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Carta Maior, 10/03/2014
Brasil afasta fantasma da submissão na OEA
Por Breno Altman *
A saraivada de artigos e editoriais contra Marco Aurélio Garcia, assessor internacional da Presidência da República, tem sua razão de ser. Não foi pouca a pressão, sobre o governo brasileiro, para que capitulasse diante de uma linha intervencionista e crítica ao governo constitucional de Nicolás Maduro, na Venezuela. Mas o Palácio do Planalto manteve-se firme e o Brasil deu seu voto, na OEA (Organização dos Estados Americanos), junto com outras 28 nações, para derrotar a moção sustentada apenas por Estados Unidos, Canadá e Panamá.
Muito dessa postura se deve a Marco Aurélio Garcia. Correntes conservadoras, incluindo aquelas que ainda dão as cartas em algumas salas do Itamaraty, gostariam de ver a presidente romper com a política internacional inaugurada por Lula e retornar à diplomacia dependente, que girava na órbita da Casa Branca. A voz mais íntegra, preparada e sólida contra essa alternativa sempre foi a do professor, como lhe chamam amigos e até alguns desafetos.
Não é surpresa para ninguém, portanto, que sobre seu lombo venha o chicote da velha mídia, comprometida visceralmente com a derrubada do governo Maduro. Marco Aurélio Garcia, além do mais, criticou abertamente a campanha de desinformação e manipulação levada a cabo por veículos tradicionais das grandes famílias burguesas do continente, envolvidos até o talo na guerra psicológica para desestabilizar, nacional e internacionalmente, o processo bolivariano.
Talvez a mensagem brasileira fosse ainda mais competente e altiva se a chancelaria estivesse sob o comando do histórico quadro petista. Mesmo sem ocupar o posto, a verdade é que Marco Aurélio funciona como lugar-tenente da presidente Dilma, na defesa dos interesses brasileiros e progressistas, quando potências ocidentais, particularmente os Estados Unidos, tentam reduzir o país a um apêndice de sua diplomacia. A imprensa dos monopólios, ao contrário, opera como quartel-general da estratégia de subalternidade.
A política internacional do país, ainda que marcada por contradições e freios, mudou a inserção do Brasil no mundo. Não apenas porque passou a ter papel relevante na luta para esvaziar a hegemonia norte-americana, imperialista e antidemocrática por natureza, mas também pela razão de ter criado novos espaços para o desenvolvimento econômico, através de múltiplos mecanismos que já não são lastrados pelo aval de Washington.
A trajetória é muito positiva. Primeiro, o projeto da Alca (Área de Livre Comércio das Américas) foi soterrado, afastando ameaças maiores, de inspiração neocolonial, cujo objetivo era a integração subordinada da economia brasileira e das demais nações da região à batuta norte-americana. Depois, seguiu-se o relançamento do Mercosul, a criação da Unasul e da Celac, o desenvolvimento das relações sul-sul, o aprofundamento da interlocução com a África, a parceria entre os BRICs.
Fortaleceram-se novos blocos políticos e econômicos, particularmente na América do Sul. O subcontinente, apesar das dificuldades, vai desbravando caminho autônomo, que progressivamente lhe permite atuar nas grandes disputas geopolíticas e comerciais, e fora do esquadro que o designava como quintal da Casa Branca.
Nesta perspectiva, o ataque ao governo Maduro, no qual forças oposicionistas locais se combinam com o apoio estrangeiro, repetindo a lógica golpista de 2002, não diz respeito apenas aos venezuelanos. A interrupção da revolução bolivariana seria capítulo decisivo na narrativa de restauração da ordem continental anterior.
Este era o tema que estava em disputa na última reunião da OEA. Os Estados Unidos tentaram aprovar resolução que lhes permitisse, sob o manto de uma comissão de investigação, interferir oficialmente na situação venezuelana. A proposta foi rechaçada por esmagadora maioria, remetendo o assunto para arbítrio exclusivo da Unasul, na qual os norte-americanos não têm assento. Foi um momento histórico, que provocou a fúria conservadora.
Caso o Brasil tivesse se portado de maneira distinta, outro poderia ser o resultado. Esse era o desejo de círculos direitistas, que agora reverberam sua frustração através da crítica insolente a Marco Aurélio Garcia.
Não estava em jogo, afinal, a democracia venezuelana, muito bem defendida por suas próprias instituições. Os fatos falam por si. Qual outro país do planeta teve 19 contendas eleitorais em 15 anos, nas quais a esquerda sagrou-se vitoriosa em 18? Qual outra nação convive com uma imprensa privada que apoia abertamente levantes anticonstitucionais? Qual outro Estado assegura liberdade partidária tão plena que inclui agremiações dispostas a convocar ações violentas contra um governo legítimo? Basta imaginar qual seria o comportamento da Casa Branca se tais práticas ocorressem em seu território.
A votação da OEA decidiu, portanto, se a América Latina se dobraria novamente ou não ao Ministério de Colônias do governo norte-americano, como já se referiu Fidel Castro acerca da entidade agonizante. A resposta foi uma rotunda negativa, à qual se somaram até mesmo governos conservadores como os da Colômbia e Chile. O Brasil, na ocasião, fez o que lhe cabia, ajudando a defenestrar o fantasma da submissão.
(*) Breno Altman é diretor editorial do site Opera Mundi e da Revista Samuel
Muito dessa postura se deve a Marco Aurélio Garcia. Correntes conservadoras, incluindo aquelas que ainda dão as cartas em algumas salas do Itamaraty, gostariam de ver a presidente romper com a política internacional inaugurada por Lula e retornar à diplomacia dependente, que girava na órbita da Casa Branca. A voz mais íntegra, preparada e sólida contra essa alternativa sempre foi a do professor, como lhe chamam amigos e até alguns desafetos.
Não é surpresa para ninguém, portanto, que sobre seu lombo venha o chicote da velha mídia, comprometida visceralmente com a derrubada do governo Maduro. Marco Aurélio Garcia, além do mais, criticou abertamente a campanha de desinformação e manipulação levada a cabo por veículos tradicionais das grandes famílias burguesas do continente, envolvidos até o talo na guerra psicológica para desestabilizar, nacional e internacionalmente, o processo bolivariano.
Talvez a mensagem brasileira fosse ainda mais competente e altiva se a chancelaria estivesse sob o comando do histórico quadro petista. Mesmo sem ocupar o posto, a verdade é que Marco Aurélio funciona como lugar-tenente da presidente Dilma, na defesa dos interesses brasileiros e progressistas, quando potências ocidentais, particularmente os Estados Unidos, tentam reduzir o país a um apêndice de sua diplomacia. A imprensa dos monopólios, ao contrário, opera como quartel-general da estratégia de subalternidade.
A política internacional do país, ainda que marcada por contradições e freios, mudou a inserção do Brasil no mundo. Não apenas porque passou a ter papel relevante na luta para esvaziar a hegemonia norte-americana, imperialista e antidemocrática por natureza, mas também pela razão de ter criado novos espaços para o desenvolvimento econômico, através de múltiplos mecanismos que já não são lastrados pelo aval de Washington.
A trajetória é muito positiva. Primeiro, o projeto da Alca (Área de Livre Comércio das Américas) foi soterrado, afastando ameaças maiores, de inspiração neocolonial, cujo objetivo era a integração subordinada da economia brasileira e das demais nações da região à batuta norte-americana. Depois, seguiu-se o relançamento do Mercosul, a criação da Unasul e da Celac, o desenvolvimento das relações sul-sul, o aprofundamento da interlocução com a África, a parceria entre os BRICs.
Fortaleceram-se novos blocos políticos e econômicos, particularmente na América do Sul. O subcontinente, apesar das dificuldades, vai desbravando caminho autônomo, que progressivamente lhe permite atuar nas grandes disputas geopolíticas e comerciais, e fora do esquadro que o designava como quintal da Casa Branca.
Nesta perspectiva, o ataque ao governo Maduro, no qual forças oposicionistas locais se combinam com o apoio estrangeiro, repetindo a lógica golpista de 2002, não diz respeito apenas aos venezuelanos. A interrupção da revolução bolivariana seria capítulo decisivo na narrativa de restauração da ordem continental anterior.
Este era o tema que estava em disputa na última reunião da OEA. Os Estados Unidos tentaram aprovar resolução que lhes permitisse, sob o manto de uma comissão de investigação, interferir oficialmente na situação venezuelana. A proposta foi rechaçada por esmagadora maioria, remetendo o assunto para arbítrio exclusivo da Unasul, na qual os norte-americanos não têm assento. Foi um momento histórico, que provocou a fúria conservadora.
Caso o Brasil tivesse se portado de maneira distinta, outro poderia ser o resultado. Esse era o desejo de círculos direitistas, que agora reverberam sua frustração através da crítica insolente a Marco Aurélio Garcia.
Não estava em jogo, afinal, a democracia venezuelana, muito bem defendida por suas próprias instituições. Os fatos falam por si. Qual outro país do planeta teve 19 contendas eleitorais em 15 anos, nas quais a esquerda sagrou-se vitoriosa em 18? Qual outra nação convive com uma imprensa privada que apoia abertamente levantes anticonstitucionais? Qual outro Estado assegura liberdade partidária tão plena que inclui agremiações dispostas a convocar ações violentas contra um governo legítimo? Basta imaginar qual seria o comportamento da Casa Branca se tais práticas ocorressem em seu território.
A votação da OEA decidiu, portanto, se a América Latina se dobraria novamente ou não ao Ministério de Colônias do governo norte-americano, como já se referiu Fidel Castro acerca da entidade agonizante. A resposta foi uma rotunda negativa, à qual se somaram até mesmo governos conservadores como os da Colômbia e Chile. O Brasil, na ocasião, fez o que lhe cabia, ajudando a defenestrar o fantasma da submissão.
(*) Breno Altman é diretor editorial do site Opera Mundi e da Revista Samuel
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Carta Maior, 10/03/2014
Unasul: a areia na engrenagem do golpe
Por Saul Leblon
A reunião da Unasul desta 4ª feira, que acontece no Chile, em seguida à posse da Presidenta Bachelet, redime a força da política num momento em que os ventos da economia mundial sopram desfavoravelmente sobre a região.
Argentina, Brasil, Venezuela e outros manejam uma delicada transição cambial.
Não é uma operação contábil: mudanças no câmbio alteram o poder de compra dos salários; definem antecipadamente ganhadores e perdedores de um novo ciclo; estabelecem o fôlego das exportações; devolvem ou não espaço à indústria local.
A recuperação das economias ricas, e a queda nas cotações das commodities, inverteu a dinâmica das contas externas que impulsionou o crescimento regional por uma década.
O financiamento encareceu. As receitas com exportação caíram.
Déficits em conta corrente se avolumam, dificultando atender o avanço da demanda com mais importações. Pressões inflacionárias robustecem. Quem não tem reservas, o Brasil é uma exceção de quase US$ 400 bi, enfrenta escassez de dólares e incerteza no abastecimento.
Não por acaso, os escrutínios eleitorais apontam resultados cada vez mais apertados: a eleição de Maduro decidiu-se em casas decimais; Correa perdeu a capital, Quito, para a direita; Cristina sofre corrosão parlamentar na Argentina; o favoritismo da esquerda no 2º turno deste domingo em El Salvador deu lugar a uma vitória por diferença mínima para a Frente Farabundo Martí.
As oposições conservadoras lambem os beiços e esfregam as mãos: é a hora do abate, cogitam.
A ferocidade com que se lançam às ruas na Venezuela é a expressão desabrida de um apetite mais geral.
A contrapelo do fatalismo mecanicista, que ignora as mediações específicas no interior das grandes transições de ciclo econômico, algo de singular importância acontece, porém, na América Latina.
Há uma resistência política articulada à investida conservadora.
O software da ‘crise’ não roda mais tão facilmente na máquina regional.
A saber: à crispação golpista interna sucede-se o isolamento internacional dos governantes progressistas.
Seguem-se sanções econômicas e políticas desfechadas pelos EUA, com apoio da briosa gente do jornalismo isento.
Tudo em nome da democracia.
Contra a desordem econômica, o desgoverno, o desabastecimento e as ameaças à família e à propriedade –como denunciariam as ‘marchas’ brasileiras de 1964, a primeira delas realizada em 19 de março, seis dias depois do histórico comício da Central do Brasil, que completa 50 anos nesta 5ª feira.
Na tradição latino-americano, o desfecho golpista invariavelmente ganharia o selo de legitimidade da OEA –braço direito do Departamento de Estado no manejo dos interesses do grande capital na região.
Desde que foi criada, em 1948, a OEA notabilizou-se por ser esse cartório complacente de reconhecimento de firma do golpismo.
Foi sua (dos EUA) a iniciativa de expulsar Cuba do organismo, na reunião de Punta del Este, em 31 de janeiro de 1962, pelas seguintes alegadas razões: a) declaração do caráter socialista da revolução - incompatível com o sistema interamericano; b) alinhamento com o bloco comunista, quebrando a unidade e a solidariedade do continente; c) adesão ao marxismo-leninismo, incompatível com os princípios e objetivos do sistema interamericano.
Dois anos depois, a entidade guardiã do capital e dos bons princípios daria, pelas mesmas razões, o atestado de legalidade ao golpe de Estado contra Jango.
Um ano depois de Jango, legitimaria a invasão de São Domingos por tropas majoritariamente norte-americanas, temperadas com batalhões de vários exércitos aliados, inclusive 250 soldados da agradecida ditadura brasileira, que a OEA benzeu.
A mesma boa vontade e cooperação o organismo demonstraria com o golpe sangrento contra a democracia chilena, em 1973.
Assim por diante.
Em todos esses casos e nos demais, a engrenagem azeitada não encontraria repto à altura de sua institucionalidade na região.
Não é mais assim.
O modelo emperrado tentou pegar no tranco na reunião da OEA realizada nos EUA, no último dia 6 de março.
O alvo deste revival era a Venezuela, de Maduro, sacudida por violenta onda de protestos, liderada pela facção de extrema direita do conservadorismo local.
A conversa da semana passada na OEA avançou noite adentro.
Mas não conseguiu aprovar uma resolução apresentada pelos EUA, Canadá e Panamá –ou seja, uma proposta do Departamento de Estado norte-americano— de envio de uma missão não solicitada pelo governo Maduro ao país.
O apoio ao intervencionismo dissimulado saiu como entrou: circunscrito a 3 votos, contra 29 vetos.
Não apenas isso.
Chanceleres de 12 Estados integrantes da União das Nações Sul-americanas (a Unasul) marcaram um encontro no Chile, nesta 4ª feira, para discutir o mesmo tema em ambiente desinfetado da crispação norte-americana contra o bolivarianismo.
O veto e a redefinição do locus deixam claro:
a) a OEA não fala mais pela América Latina;
b) o colar de governos progressista da região –ancorado no tripé Brasil-Argentina-Venezuela— detém liderança para, ao menos, desestimular o adesismo de forças regionais;
c) essa guinada, repita-se, em meio a um quadro internacional adverso no plano econômico, é uma bem-vinda novidade histórica que não deve ser subestimada.
Se além de barrar o golpismo, a Unasul dispusesse de estrutura para acelerar a construção da democracia social na América Latina, as diferenças seriam ainda mais expressivas.
Não é assim, por enquanto.
Nascida oficialmente em 23 de maio de 2008, ela reúne 12 nações, um PIB de quase US$ 8 trilhões (o dos EUA é de US$ 15 tri) e uma população de 387 milhões de pessoas, distribuídas num imenso território de 18 milhões de km2 que acomoda autossuficiência energética, alimentar, mineral, abundância de água e reservas ambientais as mais expressivas do planeta.
Além da criação de um Parlamento único, uma moeda e um banco central da comunidade, a Unasul incluía, por sugestão brasileira, a instituição de um Conselho sul-americano de Defesa.
A dimensão militar da integração foi interditada então pelo direitoso presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, mergulhado até o pescoço na aliança com a CIA e as forças militares dos EUA, na guerra contra as Farcs.
A Unasul, como bem disse Lula na criação da entidade, em Brasília, pretendia retomar a tradição da luta pela integração econômica regional. E ir além dela.
Abandonada por governos conservadores, a agenda que remete a Bolívar, como gostava de lembrar Chávez, cedeu lugar nos anos 90 à determinados de abrir integralmente o mercado regional ao livre comércio com o poderio norte-americano, através da ALCA.
A luta contra o subdesenvolvimento –marcado pela iníqua distribuição de renda e do patrimônio, o baixo desenvolvimento tecnológico e industrial e elevada primarização das exportações- cedeu lugar assim à panaceia desregulatória.
O saldo é conhecido e impulsionou a volta da agenda integracionista ao final dos anos 90.
Desdenhada pela lógica neoliberal, ela provou sua pertinência como alavanca de crescimento e cooperação.
Basta ver os sérios problemas que a redução das compras argentinas e venezuelanas tem causado às exportações brasileiros de manufaturados para dar a essa condicionalidade a sua real abrangência.
A economia regional já vivenciou práticas avançadas de comércio no âmbito da ALALC ( a Unasul dos anos 60).
Um Convênio de Créditos Recíprocos (CCR) assinado então entre os países da região permitia a intensificar as trocas comerciais sem o uso de divisas fortes, graças a uma caixa de compensação de créditos quadrimestral.
O mecanismo funcionou plenamente –sem casos graves de default—até meados dos anos 80.
Foi sufocado com o avanço da lógica neoliberal no interior das administrações nacionais, a partir de então.
‘Estamos deixando para trás uma longa história de indiferença e isolamento recíproco. Nossa América do Sul não será mais um mero conceito geográfico, disse Lula na retomada dessa tradição, na assinatura do tratado da Unasul, há seis anos.
Recebida com previsível menosprezo pelas viúvas da ALCA, a Unasul vive paradoxalmente seu auge político em meio ao aparente estreitamento de seu fôlego econômico.
Não por acaso, às dificuldades internacionais, a região assiste à retomada da agenda do livre comércio através da nova menina dos olhos do conservadorismo local, a Aliança do Pacífico.
A Aliança do Pacífico seduz as classes dominantes por substituir a agenda incomoda da integração política pela confortável promessa de bonança através do livre comércio.
A dimensão política do desenvolvimento é um aspecto do jogo do poder compreensivelmente demonizado pelos interesses dominantes de cada época.
Pelo simples fato de que ela os inclui como parte dos entraves ao avanço de sociedades carentes de decisões que arejem estruturas concentradoras do excedente econômico.
A necessidade de integrar a economia latino-americana às grandes cadeias de suprimento global, e de incorporação de tecnologia, não é incompatível com a determinação de construir a democracia social na região.
As condicionalidades econômicas de uma época não definem, à priori, quem será beneficiado ou penalizado pela superação de seus gargalos.
A existência da Unasul transcende o papel passivo de um ferrolho contra o golpismo.
O simples fato de ela existir –e funcionar- amplia a margem de manobra política para a América do Sul ir além de seus erros e acertos, dos erros e acertos de outras experiências de integração.
E dar uma resposta positiva à premonição de Perón, que disse um dia:
‘O século XXI nos encontrará integrados - ou destruídos’.
Argentina, Brasil, Venezuela e outros manejam uma delicada transição cambial.
Não é uma operação contábil: mudanças no câmbio alteram o poder de compra dos salários; definem antecipadamente ganhadores e perdedores de um novo ciclo; estabelecem o fôlego das exportações; devolvem ou não espaço à indústria local.
A recuperação das economias ricas, e a queda nas cotações das commodities, inverteu a dinâmica das contas externas que impulsionou o crescimento regional por uma década.
O financiamento encareceu. As receitas com exportação caíram.
Déficits em conta corrente se avolumam, dificultando atender o avanço da demanda com mais importações. Pressões inflacionárias robustecem. Quem não tem reservas, o Brasil é uma exceção de quase US$ 400 bi, enfrenta escassez de dólares e incerteza no abastecimento.
Não por acaso, os escrutínios eleitorais apontam resultados cada vez mais apertados: a eleição de Maduro decidiu-se em casas decimais; Correa perdeu a capital, Quito, para a direita; Cristina sofre corrosão parlamentar na Argentina; o favoritismo da esquerda no 2º turno deste domingo em El Salvador deu lugar a uma vitória por diferença mínima para a Frente Farabundo Martí.
As oposições conservadoras lambem os beiços e esfregam as mãos: é a hora do abate, cogitam.
A ferocidade com que se lançam às ruas na Venezuela é a expressão desabrida de um apetite mais geral.
A contrapelo do fatalismo mecanicista, que ignora as mediações específicas no interior das grandes transições de ciclo econômico, algo de singular importância acontece, porém, na América Latina.
Há uma resistência política articulada à investida conservadora.
O software da ‘crise’ não roda mais tão facilmente na máquina regional.
A saber: à crispação golpista interna sucede-se o isolamento internacional dos governantes progressistas.
Seguem-se sanções econômicas e políticas desfechadas pelos EUA, com apoio da briosa gente do jornalismo isento.
Tudo em nome da democracia.
Contra a desordem econômica, o desgoverno, o desabastecimento e as ameaças à família e à propriedade –como denunciariam as ‘marchas’ brasileiras de 1964, a primeira delas realizada em 19 de março, seis dias depois do histórico comício da Central do Brasil, que completa 50 anos nesta 5ª feira.
Na tradição latino-americano, o desfecho golpista invariavelmente ganharia o selo de legitimidade da OEA –braço direito do Departamento de Estado no manejo dos interesses do grande capital na região.
Desde que foi criada, em 1948, a OEA notabilizou-se por ser esse cartório complacente de reconhecimento de firma do golpismo.
Foi sua (dos EUA) a iniciativa de expulsar Cuba do organismo, na reunião de Punta del Este, em 31 de janeiro de 1962, pelas seguintes alegadas razões: a) declaração do caráter socialista da revolução - incompatível com o sistema interamericano; b) alinhamento com o bloco comunista, quebrando a unidade e a solidariedade do continente; c) adesão ao marxismo-leninismo, incompatível com os princípios e objetivos do sistema interamericano.
Dois anos depois, a entidade guardiã do capital e dos bons princípios daria, pelas mesmas razões, o atestado de legalidade ao golpe de Estado contra Jango.
Um ano depois de Jango, legitimaria a invasão de São Domingos por tropas majoritariamente norte-americanas, temperadas com batalhões de vários exércitos aliados, inclusive 250 soldados da agradecida ditadura brasileira, que a OEA benzeu.
A mesma boa vontade e cooperação o organismo demonstraria com o golpe sangrento contra a democracia chilena, em 1973.
Assim por diante.
Em todos esses casos e nos demais, a engrenagem azeitada não encontraria repto à altura de sua institucionalidade na região.
Não é mais assim.
O modelo emperrado tentou pegar no tranco na reunião da OEA realizada nos EUA, no último dia 6 de março.
O alvo deste revival era a Venezuela, de Maduro, sacudida por violenta onda de protestos, liderada pela facção de extrema direita do conservadorismo local.
A conversa da semana passada na OEA avançou noite adentro.
Mas não conseguiu aprovar uma resolução apresentada pelos EUA, Canadá e Panamá –ou seja, uma proposta do Departamento de Estado norte-americano— de envio de uma missão não solicitada pelo governo Maduro ao país.
O apoio ao intervencionismo dissimulado saiu como entrou: circunscrito a 3 votos, contra 29 vetos.
Não apenas isso.
Chanceleres de 12 Estados integrantes da União das Nações Sul-americanas (a Unasul) marcaram um encontro no Chile, nesta 4ª feira, para discutir o mesmo tema em ambiente desinfetado da crispação norte-americana contra o bolivarianismo.
O veto e a redefinição do locus deixam claro:
a) a OEA não fala mais pela América Latina;
b) o colar de governos progressista da região –ancorado no tripé Brasil-Argentina-Venezuela— detém liderança para, ao menos, desestimular o adesismo de forças regionais;
c) essa guinada, repita-se, em meio a um quadro internacional adverso no plano econômico, é uma bem-vinda novidade histórica que não deve ser subestimada.
Se além de barrar o golpismo, a Unasul dispusesse de estrutura para acelerar a construção da democracia social na América Latina, as diferenças seriam ainda mais expressivas.
Não é assim, por enquanto.
Nascida oficialmente em 23 de maio de 2008, ela reúne 12 nações, um PIB de quase US$ 8 trilhões (o dos EUA é de US$ 15 tri) e uma população de 387 milhões de pessoas, distribuídas num imenso território de 18 milhões de km2 que acomoda autossuficiência energética, alimentar, mineral, abundância de água e reservas ambientais as mais expressivas do planeta.
Além da criação de um Parlamento único, uma moeda e um banco central da comunidade, a Unasul incluía, por sugestão brasileira, a instituição de um Conselho sul-americano de Defesa.
A dimensão militar da integração foi interditada então pelo direitoso presidente da Colômbia, Álvaro Uribe, mergulhado até o pescoço na aliança com a CIA e as forças militares dos EUA, na guerra contra as Farcs.
A Unasul, como bem disse Lula na criação da entidade, em Brasília, pretendia retomar a tradição da luta pela integração econômica regional. E ir além dela.
Abandonada por governos conservadores, a agenda que remete a Bolívar, como gostava de lembrar Chávez, cedeu lugar nos anos 90 à determinados de abrir integralmente o mercado regional ao livre comércio com o poderio norte-americano, através da ALCA.
A luta contra o subdesenvolvimento –marcado pela iníqua distribuição de renda e do patrimônio, o baixo desenvolvimento tecnológico e industrial e elevada primarização das exportações- cedeu lugar assim à panaceia desregulatória.
O saldo é conhecido e impulsionou a volta da agenda integracionista ao final dos anos 90.
Desdenhada pela lógica neoliberal, ela provou sua pertinência como alavanca de crescimento e cooperação.
Basta ver os sérios problemas que a redução das compras argentinas e venezuelanas tem causado às exportações brasileiros de manufaturados para dar a essa condicionalidade a sua real abrangência.
A economia regional já vivenciou práticas avançadas de comércio no âmbito da ALALC ( a Unasul dos anos 60).
Um Convênio de Créditos Recíprocos (CCR) assinado então entre os países da região permitia a intensificar as trocas comerciais sem o uso de divisas fortes, graças a uma caixa de compensação de créditos quadrimestral.
O mecanismo funcionou plenamente –sem casos graves de default—até meados dos anos 80.
Foi sufocado com o avanço da lógica neoliberal no interior das administrações nacionais, a partir de então.
‘Estamos deixando para trás uma longa história de indiferença e isolamento recíproco. Nossa América do Sul não será mais um mero conceito geográfico, disse Lula na retomada dessa tradição, na assinatura do tratado da Unasul, há seis anos.
Recebida com previsível menosprezo pelas viúvas da ALCA, a Unasul vive paradoxalmente seu auge político em meio ao aparente estreitamento de seu fôlego econômico.
Não por acaso, às dificuldades internacionais, a região assiste à retomada da agenda do livre comércio através da nova menina dos olhos do conservadorismo local, a Aliança do Pacífico.
A Aliança do Pacífico seduz as classes dominantes por substituir a agenda incomoda da integração política pela confortável promessa de bonança através do livre comércio.
A dimensão política do desenvolvimento é um aspecto do jogo do poder compreensivelmente demonizado pelos interesses dominantes de cada época.
Pelo simples fato de que ela os inclui como parte dos entraves ao avanço de sociedades carentes de decisões que arejem estruturas concentradoras do excedente econômico.
A necessidade de integrar a economia latino-americana às grandes cadeias de suprimento global, e de incorporação de tecnologia, não é incompatível com a determinação de construir a democracia social na região.
As condicionalidades econômicas de uma época não definem, à priori, quem será beneficiado ou penalizado pela superação de seus gargalos.
A existência da Unasul transcende o papel passivo de um ferrolho contra o golpismo.
O simples fato de ela existir –e funcionar- amplia a margem de manobra política para a América do Sul ir além de seus erros e acertos, dos erros e acertos de outras experiências de integração.
E dar uma resposta positiva à premonição de Perón, que disse um dia:
‘O século XXI nos encontrará integrados - ou destruídos’.
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