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07/03/2014
Mais médicos para o Amazonas, por favor
Por Liege Albuquerque
Jornalista, mestre em ciências políticas
"Inacreditável é que a reação mais forte à vinda de médicos estrangeiros para suprir a falta de atendimento no interior do Brasil, e a exploração da questão dos cubanos insatisfeitos para sabotar o programa, venha justamente de associações médicas." - Luis Fernando Verissimo
Claro que eu queria viver num Brasil ideal e utópico, onde a medicina de base seria tema de filme de ficção. Lá, todos bebem água sem contaminações, fazem exercícios e comem de forma adequada e variada. Os médicos são bem formados, falam português claro, podem ir e vir de congressos e, importante: todos, ganhando um salário decente, podem pagar os justos honorários aos profissionais que tratam nossas doenças nada tropicais (esse país ideal não tem desmatamento), mas causadas pela modernidade. Tipo estresse, obesidade e hipertensão.
Pois é. Mas eu não vivo em Pleasantville. Vivo num Estado onde ainda se morre de malária, dengue hemorrágica e diarreia, onde ainda há (muitos) casos de leishmaniose e pelo menos 90% dos 62 municípios têm populações que (sobre) vivem, em todos os sentidos, como no século 19 ou 18. Ora, ora, boa parte das 6 mil comunidades amazonenses não tem sequer escola de ensino médio, vão ter médico? E falo de médico generalista, porque um especialista seria o luxo do luxo.
Sim, há municípios do Amazonas que nunca tiveram um médico generalista residente e, até hoje, já chegaram mais de 200 aqui no Estado, tanto estrangeiros como brasileiros espalhados no interior, trazidos pelo programa Mais Médicos. Médicos que querem e estão fazendo o que a maioria simplesmente não quer: tratar de pobres que não podem pagar consulta e morar em cidades sem estrutura nenhuma, sem conforto nenhum como um bom restaurante, internet, TV a cabo, um cinema ou uma escola de qualidade para seus filhos.
Não, não é pecado querer ganhar bem e não morar e tratar gente no interior. Mas por que se levantar para falar contra quem quer? Será que eles não sabem se defender? Esse corporativismo me cansa. Me incomoda deveras a perspectiva simplista de alguns médicos que se jogam contra o programa, como se quisessem estar no lugar deles, como se estivessem "tirando o emprego deles" e que os que criticam o programa só não estão indo ao interior "porque não tem um hospital decente para eles trabalharem". Ou criticam que a formação deles é muito superior à dos cubanos e insistem na revalidação do diploma (nisso concordo). Ou mesmo batem na tecla repetida que os cubanos são "escravizados". Quem tem escolha não é escravo, sorry. E eles que se entendam com o governo cubano e brasileiro sobre seus salários (http://www.blogdokennedy.com. br/em-cuba-lula-negociou- mudanca-no-mais-medicos/).
Quero mesmo é que eles venham trabalhar de forma honesta, competente e
humana no interior do Amazonas, por favor.
Entrevistei por e-mail alguns médicos do programa para esse artigo, para ter mais subsídios à discussão. Não vou identificar nenhum, prometi, já que esse texto não é uma reportagem, é um artigo, um post de um blog, minha singela opinião. Só que bem respaldada. Um desses médicos é de um país hermano e de família rica, e está trabalhando no interior do Amazonas. Desde que entrou na faculdade de medicina disse que seu sonho era simplesmente "cuidar de pessoas, especialmente de pessoas que não pudessem pagar pelo tratamento".
"Meio como um sonho de criança, de curar gente, de ajudar quem não pode pagar por tratamento a viverem melhor. Talvez por já ser de família rica, não sei, entre meus sonhos nunca esteve o de ganhar dinheiro, por isso encarei a medicina como uma missão. Mas não condeno quem quer ganhar muito bem nessa profissão", disse o jovem médico. E nem eu, nem na medicina nem em nenhuma outra profissão.
Mas vai me dizer que não é admirável um profissional ter o "cuidar de pessoas que não podem pagar" como intenção/missão principal? É, porque simplesmente a maioria das pessoas liga a satisfação profissional ao ter solidez (ou mais: ambição) financeira.
Quando teen eu falava que queria ser jornalista e ouvia muita gente não tergiversar no comentário simpático: "vai morrer pobre". Se alguém disser que vai estudar medicina nunca ouviu ou vai ouvir isso de volta, certo? Porque subentende-se que você vai fazer medicina não para trabalhar no interior, mas sim para se matar fazendo plantões emendados e/ou montar um consultório e cobrar suas consultas.
Diga-se que fazer piada sobre minha escolha profissional e o vaticínio que vou "morrer pobre" nunca me incomodou, e ainda hoje ouço (talvez porque estou longe de ser rycah). Semana passada um jovem parente me perguntou sobre minha profissão. Falei como sempre da paixão que nos move e nos baixos salários que nos desanimam, mas que não é isso que nos faz desistir e...ele respondeu que então só interessaria a ele ser jornalista "se fosse para ser rico como o William Bonner". Ri. Pelo menos não quer vender salsichas como a mulher do jornalista. Mas isso é outra história (ou não).
Pois bem. Para entrevistar os médicos, enviei e-mail para conhecidos, gente de duas cidades do interior, ambas encantadas com a dedicação daquele médico e de outros do programa que estão por lá. As moças me dizem que também estão adorando admirar a beleza externa de alguns (como os pacientes desse posto de saúde em Manaus).
Essas pessoas, os pacientes, lamentam que não haja condições para esses médicos tratarem doenças mais graves naquelas cidadezinhas, fazer um simples ultrassom para acompanhar uma gravidez, fazer cirurgias complexas e tal. Em um desses municípios, só aterrissa avião duas vezes por semana e, para sair de lá, são necessários mais de dois dias de voadeira (barco rápido) para chegar à capital.
Não é incomum pessoas morrerem esperando aviões para levá-las para Manaus para fazer cirurgias ou exames, já que os hospitais do interior não têm estrutura ou equipamentos. Para se ter uma ideia, no início deste ano começaram a chegar mamógrafos no interior do Amazonas. Começaram a chegar, nem sei se estão funcionando. É que são raras as reportagens feitas no interior do Amazonas, mesmo pelos jornais locais: sabemos o que ocorre lá por releases ou relatos de amigos.
E se estiverem funcionando e for diagnosticado câncer? Rádio e quimioterapia só na capital e toma lista de espera no Cecon. E para chegar na capital, especialmente quem está grave, sofre com a falta de aviões diários. Ficou tristemente famosa a notícia da suposta negação da prefeitura de Coari em levar uma criança para uma cirurgia em Manaus.
Aqui nem vou falar da dificuldade mais que quadruplicada para quem é de longe das sedes dos municípios. É, porque no Amazonas é assim: tem a cidadezinha do interior com as igrejas, prefeitura, praça, escola e posto de saúde. E, há quilômetros e quilômetros das sedes, estão as comunidades, indígenas ou não. Há inclusive 14 comunidades de municípios amazonenses que ingressaram com pedidos para serem municípios, e ter autonomia política e econômica. Se for a sério, apoio. Mas dá medo que seja apenas ambição política desmedida que nunca leva progresso ao interior.
Então, essas comunidades, na grande maioria, são bem dentro da mata mesmo, onde só se chega de canoa ou a pé em trilhas de mata fechada. É gente no meio do nada, da mata. As casas são todas de madeira, boa parte coberta de palha. O Luz para Todos não chegou, de novo para a maioria, nessas 6 mil comunidades. A maioria vive de racionamento de energia de gerador (tipo até 16 horas, nada de energia, daí ligam o gerador). TV? Nas comunidades? TV a cabo? Tá zoando, né? Mal tem gerador para a geladeira, gente. A água é de poço ou do filtro de barro, trazida do rio. A comida está na mata, no rio ou é plantada na hortinha de casa.
As crianças piram se você dá um pacote de biscoito recheado (pecado fazer isso, mas foi só uma vez), e uma maçã vai de mão em mão porque é joia rara e tem gente que nunca viu uma. Mas são para esses locais ermos, onde nem político vai pedir voto, onde a urna eletrônica chega de barco e o gerador pifa na hora da votação, onde nem a reportagem do Fantástico ainda foi, são para esses lugares que estão indo médicos do programa do governo federal. Médicos que, para mim, são também heróis.
P.S. Infelizmente não vi iniciativa similar na imprensa local, de mostrar um pouco mais de como estão vivendo os médicos do Mais Médicos, além de entrevistar pacientes sobre o atendimento. Mas vale a pena assistir a esse pequeno documentário, depoimentos, na verdade, de pacientes e de seus médicos cubanos feitos por jornalistas do gaúcho Zero Hora.
Seguir Liege Albuquerque no Twitter: www.twitter.com/ liegalbuquerque
Jornalista, mestre em ciências políticas
"Inacreditável é que a reação mais forte à vinda de médicos estrangeiros para suprir a falta de atendimento no interior do Brasil, e a exploração da questão dos cubanos insatisfeitos para sabotar o programa, venha justamente de associações médicas." - Luis Fernando Verissimo
Claro que eu queria viver num Brasil ideal e utópico, onde a medicina de base seria tema de filme de ficção. Lá, todos bebem água sem contaminações, fazem exercícios e comem de forma adequada e variada. Os médicos são bem formados, falam português claro, podem ir e vir de congressos e, importante: todos, ganhando um salário decente, podem pagar os justos honorários aos profissionais que tratam nossas doenças nada tropicais (esse país ideal não tem desmatamento), mas causadas pela modernidade. Tipo estresse, obesidade e hipertensão.
Pois é. Mas eu não vivo em Pleasantville. Vivo num Estado onde ainda se morre de malária, dengue hemorrágica e diarreia, onde ainda há (muitos) casos de leishmaniose e pelo menos 90% dos 62 municípios têm populações que (sobre) vivem, em todos os sentidos, como no século 19 ou 18. Ora, ora, boa parte das 6 mil comunidades amazonenses não tem sequer escola de ensino médio, vão ter médico? E falo de médico generalista, porque um especialista seria o luxo do luxo.
Sim, há municípios do Amazonas que nunca tiveram um médico generalista residente e, até hoje, já chegaram mais de 200 aqui no Estado, tanto estrangeiros como brasileiros espalhados no interior, trazidos pelo programa Mais Médicos. Médicos que querem e estão fazendo o que a maioria simplesmente não quer: tratar de pobres que não podem pagar consulta e morar em cidades sem estrutura nenhuma, sem conforto nenhum como um bom restaurante, internet, TV a cabo, um cinema ou uma escola de qualidade para seus filhos.
Não, não é pecado querer ganhar bem e não morar e tratar gente no interior. Mas por que se levantar para falar contra quem quer? Será que eles não sabem se defender? Esse corporativismo me cansa. Me incomoda deveras a perspectiva simplista de alguns médicos que se jogam contra o programa, como se quisessem estar no lugar deles, como se estivessem "tirando o emprego deles" e que os que criticam o programa só não estão indo ao interior "porque não tem um hospital decente para eles trabalharem". Ou criticam que a formação deles é muito superior à dos cubanos e insistem na revalidação do diploma (nisso concordo). Ou mesmo batem na tecla repetida que os cubanos são "escravizados". Quem tem escolha não é escravo, sorry. E eles que se entendam com o governo cubano e brasileiro sobre seus salários (http://www.blogdokennedy.com.
Entrevistei por e-mail alguns médicos do programa para esse artigo, para ter mais subsídios à discussão. Não vou identificar nenhum, prometi, já que esse texto não é uma reportagem, é um artigo, um post de um blog, minha singela opinião. Só que bem respaldada. Um desses médicos é de um país hermano e de família rica, e está trabalhando no interior do Amazonas. Desde que entrou na faculdade de medicina disse que seu sonho era simplesmente "cuidar de pessoas, especialmente de pessoas que não pudessem pagar pelo tratamento".
"Meio como um sonho de criança, de curar gente, de ajudar quem não pode pagar por tratamento a viverem melhor. Talvez por já ser de família rica, não sei, entre meus sonhos nunca esteve o de ganhar dinheiro, por isso encarei a medicina como uma missão. Mas não condeno quem quer ganhar muito bem nessa profissão", disse o jovem médico. E nem eu, nem na medicina nem em nenhuma outra profissão.
Mas vai me dizer que não é admirável um profissional ter o "cuidar de pessoas que não podem pagar" como intenção/missão principal? É, porque simplesmente a maioria das pessoas liga a satisfação profissional ao ter solidez (ou mais: ambição) financeira.
Quando teen eu falava que queria ser jornalista e ouvia muita gente não tergiversar no comentário simpático: "vai morrer pobre". Se alguém disser que vai estudar medicina nunca ouviu ou vai ouvir isso de volta, certo? Porque subentende-se que você vai fazer medicina não para trabalhar no interior, mas sim para se matar fazendo plantões emendados e/ou montar um consultório e cobrar suas consultas.
Diga-se que fazer piada sobre minha escolha profissional e o vaticínio que vou "morrer pobre" nunca me incomodou, e ainda hoje ouço (talvez porque estou longe de ser rycah). Semana passada um jovem parente me perguntou sobre minha profissão. Falei como sempre da paixão que nos move e nos baixos salários que nos desanimam, mas que não é isso que nos faz desistir e...ele respondeu que então só interessaria a ele ser jornalista "se fosse para ser rico como o William Bonner". Ri. Pelo menos não quer vender salsichas como a mulher do jornalista. Mas isso é outra história (ou não).
Pois bem. Para entrevistar os médicos, enviei e-mail para conhecidos, gente de duas cidades do interior, ambas encantadas com a dedicação daquele médico e de outros do programa que estão por lá. As moças me dizem que também estão adorando admirar a beleza externa de alguns (como os pacientes desse posto de saúde em Manaus).
Essas pessoas, os pacientes, lamentam que não haja condições para esses médicos tratarem doenças mais graves naquelas cidadezinhas, fazer um simples ultrassom para acompanhar uma gravidez, fazer cirurgias complexas e tal. Em um desses municípios, só aterrissa avião duas vezes por semana e, para sair de lá, são necessários mais de dois dias de voadeira (barco rápido) para chegar à capital.
Não é incomum pessoas morrerem esperando aviões para levá-las para Manaus para fazer cirurgias ou exames, já que os hospitais do interior não têm estrutura ou equipamentos. Para se ter uma ideia, no início deste ano começaram a chegar mamógrafos no interior do Amazonas. Começaram a chegar, nem sei se estão funcionando. É que são raras as reportagens feitas no interior do Amazonas, mesmo pelos jornais locais: sabemos o que ocorre lá por releases ou relatos de amigos.
E se estiverem funcionando e for diagnosticado câncer? Rádio e quimioterapia só na capital e toma lista de espera no Cecon. E para chegar na capital, especialmente quem está grave, sofre com a falta de aviões diários. Ficou tristemente famosa a notícia da suposta negação da prefeitura de Coari em levar uma criança para uma cirurgia em Manaus.
Aqui nem vou falar da dificuldade mais que quadruplicada para quem é de longe das sedes dos municípios. É, porque no Amazonas é assim: tem a cidadezinha do interior com as igrejas, prefeitura, praça, escola e posto de saúde. E, há quilômetros e quilômetros das sedes, estão as comunidades, indígenas ou não. Há inclusive 14 comunidades de municípios amazonenses que ingressaram com pedidos para serem municípios, e ter autonomia política e econômica. Se for a sério, apoio. Mas dá medo que seja apenas ambição política desmedida que nunca leva progresso ao interior.
Então, essas comunidades, na grande maioria, são bem dentro da mata mesmo, onde só se chega de canoa ou a pé em trilhas de mata fechada. É gente no meio do nada, da mata. As casas são todas de madeira, boa parte coberta de palha. O Luz para Todos não chegou, de novo para a maioria, nessas 6 mil comunidades. A maioria vive de racionamento de energia de gerador (tipo até 16 horas, nada de energia, daí ligam o gerador). TV? Nas comunidades? TV a cabo? Tá zoando, né? Mal tem gerador para a geladeira, gente. A água é de poço ou do filtro de barro, trazida do rio. A comida está na mata, no rio ou é plantada na hortinha de casa.
As crianças piram se você dá um pacote de biscoito recheado (pecado fazer isso, mas foi só uma vez), e uma maçã vai de mão em mão porque é joia rara e tem gente que nunca viu uma. Mas são para esses locais ermos, onde nem político vai pedir voto, onde a urna eletrônica chega de barco e o gerador pifa na hora da votação, onde nem a reportagem do Fantástico ainda foi, são para esses lugares que estão indo médicos do programa do governo federal. Médicos que, para mim, são também heróis.
P.S. Infelizmente não vi iniciativa similar na imprensa local, de mostrar um pouco mais de como estão vivendo os médicos do Mais Médicos, além de entrevistar pacientes sobre o atendimento. Mas vale a pena assistir a esse pequeno documentário, depoimentos, na verdade, de pacientes e de seus médicos cubanos feitos por jornalistas do gaúcho Zero Hora.
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