Folha.com, 25/09/2015
Livro revela pacto entre militares e civis para ocultar arquivos da ditadura
OSCAR PILAGALLO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um pacto de silêncio firmado entre os militares e os governos civis do
período da redemocratização tem impedido, desde 1985, que venham à luz
os arquivos da repressão - os milhares de papéis microfilmados que
poderiam, entre outras informações relevantes, esclarecer o destino de
opositores da ditadura tidos na época como "desaparecidos".
A costura invisível desse acordo é revelada, com argumentação
consistente e documentação inédita, pelo jornalista e escritor Lucas
Figueiredo em 'Lugar Nenhum - Militares e Civis na Ocultação dos
Documentos da Ditadura', livro que inaugura a coleção "Arquivos da
Repressão no Brasil", da Companhia das Letras.
Para o autor, o acerto entre as duas partes, baseado na falsa premissa
de que os arquivos foram destruídos numa faxina rotineira e legal,
"subverte a própria lógica da democracia, ao permitir que o poder
militar negue subordinação ao poder civil".
"É um corte inédito na historiografia", disse Figueiredo, que mora há um
ano na Suíça, onde terminou de escrever o livro. Realmente, embora a
existência dos arquivos tenha sido frequentemente objeto de
questionamentos, nunca um trabalho chegou tão perto de cravar a
informação de que eles foram e continuam sendo escamoteados.
Autor de "Ministério do Silêncio - a História do Serviço Secreto de
Washington Luís a Lula" e de "Olho por Olho - Os Livros Secretos da
Ditadura", Figueiredo já tinha familiaridade com o tema.
Sua autoridade deriva sobretudo do trabalho investigativo que teve
início em 2012, quando coordenou um reduzido grupo de jornalistas,
apelidado de "equipe ninja", que trabalhou para a Comissão Nacional da
Verdade (CNV), mantendo as informações colhidas sob absoluto segredo.
"A partir do momento em que a CNV não utilizou no seu relatório final
nenhuma informação da pesquisa sobre a ocultação dos arquivos da
ditadura, me pareceu que era realmente necessário escrever esse livro",
disse à Folha.
O material ocultado é vasto. Desde o início dos anos 1970, no auge da
repressão à guerrilha, a comunidade de informação militar reunia uma
quantidade industrial de pastas individuais. Só no Cenimar (Centro de
Informações da Marinha), considerado o mais eficiente dos órgãos de
repressão, havia mais de um milhão de páginas microfilmadas em 1973.
Figueiredo aponta evidências de que, apesar dos reiterados pedidos da
Justiça e do Ministério Público, os presidentes civis nada fizeram para
abrir os arquivos do Exército, Marinha e Aeronáutica.
A política de ocultação começou com José Sarney, o primeiro civil a
ocupar a presidência da República, entre 1985 e 1990, depois de duas
décadas de ditadura militar. "Carente de base política em um momento
delicado da cena nacional, Sarney foi buscar na caserna a sua
sustentação", escreve Figueiredo. "Não seria exagero dizer que o
presidente era um refém político das Forças Armadas."
Os fatos elencados pelo autor demonstram que, no final dos anos 1980, os
arquivos não só estavam intactos como foram utilizados para um livro
produzido a pedido do general Leônidas Pires Gonçalves, então ministro
do Exército de Sarney. Duas décadas mais tarde, em entrevista a
Figueiredo, o general diria sobre os arquivos: "Foram queimados coisa
nenhuma".
Os presidentes seguintes mantiveram a "política de gavetas trancadas".
Fernando Collor (1990-1992), embora tenha desmontado o SNI (Serviço
Nacional de Informações), permitiu que o órgão que o sucedeu, o
Departamento de Inteligência, continuasse sonegando os arquivos. Na
gestão de Itamar Franco (1992-1994) também não houve avanços.
O governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) começou bem, mas
terminou mal. Em 1995, o Estado reconheceu ter responsabilidade pela
morte de opositores do regime antes dados como desaparecidos. Mas, dias
antes do fim de sua gestão, FHC baixou um decreto que prolongava o prazo
durante o qual os arquivos continuariam protegidos e criava "a inédita
figura do sigilo eterno, aplicável para documentos ultrassecretos". (Em
2012, o decreto seria revogado por Dilma Rousseff.)
Durante o governo Lula (2003-2010), o ministro da Justiça, Márcio Thomaz
Bastos, chegou a afirmar ter conhecimento da existência dos arquivos e
defendeu que viessem a público. Mas ele foi voto vencido. Prevaleceu a
posição do ministro da Defesa, José Viegas Filho, que contava com o
apoio do próprio presidente.
Quanto a Dilma Rousseff, representava a grande esperança de que, quase
três décadas após o fim da ditadura, os arquivos secretos dos militares
fossem finalmente abertos, na avaliação de Figueiredo.
Não é para menos. Trata-se da primeira vítima da tortura a ocupar o
Executivo. "Presa em São Paulo em 1970, Dilma foi levada para a temível
Oban (Operação Bandeirantes) e torturada durante 22 dias com choques
elétricos, pau de arara, socos e palmatória", lembra Figueiredo. "Após
ser condenada pela Justiça Militar, em um processo no qual fora chamada
de 'Joana d'Arc da subversão', passou quase três anos na cadeia."
A exemplo de seus antecessores, porém, ela também não enquadrou os
militares. "Ao formar seu ministério, Dilma manteve Nelson Jobim no
comando da pasta da Defesa, um sinal inequívoco de que não havia grande
disposição em obrigar as Forças Armadas a abrir os arquivos da ditadura
ou a explicar de maneira convincente sua ausência", escreve Figueiredo.
"Afinal", continua, "no segundo mandato de Lula, Jobim tinha feito
prevalecer dentro do governo, inclusive perante Dilma, na época
ministra-chefe da Casa Civil, a versão dos militares para a suposta
destruição generalizada, legal e corriqueira dos arquivos da repressão."
Para o autor, a confirmação de que a presidente manteria o pacto de
silêncio entre civis e militares se deu sete meses após sua posse. "O
episódio teve início com uma carta enviada pela Comissão de Familiares
de Mortos e Desaparecidos Políticos ao novo ministro da Justiça, José
Eduardo Cardozo, em agosto de 2011", lembra o autor.
"Os familiares partiam de
uma premissa inquestionável: se em 1993 as
Forças Armadas tinham sido capazes de elaborar relatos individuais sobre
vítimas da ditadura, citando fatos ocorridos vinte anos antes, pelo
menos até aquela primeira data os militares mantiveram arquivos da
repressão." Diante da constatação, pediram providências, ignoradas pelo
governo.
Para Figueiredo, "
a cumplicidade de militares e civis na ocultação dos
arquivos secretos da ditadura é um entrave para a conclusão do processo
de redemocratização".
Os acervos estão recheados de provas de violações dos direitos humanos.
Se parte deles foi destruída, houve uma "megaoperação de eliminação de
provas de crime". Se eles ainda existem, como é mais provável, "o caso
passava a ser ocultação de provas".
Mas por que, afinal, os governos civis teriam aceitado passivamente a
posição militar? Para Figueiredo, só há uma resposta possível:
conveniência. "É a política da boa vizinhança."
Índios e empresários
A
coleção "Arquivos da Repressão no Brasil" nasceu da colaboração entre
jornalistas e historiadores estabelecida durante os trabalhos da
Comissão Nacional da Verdade.
Os jornalistas apuravam as informações que os militares não querem
contar e os historiadores faziam os documentos falar, na observação de
Heloisa Starling, professora da Universidade Federal de Minas Gerais,
que assessorou a CNV e coordena a coleção.
Os próximos livros, que devem sair no ano que vem, já estão definidos:
"Os fuzis e as Flechas", de Rubens Valente, jornalista da Folha, sobre a
situação dos índios sob a ditadura; e
"Embaixadores, Gorilas e
Mercenários", de Claudio Dantas Sequeira, sobre os braços da ditadura no
exterior.
Mais adiante, a coleção deverá ter um livro sobre a participação dos
empresários nos esquemas da repressão, tema que por enquanto só foi
explorado por
René Armand Dreifuss no clássico "
1964 - A Conquista do
Estado".
Em que pese esse trabalho pioneiro, trata-se de um tema a ser
enfrentado. "
Permanece o silêncio sobre o apoio da sociedade brasileira
e, acima de tudo, sobre o papel dos empresários dispostos a participar
na gênese da ditadura e na sustentação e financiamento de uma estrutura
repressiva muito ampla que materializou sob a forma de política de
Estado atos de tortura, assassinato, desaparecimento e sequestro", diz
Heloisa Starling.
A historiadora, que levou a ideia para a Companhia das Letras enquanto
escrevia "
Brasil, Uma Biografia" em parceria com
Lilia Schwarcz, também
escreverá um dos volumes.
Ela abordará a maneira como, em vários momentos, os militares romperam a
legalidade autoimposta. Defenderá também a tese de que
a tortura já era
política de Estado depois do golpe de 64, e não apenas depois do AI-5,
em 1968, quando se intensificou.
*
LEIA UM TRECHO
"[...]
A destruição completa e escancaradamente ilícita dos documentos
da repressão talvez tivesse sido entendida pelos militares como uma
confissão de culpa. Seria o mesmo que reconhecer para o público externo e
sobretudo para o interno que
por mais de duas décadas as Forças Armadas
agiram ao arrepio da lei. Mais honroso, portanto, seria preservar os
arquivos (ou parte deles), tomando o cuidado de mantê-los longe do
público, da imprensa, do Ministério Público e da Justiça. Dessa forma,
seria possível continuar alegando que, na ditadura, as Forças Armadas
apenas cumpriram a lei, combatendo o inimigo que ameaçava a ordem no
país. E que, no pós-ditadura, não passam de revanchismo as tentativas de
abrir os arquivos militares, seja com o intuito de esclarecer fatos
nebulosos do regime, seja para colher subsídios que amparem a busca por
justiça nos tribunais. Esse é o discurso de muitos oficiais que
estiveram em postos-chaves tanto na época da repressão, como o coronel
Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI/Codi de São Paulo,
quanto na redemocratização, como o general Leônidas."
LUGAR NENHUM - MILITARES E CIVIS NA OCULTAÇÃO DOS DOCUMENTOS DA DITADURA
AUTOR Lucas Figueiredo
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 34,90 (170 págs.)
LANÇAMENTO - 5 de outubro, na Livraria da Vila do Shopping Pátio Higienópolis, a partir das 19h. Debate com a participação de Lucas Figueiredo, Heloisa Starling e Laura Capriglione.