|
Terça-feira, 11 de Março de 2014
Uma conquista que os jornais não explicaram
Por Sylvia Debossan Moretzsohn
A greve dos garis do Rio de Janeiro, realizada durante o carnaval, terminou com uma retumbante vitória dos trabalhadores. Tão retumbante que deveria ter causado surpresa, por qualquer que fosse o ângulo de análise: pela imagem daquela massa de gente pobre, majoritariamente negra, em seus uniformes laranja, rebelada contra seu sindicato, a reivindicar seus direitos; pela interrupção de um serviço essencial, sem aviso prévio, num período em que multidões vão às ruas e o volume de lixo se multiplica; mas, talvez mais ainda, pelo tamanho do reajuste obtido ao fim de uma semana de paralisação.
Durante todo o tempo, o prefeito acenava com um aumento de 9% e dizia que este era o seu limite, não havia como pagar mais. Ainda na manhã de sábado (8/3), em sucessivas entrevistas na TV, Eduardo Paes reiterou essas afirmações e desqualificou o movimento, que chamou de “motim”. No entanto, no fim da tarde, acabou atendendo quase integralmente à demanda dos grevistas e fechou um acordo de reajuste de 37%, fora outros benefícios.
O que terá ocorrido entre a manhã e a tarde daquele sábado para tamanha reviravolta? Será que foi apenas a chuva, capaz de transformar o Rio num pântano deletério, o que apressou o desenlace?
Sem resposta
Os jornais não informaram. Trataram descritivamente do resultado das negociações, como se a aceitação de um índice de reajuste de 28 pontos percentuais maior do que o proposto originalmente pelo empregador fosse a coisa mais banal do mundo. O Jornal Nacional deu uma nota seca, lacônica, contraditória ao espaço que vinha destinando ao tema. O Globo, que também vinha noticiando em manchete os prejuízos provocados pela greve, preferiu registrar o desfecho numa chamadinha de capa. O Extra, igualmente, anotou o fim da greve em uma linha na capa. O Dia deu manchete destacando o aumento, a GloboNews cobriu a negociação e fez entrevistas, mas ninguém indagou como foi possível aquele acordo.
Ora, não há exemplo recente ou remoto de situação parecida, ainda que se considere que a remuneração dos garis continue muito baixa, dada a relevância do serviço prestado: o piso salarial sai de pouco mais de R$ 800 para R$ 1.100, mais 40% de insalubridade, além do significativo reajuste no vale-alimentação, que passa de R$ 12 para R$ 20.
Mas um percentual de aumento desse tamanho, ainda mais nas circunstâncias em que foi obtido, não deveria ser objeto de análise?
Sem sair da rotina
A greve dos garis, deflagrada à margem do sindicato da categoria, pegou todo mundo de surpresa. A imprensa reiteradamente indagou do prefeito e do presidente da Comlurb sobre um “plano de contingência”, que de fato não havia. Porém a própria imprensa não foi capaz de fugir à rotina, programada para a previsível cobertura do carnaval. Só três dias depois do início da paralisação, quando era impossível ignorar os montes de lixo espalhados pelas ruas e calçadas, passou a noticiar a greve. Fugiu pouco às fontes oficiais: acolheu a versão de que se tratava de um movimento minoritário, sem considerar que, se assim fosse, as consequências para a cidade não seriam tão danosas. Buscou apurar ligações políticas dos líderes grevistas: O Globo apurou que dois deles haviam sido candidatos a vereador pelo PR do ex-governador Anthony Garotinho em 2012. Em contrapartida, O Dia mostrou que um dos diretores do sindicato havia se candidatado nas duas últimas eleições por partidos coligados ao do prefeito Eduardo Paes.
Em princípio, a militância partidária em movimentos sociais e de trabalhadores não deveria causar estranheza, mas a insistência na negação desses vínculos – “não tem partido envolvido nisso”, disse um dos líderes, justamente um dos ex-candidatos pelo PR – acaba favorecendo as suspeitas quanto aos interesses envolvidos na deflagração de uma greve desse tipo em pleno carnaval, num ano de eleição. Partidos de esquerda também apoiaram o movimento, sem entretanto assumirem qualquer influência sobre ele. É costumeira a articulação de legendas ideologicamente distintas, e até opostas, contra um inimigo comum, na expectativa tantas vezes ilusória de que a almejada vitória eleitoral lhes permitirá, uma vez no poder, descartar os antigos aliados de ocasião.
Privatização à vista?
Informar com precisão quem organiza movimentos como esse, e com que objetivos, deveria ser uma das tarefas do jornalismo, mas a adesão de certa imprensa – no caso, especificamente, as Organizações Globo – aos programas dos governos estadual e municipal do Rio lhe retira, ou pelo menos reduz, a credibilidade quanto às denúncias de manipulação política em situações assim.
Porém, não foi apenas no campo político-partidário que surgiram suspeitas: já na quinta-feira (6/3) O Globo publicava matéria com críticas à permanência da coleta de lixo nas mãos de servidores públicos. Dois dias depois, o jornal voltava ao tema: “Greve suscita debate sobre terceirização”. Na mesma edição, o prefeito acusava a pressão de empresários interessados em transformar a coleta numa concessão para explorarem privadamente esse serviço e prometia que, enquanto estivesse no cargo, a Comlurb permaneceria uma empresa pública.
Repetiu essa promessa em entrevistas na TV, nas quais reiterava as críticas à representatividade do movimento grevista e insistia na impossibilidade de conceder aumento além dos 9%. Horas depois, aceitaria o acordo dos 37%. O chefe da Casa Civil apareceria sorridente elogiando os garis e dizendo que, apesar do impacto de R$ 400 milhões no orçamento da companhia, seria possível pagar os novos salários, “apertando daqui, cortando dali”.
E pronto, é o que basta: ouvimos as fontes e damo-nos por satisfeitos.
Se é possível haver apertos e cortes, aqui e ali, será que é porque existe excesso de cargos administrativos? Se os apertos e cortes não forem suficientes para honrar os compromissos, abre-se o caminho para o aumento de impostos ou para a privatização da empresa?
Essas questões, tão óbvias, não mereceram a atenção dos jornais.
A “cesta” do prefeito
Pelo contrário, o episódio em que o prefeito foi flagrado arremessando um resto de fruta durante um pequeno ato político na Zona Oeste do Rio ganhou desproporcional visibilidade para o tamanho do deslize, especialmente diante dos impasses no contexto da greve. Mas foi um episódio simbólico, ainda mais que a prefeitura instituiu, não faz muito tempo, a campanha Lixo Zero, com pesadas multas para quem jogar lixo no chão.
Foram inúmeras as gozações nas redes sociais. A tentativa de explicação da assessoria do prefeito, aliás, é dessas peças que entram para o anedotário jornalístico: ele não teria jogado o resto de fruta no chão, mas “na direção de uma lixeira mais afastada, ou para que um de seus assessores fizesse o descarte em local adequado”. “Fica criada assim a categoria de assessor de descarte, ou gari de prefeito”, ironizou Elio Gaspari, em sua coluna de domingo (9/3).
Efeito multiplicador
Gaspari, aliás, abre sua coluna deplorando a falta de sensibilidade no trato com os grevistas: “As cidades têm alma, e o prefeito Eduardo Paes parece não entender a da sua. O Rio tem a capacidade de se encantar com personagens do andar de baixo”.
Foi um pouco esse encantamento que levou a tantas manifestações comovidas de apoio à greve nas redes sociais, que relevavam o dano à circulação e a possibilidade de dano à saúde pública, resultante das montanhas de lixo espalhadas por calçadas e ruas: houve mesmo quem se regozijasse com a situação, no velho estilo “quanto pior, melhor”, como se o prejuízo fosse apenas do prefeito, e não de toda a cidade.
Greves são um direito, mas greves no serviço público têm uma particularidade que não pode ser ignorada. Nas redes sociais, onde, como se sabe, raramente há debate, as críticas à deflagração do movimento durante o carnaval, a referência aos danos que poderiam ser causados aos moradores e as suspeitas de manipulação político-partidária foram sistematicamente desqualificadas como atitudes autoritárias, conservadoras, “de direita”. Não importam os exemplos que a História fornece.
O movimento dos garis, ainda mais por sua retumbante vitória, tende a produzir um efeito multiplicador, particularmente importante neste ano de eleições. Ao mesmo tempo, a ausência de grupos de mascarados que vinham promovendo espetáculos pirotécnicos destrutivos na onda de protestos “contra tudo” foi significativa e pode assinalar a retomada de manifestações maciças que envolvam tanto as reivindicações de cunho sindical como as demandas por mais democracia.
Jornais podem ter seus compromissos político-ideológicos, mas não podem, até por uma questão de sobrevivência, ficar alheios a essas pautas.
Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)
Nenhum comentário:
Postar um comentário