segunda-feira, 11 de maio de 2015

O retrato da decadência de uma alta classe média




http://brasildefato.com.br/node/32018





Brasil de Fato, 11/05/2015


Empregadas domésticas: elas não querem mais “servir”



Por Juliane Furno*



No último domingo, 10 de maio, me surpreendi mais uma vez com a matéria veiculada pela Folha de São Paulo com o seguinte título “Empresas ‘importam’ babás e domésticas das Filipinas” (matéria abaixo)

A infeliz reportagem trata com naturalidade a criação de “agências” de emprego que buscam trabalhadoras nas Filipinas e em Singapura para execução de tarefas domésticas e de cuidado das crianças por famílias da alta classe média paulistana.

Dentre os motivos alegados pelos contratadores, destaco a seguinte opinião de uma empresária que utiliza os serviços da empresa Global Talente: “A língua é o de menos: passaram mais de dez babás por aqui e nenhuma dava certo, por que ficavam de má vontade. [...] A Liza (doméstica Filipina) está sempre bem humorada e eu preciso até pedir para ela parar de trabalhar; o povo filipino gosta de servir”.

Para ampliar as minhas suspeitas da ridicularidade do que estava sendo propagado na reportagem me deparo com a seguinte afirmação: “As babás filipinas são tipo médicos cubanos, mas sem pagar pedágio para o Fidel”. (Pagar pedágio para uma empresa privada pode???)

Poderia, com isso, dar essa reflexão como encerrada, porque ela, por si só, retrata a decadência de uma alta classe média que se desenvolveu em privilégios às custas da supressão de direitos, porém, resolvi tecer mais algumas opiniões.

A construção do mercado de trabalho brasileiro, característico de uma formação subdesenvolvida e dependente, tem como marca a informalidade, marginalidade, heterogeneidade estrutural e excedente de mão de obra. Dessa junção de fatores, o emprego doméstico emerge como uma das principais formas de inserção das mulheres na classe trabalhadora no mercado assalariado.

Somado a isso, a herança de um passado escravista com a consolidação de gritantes desigualdades sociais, possibilitou as classes médias e burguesas dispor de um enorme exército de serviçais, com ausência de direitos sociais e baixo custo da mão de obra.

No período da experiência neoliberal dos anos 1990, o emprego doméstico se tornou o principal receptor de mão de obra feminina e foi uma das ocupações que mais cresceu, somando 3,3% ao ano.

No período recente, no entanto, com a melhora nas taxas de crescimento da economia, ampliação de políticas sociais e, sobretudo, pelo baixo índice de desemprego aberto, o trabalho doméstico passou a perder oferta de mão de obra. Assim como encarecendo o custo da força de trabalho pela tardia e tão necessária regulamentação do conjunto dos direitos trabalhistas.

Orgulha-me quando o que está por trás de afirmações desses setores privilegiados da sociedade brasileira é a constatação de que o povo brasileiro “não gosta de servir”. Esse talvez tenha sido um dos grandes legados dos governos do PT (embora com uma perspectiva de desenvolvimento ainda muito limitada e pouco ousada).

Ou seja, começa a se reconstruir a dignidade do povo brasileiro, que hoje pode recusar uma relação de trabalho serviçal, ou optar por um emprego que garanta o conjunto dos direitos conquistados a duras penas pela luta da classe trabalhadora.

Esse é o Brasil que queremos ver edificado. O país no qual os trabalhadores tenham dignidade, acesso aos seus direitos e a um rendimento que permita não se limite apenas à reprodução da força de trabalho.

Estamos falando de um Brasil que assusta os setores “abastados” da sociedade, que tremem de medo ao ver a possibilidade do povo se tornar gente, reivindicar seus direitos e não mais se sujeitar ao trabalho serviçal. Que tema ainda mais a tradicional classe média, por que o povo pede passagem!


*Juliane Furno é mestranda em Desenvolvimento Econômico na Unicamp e militante da Consulta Popular/SP.




http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/05/1627108-empresa-importa-babas-e-domesticas-das-filipinas-para-o-brasil.shtml



Folha.com, 10/05/2015


Empresa 'importa' babás e domésticas das Filipinas para o Brasil


PATRÍCIA CAMPOS MELLO
DE SÃO PAULO
 

     Fabio Braga/Folhapress
​​   A executiva Kely Alves, 41, com a babá de seus três filhos, a filipina Realiza Santandan, 42

"Good morning Liza! Milk, please". É assim que os filhos da executiva Kely Alves, 41, conversam com sua babá filipina no café da manhã.

Realiza Santandan, 42, começou a trabalhar em outubro do ano passado na casa de Kely, na zona oeste de São Paulo. Liza não fala português. As crianças, de 10, 4 e 2 anos, não falam muito inglês.

"A língua é o de menos: passaram mais de dez babás por aqui e nenhuma dava certo, porque ficavam de má vontade", conta Kely. "A Liza está sempre bem humorada e eu preciso até pedir para ela parar de trabalhar; o povo filipino gosta de servir."

Com dificuldade para encontrar empregadas que aceitem dormir no serviço, famílias de classe média alta estão trazendo domésticas das Filipinas
 
 
      ​A filipina Amy Villariez, 33, com a patroa Thalita Assis, 35


A agência Global Talent já trouxe 70 filipinas para trabalharem de babá, empregada ou cozinheira. A empresa cuida da seleção das mulheres em Cingapura e da papelada no Ministério do Trabalho.
 
As filipinas entram no Brasil com visto de trabalho válido por dois anos, renováveis por mais dois, e ganham de R$ 1.800 a R$ 2.000 por mês.
 
O contratante paga R$ 6.000 para a agência e a passagem da empregada. Os patrões garantem cumprir a legislação, com limite de oito horas de trabalho por dia, folgas e benefícios como o INSS.
 
"A maioria dos que contratam são expatriados que querem uma empregada que fale inglês e brasileiros que moraram fora", diz Priscila Rocha Leite, sócia da agência Home Staff, que oferece o serviço da Global Talent para as clientes da sua agência.
 
"As babás filipinas são tipo os médicos cubanos, mas sem pagar pedágio para o Fidel."
 
O país tem tradição de exportação de mão de obra para trabalhos domésticos – são 10 milhões de filipinos no mundo todo.
 
"Aqui o salário é melhor, consigo mandar mais dinheiro para minha família", diz a filipina Amy Villariez, 33, que trabalha desde dezembro para uma família no Rio. Ela sustenta a filha de nove anos e a mãe na terra natal.
 
Quando morava em seu país, Amy trabalhava em um supermercado e ganhava US$ 200 por mês. Depois, mudou para Cingapura para trabalhar de babá. Tinha lá só uma folga por mês e não podia nem pôr o celular para carregar, porque os patrões reclamavam do gasto de energia.
 
Não podia usar o wi-fi, então "roubava" a senha do vizinho. Só comia o que sobrava e ganhava US$ 300 por mês. No Brasil, Amy ganha R$ 2.000, mais R$ 100 por sábado, e folga todos os domingos. Todo mês, manda US$ 200 para casa.
 
"É uma vantagem minhas filhas crescerem falando inglês e acho que estou ajudando a Amy a melhorar a vida dela também", diz Thalita Assis, 35, advogada, que vive com o marido, executivo da Shell, as filhas gêmeas de um ano e Amy na Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio.
 
O casal morou 11 anos fora, em vários países. No último posto, Brunei, tinham uma empregada filipina. "[Ela] Era incrível, fazia compras, limpava, cozinhava e dirigia. Ela até lavava o carro!", conta. "No Brasil, babá é só babá, cozinheira só cozinha e empregada só limpa."

REGULAMENTAÇÃO
 
A importação de empregadas filipinas se tornou possível desde uma regulamentação de 2012 do Ministério do Trabalho, que permite a contratação de mão de obra estrangeira por pessoas físicas, e não apenas empresas.
 
O ministério ainda não tem dados exatos sobre empregadas filipinas no Brasil. Segundo Aldo Cândido, coordenador-geral de imigração no Ministério do Trabalho, o empregador precisará pagar todos os encargos, até o FGTS, quando for regulamentada a nova PEC das domésticas.
 
Leonardo Ferrada, 29, sócio da Global Talent, está fechando um acordo para importar mão de obra filipina para hotéis, de olho na Olimpíada de 2016 no Rio.
 
 
 
 
 

 
30 de março de 2011
 
 

Carta aberta ao Grupo Antiterrorismo de babás

 
Reminiscências de “Casa Grande e Senzala”: carta aberta ao Grupo Antiterrorismo de babás
 
 
Por Luana Diana dos Santos*
 
 
 
A nossa escrevivência não pode ser lida como história de “ninar os da casa-grande”, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos” (Conceição Evaristo)
 
 
Recebo das minhas companheiras, Blogueiras Feministas, a matéria publicada no site do Estadão no último domingo, 27 de março – “Mães criam grupo “antiterrorismo” contra empregadas
 
De acordo com a reportagem, um grupo de mulheres da elite paulistana fundou há cinco anos o GATB – Grupo Antiterrorismo de Babás. No “estatuto” da organização, estão previstas as medidas a serem tomadas contra os “desaforos” de babás, faxineiras e empregadas domésticas.
 
Para as senhoras do GATB, a exigência de direitos trabalhistas nos quais toda trabalhadora ou trabalhador tem direito, não passam de petulância e falta de educação. Eis aqui, o depoimento de uma das integrantes do Grupo:
 
“Minha babá veio com uma história sem pé nem cabeça, de que eu estou devendo todos os feriados em dinheiro, porque existe uma lei agora, onde ela tem esse direito. Estou meio tonta com a atitude, decepcionada com a falta de educação e gratidão por tudo que já fiz por ela, mas gostaria de saber se sou obrigada a pagar. Quando achamos que estamos com uma babá ótima, lá vêm as bombas!”
 
Com o intuito de contribuir para que não haja quaisquer dúvidas entre as senhoras do GATB, dirijo algumas palavras a elas:
 
Caríssimas,
 
Acredito que as senhoras, representantes da alta sociedade paulistana, possuam um nível de conhecimento elevadíssimo. Em meio aos chás da tarde, às compras nos shoppings e às fofoquinhas básicas, tenho certeza que em algum momento vocês devam se lembrar que a escravidão acabou. Já se vão quase 123 anos da Abolição, não é mesmo?!
 
Infelizmente, o 13 de maio não foi capaz de sepultar o passado escravista do nosso país. As reminiscências desse período estão presentes por todos os lados. Na violência policial contra a população negra, na morosidade em relação a implementação do sistema de cotas no ensino superior, na precariedade do acesso aos serviços básicos garantidos pelo Governo. O trabalho doméstico também é parte desse processo histórico de invisibilidade e desrespeito às afro-brasileiras.
 
Recentemente, o IPEA, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e a UNIFEM realizaram em conjunto um estudo sobre o trabalho doméstico remunerado. Os dados obtidos, certamente são imperceptíveis para muitas de vocês: a maioria das empregadas são negras, recebem baixa remuneração, e somente 25% possui registro em carteira, o que revela o aspecto discriminatório existente nesse tipo de ocupação.
 
Ao menor sinal de dúvidas quanto a obrigatoriedade ou não do pagamento dos dias de trabalho exercidos em feriados, sugiro-lhes algo bem simples: basta lembrar que empregada doméstica também é gente. Por que as mulheres que lavam, passam, cozinham e cuidam de toda limpeza de suas casas devem receber um tratamento diferenciado dos demais trabalhadores? Para que não fique qualquer tipo de incerteza, em 2006, por meio das pressões dos movimentos sociais, entrou em vigor a Lei 11.324, que garante às domésticas piso salarial, férias de 30 dias, folgas semanais e licença-maternidade. As senhoras estão agindo conforme determina a lei?
 
Não levem para o lado pessoal as reclamações de suas funcionárias. Na adolescência, fui empregada doméstica, babá e faxineira. Conheço de perto os motivos de tantos descontentamentos. Trabalhei numa casa imensa. Imagino que seja bem parecida com a de vocês. Era tanta coisa para lavar que meus pés racharam ao ponto de minar sangue. Sentia uma dor enorme. Mal conseguia calçar sapatos. E não foi só isso. Fui acusada de um crime que não cometi: minha patroa disse que eu havia comido as maçãs que estavam na geladeira. Sem direito a defesa, recebi a sentença: vigilância extrema durante as 10 horas de trabalho. Chorava pelos cantos. Um choro de raiva, ódio e revolta. Em pouco tempo, minhas lágrimas deram lugar a convicção de que não ficaria me submetendo a esse tipo de humilhação.
 
O que vocês entendem como ingratidão e arrogância, nada mais é que um ato de insubordinação. Assim como as senhoras não esqueceram as lições deixadas pelas sinhás da Casa Grande, também aprendemos a lutar e a resistir como as negras das senzalas. Estou certa que as mulheres que lhes prestam serviços não precisam da compaixão e da piedade das senhoras. Elas querem somente um salário digno, condições justas de trabalho e o direito de almejar uma vida melhor.
 
Espero ter contribuído de alguma forma. Na verdade, mais do que por fim às suas dúvidas, queria ensiná-las a tratar com respeito e dignidade essas mulheres que muitas vezes são responsáveis pela educação de seus filhos e filhas. Gostaria de extirpar todo esse racismo que existe dentro de vocês. Tarefa mais difícil do que limpar vidros sem deixar manchas. Como disse a Dra. Fátima Oliveira, “a superação do racismo exige uma faxina ética”. Pelo visto, não é todo mundo que está disposto a fazê-lo. É mais fácil empurrar a sujeira para o quartinho de empregada.
 
 
*Luana Diana dos Santos é Historiadora e Professora da Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais.

Um comentário:

  1. Minhas considerações: Eu compartilho o mesmo sentimento da entrevistada da Folha, já passaram na minha casa quase uma dezena de pessoas, salário de R$1.500,00 das 08:00 às 15:00, registradas com FGTS (antes mesmo da PEC das domésticas) e VT, quebraram muitas coisas, fui roubada, enganada com licenças e atestados falsos, atrasos diversos, faltas injustificadas e sem prévio aviso, por sorte e por organização minha, nunca fui processada pois todas trabalharam de acordo com a lei, mas é fato que o Brasil está sendo treinado a anos para ter mais inúteis que se submetem ao ridículo "benefício do governo", inclui o seguro desemprego, do que de pessoas que queiram mudar de vida com o esforço do seu trabalho.
    Que venha o povo filipino, indiano, paquistanês ou de qualquer outro país que tenha vontade de trabalhar, estamos precisando!!

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