Originalmente publicado em fevereiro de 2014 na página da BBC Brasil, mas mais atual que nunca.
http://www.bbc.co.uk/
BBC Brasil, 6 de fevereiro de 2014
Amo o Brasil, mas, entre o Natal e o Ano Novo, época em que geralmente visito minha família em São Paulo, um episódio me fez lembrar um aspecto da sociedade brasileira que me deixa envergonhada. A empregada estava de folga e ofereci cozinhar para a minha família. Éramos umas 15 pessoas no total. Aprendi a cozinhar com meus pais e, desde que fui para a faculdade, dois anos atrás, cozinho praticamente todos os dias.
A maior parte da minha família adotou o discurso do "deixa disso" e não conseguia entender por que eu queria ir para a cozinha. "Imagine! Deixa que a gente chama uma pizza!" Cozinhar não era normal. Lavar a louça, jamais! Eu insisti e, no final, acho que todos aprovaram meu espaguete com camarão, alho, limão, um pouquinho de pimenta e nozes.
Minha família brasileira é de classe média, daquelas com médicos, engenheiros e advogados. O interessante é que minha família inglesa é bem parecida no que diz respeito a profissões. A diferença? Todo mundo cozinha, lava louça e arruma a própria casa. Na Inglaterra, ter uma empregada cuidando de tudo é coisa de paródia de aristocrata inglês.
Também sempre estranho quando vejo, em São Paulo, prédios com um elevador "social" e outro de "serviço". O texto da lei contra discriminação, geralmente dentro do elevador, torna a divisão ainda mais óbvia. Outra coisa que me chama a atenção são as babás e empregadas de uniforme, ou com suas roupas brancas.
Eu não sei como reagir. Usar o elevador "social" faz com que eu me sinta muito envergonhada. Deixar o meu prato para uma empregada de uniforme lavar faz com que eu me sinta muito envergonhada. A segregação e o regime de servidão praticados pela classe média do Brasil me deixam muito envergonhada. Por que sinto essa sensação? Porque, ainda que more longe, sou parte deste país.
Me parece que a classe média do Brasil, em geral, está insensível a isso. É uma insensibilidade manifesta, por exemplo, na exigência de um uniforme que mascara a individualidade das pessoas - que faz com que certos grupos ignorem e se sintam bem com a segregação com qual vivem na sua vida diária. São as 'damas de branco' que cuidam de filhos alheios, o elevador de serviço, o quarto de empregada sem janela... É o apartheid à brasileira.
Em Londres, onde eu cresci, existe desigualdade social, econômica e racial que também é visível no dia a dia. Oxford, a universidade onde eu estudo, tem poucos estudantes de classes mais pobres. Não existe utopia na Inglaterra. Por outro lado, não me parece existir um sistema de dessensibilização tão forte. Quando eu era criança, estudei em uma escola pública, brinquei no parque público, e não convivi com instrumentos tão óbvios de segregação no dia a dia.
Peço desculpas se ofendi alguém com minha crítica. Minha sensação vem das experiências que tive do Brasil que nunca irão representar o todo. Eu gostaria muito de saber o que jovens da minha geração acham deste assunto e se eles acham que a mentalidade está mudando no Brasil. O que vocês acham?
As damas de branco e o apartheid à brasileira
Yara Rodrigues Fowler, estudante da Universidade de Oxford
Sou metade brasileira, metade britânica. Nasci e fui criada em Londres, mas, em viagens frequentes e contato com a família de minha mãe, criei laços que fazem de mim uma cidadã de dois países.
A maior parte da minha família adotou o discurso do "deixa disso" e não conseguia entender por que eu queria ir para a cozinha. "Imagine! Deixa que a gente chama uma pizza!" Cozinhar não era normal. Lavar a louça, jamais! Eu insisti e, no final, acho que todos aprovaram meu espaguete com camarão, alho, limão, um pouquinho de pimenta e nozes.
Minha família brasileira é de classe média, daquelas com médicos, engenheiros e advogados. O interessante é que minha família inglesa é bem parecida no que diz respeito a profissões. A diferença? Todo mundo cozinha, lava louça e arruma a própria casa. Na Inglaterra, ter uma empregada cuidando de tudo é coisa de paródia de aristocrata inglês.
Também sempre estranho quando vejo, em São Paulo, prédios com um elevador "social" e outro de "serviço". O texto da lei contra discriminação, geralmente dentro do elevador, torna a divisão ainda mais óbvia. Outra coisa que me chama a atenção são as babás e empregadas de uniforme, ou com suas roupas brancas.
Eu não sei como reagir. Usar o elevador "social" faz com que eu me sinta muito envergonhada. Deixar o meu prato para uma empregada de uniforme lavar faz com que eu me sinta muito envergonhada. A segregação e o regime de servidão praticados pela classe média do Brasil me deixam muito envergonhada. Por que sinto essa sensação? Porque, ainda que more longe, sou parte deste país.
Me parece que a classe média do Brasil, em geral, está insensível a isso. É uma insensibilidade manifesta, por exemplo, na exigência de um uniforme que mascara a individualidade das pessoas - que faz com que certos grupos ignorem e se sintam bem com a segregação com qual vivem na sua vida diária. São as 'damas de branco' que cuidam de filhos alheios, o elevador de serviço, o quarto de empregada sem janela... É o apartheid à brasileira.
Em Londres, onde eu cresci, existe desigualdade social, econômica e racial que também é visível no dia a dia. Oxford, a universidade onde eu estudo, tem poucos estudantes de classes mais pobres. Não existe utopia na Inglaterra. Por outro lado, não me parece existir um sistema de dessensibilização tão forte. Quando eu era criança, estudei em uma escola pública, brinquei no parque público, e não convivi com instrumentos tão óbvios de segregação no dia a dia.
Peço desculpas se ofendi alguém com minha crítica. Minha sensação vem das experiências que tive do Brasil que nunca irão representar o todo. Eu gostaria muito de saber o que jovens da minha geração acham deste assunto e se eles acham que a mentalidade está mudando no Brasil. O que vocês acham?
Nenhum comentário:
Postar um comentário