de um novo sistema no qual se possa reestruturar a dívida soberana. Os EUA, novamente, se colocaram como o principal obstáculo.
O investimento privado também é importante. Mas as novas disposições incluídas nos acordos comerciais que o governo de Obama está negociando, em ambos os oceanos, implicam em que qualquer investimento estrangeiro direto venha acompanhado de uma importante redução da capacidade dos governos para regular o meio ambiente, a saúde, as condições de trabalho e inclusive a economia.
A posição dos Estados Unidos com relação ao tema mais debatido na conferência de Addis Abeba foi particularmente decepcionante. Na medida em que os países em desenvolvimento e os mercados emergentes abrem suas portas para as multinacionais, se torna cada vez mais importante a tributação desses gigantes, para registrar os lucros gerados mediante a atividade empresarial que se produz dentro de suas fronteiras. Apple, Google e General Electric demostraram que são muito mais geniais na hora de encontrar maneiras de evadir impostos que quando desenvolvem produtos inovadores.
Todos os países – tanto os desenvolvidos como os que estão em desenvolvimento – perderam bilhões de dólares em ingressos fiscais. No ano passado, o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, em sua sigla em inglês) divulgou a informação sobre as medidas tomadas por Luxemburgo, que expuseram a magnitude e a diversidade das formas de evasão fiscal. Um país rico como os Estados Unidos talvez possa suportar o comportamento descrito no denominado Caso Luxleaks, mas um país pobre não pode. Fui membro de uma comissão internacional, a Comissão Independente para a Reforma da Fiscalidade Internacional de Sociedades, cujo trabalho é examinar maneiras de reformar o sistema tributário atual. Num informe apresentado durante a Conferência Internacional sobre o Financiamento para o Desenvolvimento, chegamos à conclusão unânime de que o sistema atual está quebrado, e que não basta com uma reparação aqui e outra ali. Propomos uma alternativa – similar à maneira na qual as empresas são tributadas nos Estados Unidos – baseada no repasse da arrecadação que corresponde a cada Estado sobre a base da atividade econômica que ocorre dentro das fronteiras estatais.
Os Estados Unidos e outros países desenvolvidos vêm pressionando em favor de uma série de mudanças muito menores, recomendadas pela OCDE, que é o clube dos países desenvolvidos. Em outras palavras, os países de onde provêm os politicamente poderosos sonegadores de impostos são, supomos, os mesmos países que precisam desenhar um sistema para reduzir a sonegação fiscal. Nossa Comissão explica porque as reformas da OCDE tem sido, no melhor dos casos, pequenos ajustes a um sistema fundamentalmente defeituoso. São simplesmente inadequadas.
Os países em desenvolvimento e os mercados emergentes, encabeçados pela Índia, argumentaram que a instância adequada para debater esses temas é um grupo já estabelecido nas Nações Unidas, o Comitê de Especialistas sobre a Cooperação Internacional em Assuntos Fiscais, e que portanto é necessário melhorar sua situação jurídica e incrementar o seu financiamento. Os Estados Unidos se opôs de forma veemente: queria manter as coisas como no passado, de forma tal que a governança mundial seja conduzida por e para os países desenvolvidos.
As novas realidades geopolíticas exigem novas formas de governança mundial, nas que a voz dos países emergentes e em desenvolvimento possa ser ouvidas mais alto e com maior peso. Os Estados Unidos impôs seu parecer em Addis Abeba. Contudo, também mostrou que está do lado equivocado, uma postura que será julgada pela historia.
(*) Professor da Universidade de Columbia, Prêmio Nobel de Economia de 2001 e autor do livro “Queda livre: Estados Unidos, mercados livres e o afundamento da economia mundial” (Freefall: America, free markets and the sinking of the world economy). Artigo publicado no El País, de Madrid, dia 30 de agosto de 2015.
Tradução: Victor Farinelli
Por outro lado, não falta dinheiro esperando encontrar um uso produtivo. Há quatro anos atrás, Ben Bernanke, então presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos, falou que o mundo vivia de um excesso de poupança. Todavia, os projetos de investimento com alta rentabilidade social não avançavam, muitas vezes por falta de fundos. Algo que continua acontecendo hoje em dia. O problema, tanto antes como agora, é que os mercados financeiros globais, em vez de cumprir com seu objetivo de realizar uma intermediação eficiente entre a necessidade de poupar e as oportunidades de investimento, administram mal o capital, o que acaba gerando riscos.
Não é a única ironia. A maioria dos projetos de investimento que o mundo emergente necessita são de longo prazo, assim como grande parte das poupanças disponíveis – ou seja, os bilhões de dólares ou euros que estão em fundos de aposentadorias ou de pensões, ou fundos soberanos. Porém, nossos mercados financeiros, cada vez mais míopes, se interpõem.
Muitas coisas mudaram nos treze anos que se passaram desde a Primeira Conferência Internacional sobre o Financiamento para o Desenvolvimento Internacional – organizada em Monterrey, no México, em 2002. Naquele então, o G-7 dominava a formulação de políticas econômicas no mundo. Hoje em dia, a China é a economia mais pujante do mundo (em termos de paridade do poder aquisitivo), com uma taxa de poupança que supera cerca de 50% o nível dos EUA. No ano de 2002, pensava-se que as instituições financeiras ocidentais eram alquimistas da gestão de risco e da boa administração de capital. Hoje, vemos que são bruxos da manipulação dos mercados e outras práticas enganosas.
Ficaram para trás os apelos para que os países desenvolvidos a cumprissem com seu compromisso de dar ao menos 0,7% do seu produto nacional bruto (PNB) para ajudar no desenvolvimento. Alguns países do norte de Europa – Dinamarca, Luxemburgo, Noruega, Suécia e, surpreendentemente, o Reino Unido – em meio do martírio da austeridade que se auto impuseram, cumprira com suas promessas em 2014. Porém, os Estados Unidos (com 0,19% do seu PNB, no mesmo ano) ficou muito, muito longe.
Atualmente, os países em desenvolvimento e os mercados emergentes dizem aos EUA e demais países: se não vão cumprir suas promessas, ao menos não molestem e nos permitam construir uma arquitetura internacional para uma economia mundial que também traga benefícios aos pobres. Não é surpreendente que as potências hegemônicas existentes, a começar pelos Estados Unidos, estejam fazendo todo o possível para frustrar tais esforços. Quando a China propôs a criação do Banco Asiático de Investimentos em Infraestruturas, para ajudar a redirecionar alguns dos excessos de poupança no mundo em direção a outros lugares, onde o financiamento é muito necessário, Washington tentou torpedear esse esforço. Quando o projeto finalmente deu certo, o governo de Barack Obama sofreu uma dolorosa (e muito vergonhosa) derrota.
Os Estados Unidos também estão bloqueando o caminho para estabelecer um direito internacional voltado às dívidas e às finanças. Para que os mercados de títulos possam funcionar bem, por exemplo, é preciso encontrar uma forma ordenada para resolver os casos de insolvência soberana. Entretanto, não existe essa instância atualmente. A Ucrânia, a Grécia e a Argentina são exemplos do fracasso dos acordos internacionais existentes. A grande maioria dos países pediu a criação de um novo sistema no qual se possa reestruturar a dívida soberana. Os EUA, novamente, se colocaram como o principal obstáculo.
O investimento privado também é importante. Mas as novas disposições incluídas nos acordos comerciais que o governo de Obama está negociando, em ambos os oceanos, implicam em que qualquer investimento estrangeiro direto venha acompanhado de uma importante redução da capacidade dos governos para regular o meio ambiente, a saúde, as condições de trabalho e inclusive a economia.
A posição dos Estados Unidos com relação ao tema mais debatido na conferência de Addis Abeba foi particularmente decepcionante. Na medida em que os países em desenvolvimento e os mercados emergentes abrem suas portas para as multinacionais, se torna cada vez mais importante a tributação desses gigantes, para registrar os lucros gerados mediante a atividade empresarial que se produz dentro de suas fronteiras. Apple, Google e General Electric demostraram que são muito mais geniais na hora de encontrar maneiras de evadir impostos que quando desenvolvem produtos inovadores.
Todos os países – tanto os desenvolvidos como os que estão em desenvolvimento – perderam bilhões de dólares em ingressos fiscais. No ano passado, o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, em sua sigla em inglês) divulgou a informação sobre as medidas tomadas por Luxemburgo, que expuseram a magnitude e a diversidade das formas de evasão fiscal. Um país rico como os Estados Unidos talvez possa suportar o comportamento descrito no denominado Caso Luxleaks, mas um país pobre não pode. Fui membro de uma comissão internacional, a Comissão Independente para a Reforma da Fiscalidade Internacional de Sociedades, cujo trabalho é examinar maneiras de reformar o sistema tributário atual. Num informe apresentado durante a Conferência Internacional sobre o Financiamento para o Desenvolvimento, chegamos à conclusão unânime de que o sistema atual está quebrado, e que não basta com uma reparação aqui e outra ali. Propomos uma alternativa – similar à maneira na qual as empresas são tributadas nos Estados Unidos – baseada no repasse da arrecadação que corresponde a cada Estado sobre a base da atividade econômica que ocorre dentro das fronteiras estatais.
Os Estados Unidos e outros países desenvolvidos vêm pressionando em favor de uma série de mudanças muito menores, recomendadas pela OCDE, que é o clube dos países desenvolvidos. Em outras palavras, os países de onde provêm os politicamente poderosos sonegadores de impostos são, supomos, os mesmos países que precisam desenhar um sistema para reduzir a sonegação fiscal. Nossa Comissão explica porque as reformas da OCDE tem sido, no melhor dos casos, pequenos ajustes a um sistema fundamentalmente defeituoso. São simplesmente inadequadas.
Os países em desenvolvimento e os mercados emergentes, encabeçados pela Índia, argumentaram que a instância adequada para debater esses temas é um grupo já estabelecido nas Nações Unidas, o Comitê de Especialistas sobre a Cooperação Internacional em Assuntos Fiscais, e que portanto é necessário melhorar sua situação jurídica e incrementar o seu financiamento. Os Estados Unidos se opôs de forma veemente: queria manter as coisas como no passado, de forma tal que a governança mundial seja conduzida por e para os países desenvolvidos.
As novas realidades geopolíticas exigem novas formas de governança mundial, nas que a voz dos países emergentes e em desenvolvimento possa ser ouvidas mais alto e com maior peso. Os Estados Unidos impôs seu parecer em Addis Abeba. Contudo, também mostrou que está do lado equivocado, uma postura que será julgada pela historia.
(*) Professor da Universidade de Columbia, Prêmio Nobel de Economia de 2001 e autor do livro “Queda livre: Estados Unidos, mercados livres e o afundamento da economia mundial” (Freefall: America, free markets and the sinking of the world economy). Artigo publicado no El País, de Madrid, dia 30 de agosto de 2015.
Tradução: Victor Farinelli
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